“Afirmar a bondade do prazer é escandaloso no Ocidente.”110 A espiritualidade ocidental foi construída sobre a negação do prazer. As feridas e lacerações que a espiritualidade católica elegeu como objetos de adoração são expressões plásticas desse fato. E o ascetismo e disciplina de trabalho, virtudes supremas do protestantismo, são a sua manifestação racional e moral.111
Do medo do prazer e da alegria não escapam nem reacionários da direita nem revolucionários da esquerda. É Barthes que afirma:
“Toda uma pequena mitologia tende a nos fazer acreditar que o prazer é uma ideia da direita. À direita, expande- -se para a esquerda, e com um mesmo movimento, tudo o que é abstrato, aborrecido, político, e as pessoas guardam para si o prazer. E à esquerda, por moral (esquecendo-se dos charutos de Marx e Brecht), suspeita-se, desdenha-se qualquer resíduo de ‘hedonismo’. À direita, o prazer é reivindicado contra a intelectualidade, o clericato: é o velho mito reacionário do coração contra a cabeça, da sensação contra o raciocínio, da ‘vida’ (quente) contra a ‘abstração’ (fria): o artista não deve, segundo o sinistro preceito de Debussy, ‘procurar humildemente causar prazer?’. À esquerda, opõem-se o conhecimento, o método, o compromisso, o combate, à ‘simples deleitação’. No entanto, e se o próprio conhecimento fosse por sua vez delicioso?.”112
Mas eu acredito que vivemos para ter prazer. Bachelard era mais ousado do que eu e não se envergonhava de afirmar: “O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso”.113
Minha filosofia da educação decorre desse ato de fé, podendo assim ser resumida: o objetivo da educação é aumentar as possibilidades de prazer e alegria. O destino da razão é servo do prazer e da alegria. Creio na função educativa e intelectual do prazer. Uma inteligência feliz é uma inteligência... mais inteligente... De novo, a sabedoria de Zaratustra:
“Meu irmão, lá, atrás dos seus pensamentos e sentimentos, se encontra um senhor poderoso, um sábio desconhecido, cujo nome é ‘você mesmo’. Ele mora no seu corpo. Ele é o seu corpo. Há mais razão no seu corpo que na sua melhor sabedoria. [...] O seu corpo (Selbst) se ri do seu ego e dos seus saltos ousados. ‘Que é que esses saltos e voos de pensamento significam para mim?’, ele diz para si mesmo. ‘Um desvio do meu fim. Eu sou os fios que movem o ego e o suporte onde se assentam os seus conceitos. O corpo (Selbst) diz para o ego: ‘Sinta dor aqui!’. Então o ego sofre e pensa em como parar de sofrer – e é isso que faz o ego pensar. O corpo (Selbst) diz para o ego: ‘Sinta prazer aqui!’. Então o ego tem prazer e pensa em como repetir esse prazer – e é isso que faz o ego pensar (os destaques em itálico são meus). [...] O corpo criador criou o espírito como uma mão para a sua vontade”114
Descreva o método empregado para compor esse prelúdio para piano que estou ouvindo, senhor Rachmaninov! Descreva o método empregado para escrever seus contos, senhor Jorge Luis Borges! Descreva o método empregado para imaginar seus fantásticos desenhos, senhor Escher! Eles se ririam. Não há métodos para se ter boas ideias. As boas ideias não são produzidas; não são construídas. Elas simplesmente aparecem diante dos nossos olhos, sem que as tivéssemos procurado metodologicamente. Era assim que Picasso descrevia o seu método: “Eu não procuro. Eu encontro”. O corpo não caminha sobre certezas metodológicas.115 Ele simplesmente aposta na verdade de um pensamento que lhe apareceu repentinamente, vindo não sabe donde. E assim ele salta. “Navegar é preciso. Viver não é preciso.” Viver é ter coragem para testar a aposta. Pode ser que a aposta esteja errada: mas não há alternativas. E tolos são aqueles que pensam que as certezas da ciência são uma alternativa à aposta. Porque a ciência também resulta de uma aposta e está construída sobre incertezas. Karl Popper, talvez o mais famoso filósofo da ciência de nossa época, ao final de seu livro A lógica da investigação científica116 diz o seguinte:
“A ciência não é um sistema de declarações certas ou bem estabelecidas. [...] Nossa ciência não é conhecimento (episteme): ela não pode nunca pretender haver atingido a verdade, ou mesmo um substituto para ela, como a probabilidade. [...] Nós não conhecemos: nós só podemos adivinhar. E nossas adivinhações são guiadas pela fé metafísica (embora biologicamente explicável), não científica, em leis, regularidades que podemos des-cobrir.”117
O ego consciente tricota pulôveres de palavras e lhes dá o nome de verdade.
