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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
As revistas transmitem o mito da beleza como um evangelho de uma nova religião. Ao lê-las, as mulheres participam na recriação de um sistema de crenças tão poderoso quanto o de qualquer das igrejas cuja influência sobre elas se desfez tão rapidamente.
A Igreja da Beleza é, como a Donzela de Ferro, um símbolo duplo. As mulheres a abraçaram com entusiasmo como um meio de preencher o vazio espiritual que se abriu quando sua tradicional relação com a autoridade religiosa se esgarçou. Com entusiasmo proporcional, a ordem social a impõe para suplantar a autoridade religiosa como uma força de controle sobre as vidas das mulheres.
Os Ritos da Beleza combatem a recente liberdade das mulheres, opondo-se ao seu ingresso no mundo secular com superstição medieval, mantendo as desigualdades de poder mais intactas do que poderiam estar se não fosse por eles. À medida que as mulheres entram em luta com um mundo que está chegando a um novo milênio, elas são cada vez mais oprimidas por um poderoso sistema de crenças que mantém parte de sua consciência presa a uma forma de pensar que o mundo masculino abandonou na Idade Média. Se uma consciência está centrada num sistema medieval de crenças e uma outra inteiramente moderna, o mundo contemporâneo e seu poder pertencerão a esta última. Os Ritos são arcaicos e primitivos para que o cerne da consciência feminina possa se manter arcaico e primitivo.
Também os homens respeitam essa religião das mulheres. O sistema de castas baseado na "beleza" é defendido como se tivesse origem em alguma verdade eterna. Isso é presumido por pessoas que não encaram o mundo com esse tipo de fé categórica em mais nada. Neste século, a maioria dos campos do pensamento foi transformada pela compreensão de que as verdades são relativas e as percepções, subjetivas. No entanto, a correção e a permanência do sistema de castas da "beleza" não são questionadas por pessoas que estudam física quântica, etnologia, direitos civis; por ateus, por quem tem atitude cética para com os telejornais e não acredita que a Terra foi criada em sete dias. Acredita-se no sistema sem questioná-lo, como um artigo de fé.
O ceticismo da época moderna desaparece quando o assunto é a beleza feminina. Ela ainda é descrita — na verdade mais do que nunca antes — como se não fosse determinada por seres mortais, moldada pela política, pela história e pelo mercado, mas, sim, como se houvesse uma autoridade divina lá em cima que emitisse um mandamento imortal sobre o que faz uma mulher ser agradável de se ver.
Essa "verdade" é vista como Deus costumava ser visto — no alto de uma hierarquia, com sua autoridade o ligando a seus representantes na terra: jurados de concurso de beleza, fotógrafos e, em último lugar, o homem comum. Mesmo ele, o último elo, tem uma parte dessa autoridade divina sobre as mulheres, como o Adão de Milton tinha sobre Eva: "ele por Deus, e ela por Deus nele". O direito de um homem de julgar a beleza de qualquer mulher, enquanto ele próprio não é julgado, não é questionado porque é considerado divino. Tornou-se de tamanha importância que a cultura masculina o exerça porque ele é o último direito não contestado a permanecer intacto dentre a antiga lista dos privilégios masculinos: aqueles que se acreditava terem sido concedidos por Deus, pela natureza ou alguma outra autoridade absoluta para que todos os homens exercessem sobre todas as mulheres. Dessa forma, esse direito é exercido diariamente com severidade muito maior para compensar os outros direitos sobre as mulheres e as outras formas de controlá-las, hoje perdidos para sempre.
Muitos escritores perceberam as semelhanças metafísicas entre os rituais da beleza e os rituais religiosos. A historiadora Joan Jacobs Brumberg observa que o estilo mesmo dos primeiros livros de regimes "ressoava com referências aos conceitos religiosos de tentação e pecado'' e "repetia lutas calvinistas"; Susan Bordo fala de "a esbeltez e a alma"; a historiadora Roberta Pollack Seid pesquisa a influência sobre a "cruzada para perda de peso" do evangelismo cristão no "aumento espetacular de grupos e livros para perda de peso, de inspiração evangélica". (O Sistema de Jesus para Controle do Peso, A resposta de Deus à gordura — Perca-a, Reze e o peso desaparece, Mais de Jesus e menos de mim, e Ajude-me, Senhor — o Diabo me quer gorda!).' 'Nossa nova religião'', escreve ela a respeito da histeria do controle do peso, "... não oferece a salvação, somente um ciclo interminável de pecado e redenção precária."
