Com efeito, podemos distinguir três grandes concepções da transcendência. Você vai reconhecê-las sem dificuldade, pois, embora não as tendo nomeado, já tivemos a oportunidade de encontrá-las pelo caminho.
Uma segunda concepção da transcendência, inteiramente diferente e até mesmo oposta à primeira, aplica-se ao Deus dos grandes monoteístas. Ela designa simplesmente o fato de que o Ser supremo é, ao contrário do divino dos gregos, “além” do mundo criado por ele, quer dizer, ao mesmo tempo exterior e superior ao conjunto da criação. Contrariamente ao divino dos estoicos, que se confunde com a harmonia natural e, consequentemente, não se situa fora dela, o Deus dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos é totalmente “supranatural”. Trata-se, no caso, de uma transcendência que não se situa apenas em relação à humanidade, como a dos gregos, mas também ao próprio universo concebido inteiramente como uma criação cuja existência depende de um Ser exterior a ela.
Eis como, segundo contam, o próprio Husserl gostava de explicar a seus alunos — pois, como muitos grandes filósofos, Kant, Hegel, Heidegger, que foi seu aluno, e tantos outros, ele era antes de tudo um grande professor.
Husserl tomava de um cubo — ou um paralelepípedo retangular, pouco importa —, por exemplo, uma caixa de fósforos, e o mostrava aos alunos fazendo-os observar o seguinte: não importando a maneira como se mostrasse o cubo em questão, não veríamos nunca mais que três faces ao mesmo tempo, embora ele tivesse seis.
E daí?, você me dirá. O que isso significa e o que se pode concluir no plano filosófico?
Antes de tudo, o seguinte: não há onisciência, não há saber absoluto, pois todo visível (no caso, o visível é simbolizado pelas três faces expostas do cubo) se apresenta sempre sobre um fundo de invisível (as três faces escondidas). Em outras palavras, toda presença supõe uma ausência, toda imanência, uma transcendência escondida, toda doação de objeto, alguma coisa que se tira.
É preciso compreender a ousadia desse exemplo, que é apenas metafórico. Ele significa que a transcendência não é um novo “ídolo”, uma invenção de metafísico ou de crente, a ficção, uma vez mais, de um além que serviria para depreciar o real em nome de um ideal, mas um fato, uma constatação, uma dimensão incontestável da existência humana inscrita no centro mesmo do real. É nisso que a transcendência, ou melhor, essa transcendência, não poderia ser derrubada pelos ataques das críticas clássicas feitas por materialistas ou por diferentes adeptos da desconstrução. Nesse sentido, ela é certamente não metafísica e pós-nietzschiana.
Para melhor delimitar esse novo pensamento da transcendência, antes de apresentar alguns exemplos concretos, um bom meio consiste em refletir, como sugere Husserl, sobre a noção de horizonte. De fato, quando você abre os olhos para o mundo, os objetos aparecem sempre sobre um fundo, e esse mesmo fundo, à medida que você penetra no universo que nos cerca, desloca-se continuamente, como acontece com o horizonte, para um navegador, sem nunca se fechar para constituir um fundo último e intransponível. Assim, de fundo em fundo, de horizonte em horizonte, você jamais consegue capturar nada que possa considerar como uma entidade última, um Ser supremo ou uma causa primeira que garanta a existência do real em que mergulhamos. E é nisso que existe transcendência, alguma coisa que nos escapa sempre no seio daquilo que nos é dado, que vemos e tocamos, logo, no seio mesmo da imanência.
Por isso, a noção de horizonte, em virtude de sua mobilidade infinita, encerra, de algum modo, a de mistério. Como a do cubo, do qual nunca percebo todas as faces ao mesmo tempo, a realidade do mundo nunca me é dada na transparência e no domínio perfeitos, ou, em outras palavras: se nos limitamos à ideia da finitude humana, a ideia, como disse ainda Husserl, de que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, de que toda consciência é, pois, limitada por um mundo exterior a ela e, consequentemente, nesse sentido finita, é preciso admitir que o conhecimento humano não poderia nunca aceder à onisciência, que não pode jamais coincidir com o ponto de vista que os cristãos atribuem a Deus.