O corpo tece tapetes de palavras e lhes dá o nome de beleza.
Haverá um método, jeito de pensar, não que produza a beleza, mas que nasça dela? Era um sonho de Cecília Meireles:
Caminhávamos devaga
ao longo desses dias felizes,
pensando que a Inteligência
era uma sombra de Beleza...118
Por muito tempo, influenciado pela psicanálise, usei a palavra “prazer” para me referir ao impulso fundamental que movimenta o corpo. Hoje a palavra prazer já não me satisfaz. O corpo não se contenta com o prazer. Uma das muitas amantes de Tomás dizia: “Eu não quero prazer. Eu quero é alegria!”.119 A experiência do prazer, tão boa, sempre nos coloca diante de um vazio. A teologia de santo Agostinho se constrói sobre esse vazio que se segue ao prazer. Depois de esgotado o prazer, existe, na alma, a nostalgia por algo indefinível. Que indefinível é esse que, se encontrado, nos traria a alegria? Estou pronto a concordar com o santo: um indefinível que, se encontrado, me traria alegria, eu o adoraria como deus, a ele entregaria a minha vida.
Pus-me então a pensar sobre a diferença entre prazer e alegria – ambos muito bons. E estas foram as conclusões a que cheguei.
Sobre o prazer:
(1) O prazer só acontece se o corpo tiver a posse do seu objeto. O prazer do sorvete só existe se houver um sorvete a ser lambido. O prazer do suco de pitanga só existe se houver suco de pitanga para ser bebido. O prazer do beijo só existe se houver a pessoa amada a ser beijada.
(2) O prazer se farta logo. Quantos sorvetes sou capaz de tomar antes que ele se transforme de objeto de prazer em causa de sofrimento? Quantos copos de suco de pitanga sou capaz de tomar antes que o corpo diga: “Não aguento mais!?”. Quantos beijos se pode dar na pessoa amada antes de enjoar? O prazer tem vida curta. O evangelho do prazer reza: “Bem-aventurados os que têm fome, porque serão fartos”.
Sobre a alegria:
(1) A alegria não precisa da posse do objeto desejado para existir. Lembro-me do rosto de um amigo – ele já morreu –, mas esta simples memória me traz alegria, junto com uma pitada de tristeza. Sentimos alegria lendo uma obra de ficção, um objeto que nunca existiu pode nos dar alegria, como é o romance entre Fiorentino Ariza e Firmina Daza120 ou o filme A festa de Babette. Paul Valéry: “Que somos nós sem o socorro das coisas que não existem?”. Que seres estranhos nós somos, capazes de nos alegrar comendo frutos inexistentes!
(2) A alegria nunca se farta. A alegria pede mais alegria. Alegria é fome insaciável. Da alegria nunca se diz: “Estou satisfeito!”, “Chega!”. O evangelho da alegria é diferente do evangelho do prazer: “Bem-aventurados os que têm fome, porque terão mais fome”.
Mas, vez por outra, a alegria e o prazer acontecem juntos. Quando isso acontece, o corpo experimenta uma efêmera epifania do Paraíso: o divino se faz carne...