O que ainda não foi reconhecido é que essa comparação não deveria ser nenhuma metáfora. Os rituais da reação do sistema contra o feminismo não imitam simplesmenteos cultos e religiões tradicionais, mas os suplantam sob o aspecto funcional. Eles estão literalmente reconstituindo uma nova fé a partir de antigas crenças, estão literalmente recorrendo a técnicas tradicionais de mistificação e controle do pensamento para transformar as mentes das mulheres de forma tão radical quanto qualquer onda evangélica do passado.
Os Ritos da Beleza são uma inteligente combinação de vários cultos e religiões. No tocante às religiões, esta é mais vigorosa e mais sensível às mudanças nas necessidades espirituais dos fiéis do que a maioria delas. Nela está amalgamada uma miscelânea de itens de diversas crenças, que são abandonados quando não mais cumprem sua função. Como o mito maior, a estrutura dessa religião se transforma com flexibilidade para se contrapor aos vários desafios que lhe impõe a autonomia feminina.
Suas imagens e seu método são uma imitação grosseira do catolicismo medieval. A ascendência que ela alega ter sobre as vidas das mulheres é papal em seu absolutismo. Sua influência sobre as mulheres modernas, como a da igreja medieval sobre toda a cristandade, vai muito além da alma do indivíduo para moldar a filosofia, a política, a sexualidade e a economia dos nossos tempos. A igreja deu forma e conteúdo não só à vida religiosa, mas a todos os eventos da comunidade, não tolerando nenhuma divisão entre o secular e o religioso; os Ritos permeiam os dias da mulher moderna de forma igualmente rigorosa. À semelhança da igreja medieval, acredita-se que os Ritos sejam baseados num credo tão palpável quanto a Pedra do Vaticano: que existe essa coisa chamada beleza, que ela é sagrada e que as mulheres deveriam procurar alcançá-la. As duas instituições são ricas, vivendo de dízimos. Nenhuma das duas perdoa os hereges e os pecadores impenitentes. Os membros das duas igrejas aprendem o catecismo desde o berço. As duas precisam de uma fé incondicional por parte de seus seguidores a fim de se manterem.
Por sobre essa raiz de catolicismo falsamente medieval, os Ritos da Beleza foram acumulando alguns novos elementos: um luteranismo em que as modelos de moda são as Eleitas, e as restantes de nós as Amaldiçoadas; uma adaptação episcopal às exigências do consumismo, na qual as mulheres podem aspirar ao paraíso através de boas obras (lucrativas); um judaísmo ortodoxo de compulsões à pureza, na exegese minuciosa e trabalhosa de centenas de leis com seus comentários sobre o que comer, o que vestir, o que fazer ao corpo e em que momento; e um núcleo baseado nos mistérios elêusicos na cerimônia da morte e do renascimento. Por cima de tudo isso, foram fielmente adaptadas as técnicas de doutrinação das seitas modernas. Suas grosseiras manipulações psicológicas ajudam a conquistar adeptos numa era refratária a profissões de fé espontâneas.
Os Ritos da Beleza conseguem isolar as mulheres tão bem porque ainda não é publicamente reconhecido que as devotas estão presas a algo mais sério do que uma moda e de maior penetração social do que uma deformação pessoal da própria imagem. Os Ritos ainda não são descritos em termos do que realmente representam: um novo fundamentalismo que transforma o Ocidente secular, tão repressor e dogmático quanto qualquer réplica sua no Oriente. À medida que as mulheres vão lidando com uma hipermodernidade à qual só recentemente foram admitidas, uma força que é de fato uma hipnose de massa lança sobre elas seu peso total para forçá-las a uma visão de mundo medieval. Enquanto isso, a enorme catedral em cuja sombra elas vivem nem chega a ser mencionada. Quando outras mulheres se referem a ela — em tom de desculpas, num sussurro — elas o fazem apenas como se estivessem descrevendo uma alucinação que todas as mulheres podem ver, e não uma realidade concreta cuja existência ninguém reconhece.