É também pela recusa ao fechamento, pela rejeição de todas as formas de “saber absoluto”, que essa transcendência de terceiro tipo se revela como uma “transcendência na imanência”, só ela passível de conferir um significado rigoroso à experiência humana que tenta descrever e considerar o humanismo liberto das ilusões da metafísica. É “em mim”, em meu pensamento ou em minha sensibilidade que a transcendência dos valores se manifesta. Embora situadas em mim (imanência), tudo acontece como se elas se impusessem (transcendência), apesar de tudo, à minha subjetividade, como se viessem de outra parte.
Com efeito, considere os quatro grandes campos nos quais sobressaem valores fundamentais da existência humana: verdade, beleza, justiça e amor. Os quatro, não importa o que diz o materialismo, continuam fundamentalmente transcendentes para o indivíduo singular, para você, para mim e para todos.
Digamos mais simplesmente ainda: não invento nem as verdades matemáticas, nem a beleza de uma obra, nem os imperativos éticos; e, como se diz tão bem, a gente “cai de amores”, e não por escolha deliberada. A transcendência dos valores é, nesse sentido, bem real. Mas é dada na mais concreta experiência, não numa ficção metafísica, não em forma de um ídolo como um “Deus”, o “paraíso”, a “república”, o “socialismo” etc. Podemos propor, a partir daí, uma “fenomenologia”, quer dizer, uma simples descrição que parte de uma necessidade, da consciência de uma impossibilidade de fazer de modo diferente: não adianta, 2 + 2 são 4, e isso não é questão de gosto ou de escolha subjetiva. É algo que se impõe a mim como se viesse de outro lugar e, no entanto, é em mim que essa transcendência está presente, quase palpável.
Há mesmo uma transcendência dos valores, e é essa abertura que o humanismo não metafísico, contrariamente ao materialismo que pretende tudo explicar e tudo reduzir, quer assumir — sem, aliás, nunca alcançar. Não por impotência, mas por lucidez, porque a experiência é incontestável, e nenhum materialismo consegue verdadeiramente dar conta dela.
Há, pois, transcendência. Mas por que “na imanência”? Simplesmente porque, desse ponto de vista, os valores não são mais impostos a nós em nome de argumentos de autoridade, nem deduzidos de alguma ficção metafísica ou teológica. Certamente descubro, não invento a verdade de uma proposição matemática, tanto quanto não invento a beleza do oceano ou a legitimidade dos direitos do homem. Todavia, é em mim, e não em outro lugar, que elas se revelam. Não há mais céu das ideias metafísicas, não há mais Deus, ou, pelo menos, não sou obrigado a acreditar nele para aceitar a ideia de que me encontro diante de valores que ao mesmo tempo me ultrapassam e, contudo, não estão em nenhum outro lugar, visíveis apenas no interior de minha própria consciência.
Onde o materialismo quer a qualquer custo reduzir o sentimento de transcendência às realidades materiais que o engendraram, um humanismo, liberto das ingenuidades ainda presentes na filosofia moderna, prefere se entregar a uma descrição bruta, uma descrição que não contém preconceitos, uma “fenomenologia” da transcendência tal como se instalou no interior de minha subjetividade.
Eis também por que a theoria humanista vai se revelar, por excelência, uma teoria do conhecimento centrado na consciência de si ou, para usar a linguagem da filosofia contemporânea, na “autorreflexão”. Ao contrário do materialismo, sobre o qual lhe disse por que ele nunca consegue pensar seu próprio pensamento, o humanismo contemporâneo vai fazer de tudo para tentar refletir sobre o significado de suas próprias afirmações, para tomar consciência delas, criticá-las, avaliá-las. O espírito crítico que caracterizava a filosofia moderna a partir de Descartes vai dar um passo além: em vez de se aplicar apenas aos outros, ele vai finalmente aplicar-se a si mesmo.
(Luc Ferry - Aprender a Viver)