Meu método se inspira na música e na poesia. As duas, poesia e música, são irmãs. Fernando Pessoa diz que poesia é uma rede de palavras por cujos interstícios se ouve uma melodia que faz chorar.121 Todo dizer poético aspira por um silêncio de palavras – para que a música seja ouvida. O acontecimento poético é assim: o corpo ouve a música, percebe a beleza. Experiência de graça. Deseja comunicá-la. Procura palavras, sons, em cujo côncavo a beleza aconteça. Um outro corpo as ouve. Eventualmente esse ouvir provoca nele, corpo, uma ressonância. Se o corpo ressoar musicalmente, é porque existe uma identidade entre aquele que disse e aquele que ouviu. “A arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles.”122 Essa ressonância é o corpo dizendo: “É isso mesmo”. Quando isso acontece, tem-se certeza. O corpo está convencido. Na verdade, tentei por muitos anos ser um pianista, sem sucesso. Os dedos eram ótimos, mas faltava-me o essencial: o talento. Abandonei o piano com tristeza, consciente de que ele não me abandonara, pois, na verdade, nunca estivera comigo. Foi como o fim de uma estória de amor. Consolo-me ao saber que Nietzsche teve estória parecida. Tocava piano e até fez algumas composições. Um amigo me deu um disco com a gravação de algumas de suas composições. Recusei-me a tocar o disco. Guardo-o como um inconsciente em que nunca penetrarei. Não quero que a música que ele fez no piano prejudique a música sublime que ele faz com as palavras. Relata-se que Nietzsche, num impulso de loucura, enviou algumas de suas composições ao famosíssimo pianista von Büllow, que imediatamente o aconselhou a dedicar-se a outras coisas que não à composição. Não quero ver os pecados estéticos daqueles que amo. Os pecados estéticos são os que mais me ofendem.
Os músicos se comprazem numa brincadeira chamada “Tema con variazioni”. Lembrei-me de uma dessas peças, de Mozart, variações sobre o tema “Ah, vous dirai-je, Maman”. Fui procurá-la nos meus álbuns de sonatas. Assentei-me ao piano e toquei a primeira. Tão fácil. Tão coisa de criança. Está agora aqui aberta ao lado do teclado do micro, que é o piano onde faço minhas “variações”. Vá ao piano ou tome o instrumento que tiver, e toque, compasso 2/4, todas as notas são semínimas, do mesmo valor: dó, dó, sol, sol, lá, lá, sol, sol, fá, fá, mi, mi, ré, ré, dó. Está dito. Mas não está dito. Esse tema tão simples é apenas o início de uma série de brincadeiras, as variações. Bach compôs as maravilhosas “Variações Goldberg”; Beethoven fez suas famosas “32 variações”, Brahms fez as variações sobre um tema de Paganini, e há as famosas variações de Britten, para crianças.
As variações agradam tanto porque elas são o espelho da alma. Quando a alma gosta de uma coisa, ela quer que ela seja repetida, indefinidamente. Ela quer repetir o poema que a emocionou, o abraço, a comida, o perfume, a ideia, o pôr do sol, a paisagem. A alma deseja sempre retornar. “Ela está sempre em busca do tempo perdido...”
“Con variazioni”, é claro! Lênin confessava ter muito medo da sonata Appassionata, de Beethoven. Felizmente (ou infelizmente, tudo depende do ponto de vista), no tempo dele ainda não havia CDs. Para que a música fosse ouvida era preciso que alguém a tocasse. Eu já ouvi Beethoven muito mais vezes que ele mesmo. Não tenho informações históricas sobre se Lênin tinha uma “victrola” (palavra que, aprendi faz poucos dias, se deriva de RCA Victor...) para ouvir a música. O fato é que ele declarou que poderia ouvir a Appassionata o dia inteiro, ele ficava transtornado, entrava num estado parecido ao frenesi de que falou Zaratustra, e era dominado por um desejo de sair pelas ruas abraçando todo mundo, com o perigo, inclusive, de que abraçasse algum banqueiro ou oficial dos exércitos do tsar.
Os filósofos antigos e Kepler achavam que o universo era uma orquestra tocando música, cada astro era uma esfera sonora. Achavam também que a função da ciência era encontrar meios para escrever a partitura divina de forma que ouvidos mortais a pudessem ouvir, música que Deus estava tocando desde a Criação, como um cânon sem fim, girando sempre, girando sempre. A Igreja acreditava já ter encontrado essa música: era o canto gregoriano. E eu me sinto tentado a acreditar, seduzido que estou pelos maravilhosos hinos pré-gregorianos, do CD Officium, com Jan Garbarek e o Hilliard Ensemble (ECM Records). “Cada organismo é uma música que se toca...”
