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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
"Dizer que um crente é mais feliz do que um cético
é como dizer que um bêbado é mais feliz que um sóbrio."
George Bernard Shaw
Tem-se frequentemente a ideia de que, à partida, o ateu, quando nega a existência de Deus ou quando afirma que, com a morte, acaba tudo, tem do seu lado a razão, ficando o crente sob a suspeita de não-racional, de tal modo que é a ele apenas que compete ter de apresentar razões da sua fé.
Ora, as coisas não são assim, de modo nenhum. Por paradoxal que pareça, também o ateu assenta a sua negação da existência de Deus ou da vida depois da morte num acto de fé, melhor, numa crença. "Em qualquer das suas formas, o ateísmo é uma crença e não uma evidência, escreve o filósofo Pedro Laín Entralgo, um 'creio que Deus não existe' e não um 'sei que Deus não existe'".
O chamado crente e o ateu encontram-se exactamente no mesmo plano: o crente não pode demonstrar a existência de Deus nem a vida eterna (diga-se, de passagem, que um deus demonstrável não seria Deus, mas um ídolo, que a razão constrói e destrói), exactamente como o ateu não pode demonstrar que Deus não existe ou que a morte é o termo definitivo da existência da pessoa. No que se refere a Deus ou à vida depois da morte, as posições do crente, do agnóstico ou do ateu assentam na crença.
Evidentemente, sendo humanos e, portanto, seres racionais, todos - o crente, o agnóstico, o ateu - têm de apresentar razões para a sua crença, pois esta, se quiser ser verdadeiramente humana, não pode ser cega. Sublinhe-se, porém, que se trata, para todos, de um acto de fé, certamente com razões, mas sempre de um acto de fé, e não da conclusão de uma demonstração. Por isso é que Pedro Laín Entralgo se não cansa de repetir que o objecto da ciência é penúltimo, mas o último é objecto da crença, seguindo-se daí que "o certo será sempre penúltimo, e o último será sempre incerto".
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Assim, o crente, o agnóstico, o ateu, em vez de se excluírem, devem encontrar-se e enriquecer-se mutuamente num conflito dialógico de razões, e, por paradoxal que pareça, num diálogo sincero e aberto, concluirão que há entre eles muito mais sintonias do que poderiam supor à primeira vista. Quantos crentes, por exemplo, não ficarão surpreendidos ao ler em Santo Tomás de Aquino que o saber da fé, não podendo ser evidente, convive com a dúvida, a opinião, a suspeita... E o grande teólogo Karl Barth dizia que conhecia muito bem um certo descrente: ele próprio!
Fé religiosa e dúvida não se excluem. Pelo contrário, a fé está sempre acompanhada de perguntas. Estas perguntas humanizam a religião, pois impedem todo o tipo de funda-mentalismo, abrem ao diálogo não só com os crentes de outras religiões mas também com os ateus e agnósticos, obrigando a uma reformulação constante das fórmulas doutrinais, que ao mesmo tempo que tentam dizer o Mistério também o ocultam.
Por outro lado, é bem possível que também ateus e agnósticos aceitem que há um Mistério inominável que a todos envolve...
Neste sentido, como escreve o filósofo Juan António Estrada, "haveria que fazer um elogio da dúvida em relação com as crenças. Só quando há capacidade de crítica é que a adesão ao religioso adquire valor. Pelo contrário, a identificação com uma religião determinada carece de validade última, quando não é possível expressar a dissidência ou indagar criticamente o valor das crenças assumidas".
De qualquer modo, nunca poderá esquecer-se que Jesus morreu na cruz fazendo uma pergunta (a pergunta é a piedade do pensamento, dizia Heidegger): "Meu Deus, meu Deus, por que é que me abandonaste?"
(Anselmo Borges - Janela do (In)Visível)