Não se acha, em toda a psicologia do “evangelho”, o conceito de culpa e castigo; nem o conceito de recompensa. O “pecado”, qualquer relação distanciada entre Deus e homem, está abolido — justamente isso é a “boa nova”. A beatitude não é prometida, não é ligada a condições: é a única realidade — o resto é signo para dela falar... A conseqüência de tal estado projeta-se numa nova prática, aquela propriamente evangélica. Não é uma “fé” que distingue o cristão: o cristão age, ele diferencia-se por agir diferentemente; por não oferecer resistência, em palavras ou no coração, àquele que é mau para com ele; por não fazer diferença entre forasteiros e nativos, entre judeus e não-judeus (“o próximo”, na verdade o correligionário, o judeu); por não encolerizar-se com ninguém, não menosprezar ninguém; por não se deixar ver nem invocar nos tribunais (“não jurar” [Mateus, 5, 34]); por não separar-se de sua mulher em nenhuma circunstância, mesmo havendo provas da infidelidade da mulher. — Tudo um princípio, no fundo; tudo conseqüência de um instinto. — A vida do Redentor não foi senão essa prática — sua morte também não foi senão isso... Ele não tinha mais necessidade de nenhuma fórmula, de nenhum rito para o trato com Deus — nem mesmo oração. Acertou contas com toda a doutrina judaica de penitência e reconciliação; sabe que apenas com a prática da vida alguém pode sentir-se “divino”, “bemaventurado”, “evangélico”, a qualquer momento um “filho de Deus”. Não a “penitência”, não a “oração pelo perdão” é um caminho para Deus: somente a prática evangélica conduz a Deus, ela justamente é Deus. — O que foi liquidado com o evangelho foi o judaísmo dos conceitos “pecado”, “perdão dos pecados”, “fé”, “redenção pela fé” — toda a doutrina eclesiástica judia foi negada na “boa nova”. O profundo instinto para como alguém deve viver a fim de sentir-se “no céu”, sentir-se “eterno”, enquanto, conduzindo-se de qualquer outro modo, não se sente absolutamente “no céu”: apenas esta é a realidade psicológica da “redenção”. — Uma nova conduta, não uma nova fé...
(Friedrich Nietzsche - O Anticristo — Maldição ao cristianismo e Ditirambos de Dionisio)