O corpo é um instrumento, piano, hardware de carne e osso no qual um software musical foi instalado. A alma é um buraco escuro onde moram músicas. Não tem importância que seja escuro. Para se ouvir música bem é bom ter os olhos fechados. Disse “piano”, mas poderia ter dito flauta, violino, viola de dez cordas, rabeca de artesão caipira, ou bateria...
Milan Kundera, especialista em estórias de amor, disse que assim é feita a vida, “composta como uma partitura musical. O ser humano, guiado pelo sentido da beleza, toma o acontecimento fortuito e o transpõe musicalmente, para fazer dele um tema que, em seguida, fará parte de sua própria vida. Voltará ao tema, repetindo-o, modificando-o, desenvolvendo-o e transpondo-o, como faz um compositor com os temas da sua sonata. O homem inconscientemente compõe a sua vida segundo as leis da beleza, mesmo nos instantes do mais profundo desespero”.123
O tema, uma vez anunciado, passa a ser tocado por instrumentos diferentes: violinos, violoncelos, flautas, trompas, até que todos os instrumentos da orquestra, em sua fantástica diferença, se unem para dizer a mesma coisa. Cada um diz uma coisa diferente e, no entanto, todos juntos, dizem a mesma coisa. Ouça o “Bolero”, de Ravel, e você entenderá o que estou dizendo.
A música se inicia quando o compositor se encontra com um tema que o fascina. Ele fica “possuído”. E se põe a brincar com o tema, como o amante brinca com a pessoa amada. O pensamento desliza pelo corpo, excursiona, não vai direto ao ponto, rejeita as linhas retas, volta a lugares já visitados, toca-os de uma nova forma, os mesmos lugares, a cada novo toque eles são outros, deleita-se em repetir, o prazer ama a repetição.
Um texto sobre o prazer e a alegria há de ser prazeroso e alegre. Um texto científico sobre o prazer seria o mesmo que tocar uma sonata para piano, de Mozart, numa máquina de escrever. A ciência não é instrumento para se tocar prazer e alegria. O prazer e a alegria não são científicos; não podem ser ditos na linguagem da ciência. “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos”... E é por isso que vou escrever no estilo de “variações” musicais: “variações sobre o tema do prazer”.
(Rubem Alves - Variações sobre o Prazer)
NOTAS:
110 Octavio Paz, Los hijos del limo, p. 106.
111 Como é bem sabido, segundo Max Weber, o ascetismo intramundano do protestantismo calvinista e a disciplina de trabalho constituem a essência do espírito do qual o capitalismo nasceu. Me pergunto se essa ideia não lhe veio da leitura dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, de Marx.
112 Roland Barthes, O prazer do texto, pp. 32-33.
113 Bachelard, O direito de sonhar, p. 21.
114 FN II (II), p. 575, Assim falou Zaratustra, “Sobre aqueles que desprezam o corpo”. Não sei como traduzir o que se encontra no alemão: “Hinter deinen Gedanken und Gefühlen, mein Bruder, steht ein mächtiger Gebieter, ein unbekanter Weiser – der heisst Selbst. In dienem Leibe wohnt er, dein Leib ist er”. É esse Selbst que não sei traduzir. Mas o próprio Nietzsche afirma a igualdade entre Selbst e corpo. Essa é a razão por que traduzi Selbst por “corpo”. Sei que psicólogos, epistemólogos e metodólogos me perguntarão sobre as provas, as pesquisas, as amostragens, os tratamentos estatísticos sobre os quais baseio tal afirmação. Para eles, um pensamento é digno de ser levado em consideração somente se explicar, com clareza, o caminho que foi seguido para se chegar até ele. A ciência só sabe aquilo cujo método de produção pode ser relatado: o sentido de uma afirmação é o método de sua produção!
115 Lembra-se do andarilho de Nietzsche, que saltava sobre as pedras no riacho?
116 Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery.
118 Cecília Meireles, Verdes reinos encantados, p. 26.
119 Milan Kundera, A insustentável leveza do ser
120 Gabriel García Márques, Amor nos tempos do cólera.
121 Fernando Pessoa, Obra poética, p. 179.
122 Fernando Pessoa [Bernardo Soares], Livro do desassossego, p.39
123 Quem quiser saber um pouco mais sobre o assunto, que leia uma obra de Nietzsche, O nascimento da tragédia a partir do espírito da música [Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (FN-W I, pp. (I) 7-134].