Os Ritos conquistaram as mentes femininas na esteira do movimento das mulheres porque a opressão detesta o vácuo. Eles devolveram às mulheres o que elas haviam perdido quando Deus morreu no Ocidente. Na última geração, a transformação dos costumes sexuais liberou as restrições religiosas sobre o comportamento sexual da mulher. O declínio no comparecimento à igreja a partir do pós-guerra e o colapso da família tradicional reduziram a capacidade da religião de ditar um código moral para as mulheres. Na perigosa ausência momentânea da autoridade religiosa, ficou implícito o risco de que as mulheres poderiam aplicar a autoridade na tradição conciliatória e comunitária que Carol Gilligan pesquisou em sua obra In a Different Voice. Essa reivindicação de autoridade moral bem poderia levar as mulheres a promover duradouras mudanças sociais de acordo com seus princípios e a ter a fé para chamar essas mudanças de vontade divina. A compaixão poderia substituir a hierarquia; um respeito tradicionalmente feminino pela vida humana poderia prejudicar seriamente uma economia baseada no militarismo e um mercado de trabalho baseado no uso de pessoas como recursos descartáveis. As mulheres poderiam reformular a sexualidade humana como prova da natureza sagrada do corpo em lugar da sua natureza pecaminosa, e a crença antiga e persistente que equipara a feminilidade à profanação poderia se tornar obsoleta. Para evitar tudo isso, os Ritos da Beleza recentemente assumiram a tarefa que a tradicional autoridade religiosa não conseguia mais cumprir com convicção. Ao instilar nas mulheres uma força policial interior, a nova religião muitas vezes se sai melhor no controle das mulheres do que as religiões mais antigas.
A nova religião teve rápida expansão, tirando proveito da momentânea sensação de perda de objetivo moral, ao recriar para as mulheres em termos físicos os antigos papéis sociais nos quais as "boas mulheres" eram valorizadas: mães, filhas e esposas castas e abnegadas. Funções mais antigas de defesa da decência — do que é "adequado" — e da distinção entre o que é decente e indecente foram recriadas sob forma ritual. Nos últimos vinte e cinco anos, à medida que a sociedade em geral se libertava das restrições da tradicional moralidade religiosa, o antigo código moral — de abrangência reduzida, mais contraído do que nunca, mas com suas funções inalteradas — cingiu ainda mais os corpos femininos.
De sua parte, muitas mulheres acolheram bem essa prisão reconfortante em diversos níveis. Novas religiões se disseminam com o caos social, e as mulheres estão criando normas num mundo que destruiu as antigas verdades. Essa religião lhes devolveu o sentido de importância social, os vínculos entre as mulheres e a confortável estrutura moral perdida com a antiga religião. A competição no mundo externo premia a amoralidade, e as mulheres precisam se adaptar para ter sucesso. Os Ritos da Beleza, porém, proporcionam à mulher que trabalha uma forma de levar uma ordem moral particular e inócua a um papel no qual um excesso de escrúpulos antiquados pode sabotar sua carreira. As mulheres, enquanto profissionais no mundo secular, ficam muitas vezes isoladas. Já no papel de seguidoras de uma religião elas compartilham um vínculo confortável.
A sociedade em geral já não atribui importância religiosa à virgindade de uma mulher ou à sua castidade conjugal. Ela não lhes pede que confessem seus pecados ou que mantenham uma cozinha meticulosamente kosher. Nesse ínterim, depois da destruição do pedestal da "boa" mulher, mas antes que ela tivesse acesso ao verdadeiro poder e autoridade, ela foi destituída do antigo contexto no qual lhe eram atribuídos os louros da importância e do elogio. As mulheres devotas haviam sido de fato chamadas de "boas" (muito embora só fossem "boas" desde que continuassem sendo devotas). No entanto, na época secular que acompanhou paralelamente o movimento das mulheres, embora elas não mais ouvissem todos os domingos que eram amaldiçoadas, também raramente ouviam que eram "santas". Enquanto Maria havia sido "bendita... entre as mulheres", e a mulher forte do judaísmo ouvia que "seu valor excedia o dos rubis", tudo que a mulher moderna pode esperar ouvir é que ela está divina.
Os Ritos da Beleza também seduzem as mulheres por atenderem à sua atual avidez por poesia e cor. À medida que elas abrem caminho em meio a um espaço público masculino, que é muitas vezes prosaico e emocionalmente estagnado, os sacramentos da beleza brilham com maior intensidade do que nunca. Como seu tempo é invadido por exigências de todos os tipos, os produtos rituais lhes fornecem um álibi para reservar algum tempo para si mesmas. O que oferecem de melhor é um sabor de mistério e sensualidade que compensa as mulheres pelos dias passados sob a luz árida do local de trabalho.
As mulheres foram preparadas para receber os Ritos pelo seu relacionamento histórico com a igreja. Desde a Revolução Industrial, a "esfera separada" à qual as mulheres eram relegadas atribuía a religiosidade especificamente à feminilidade. Isso, por sua vez, justificava o isolamento das mulheres de classe média da vida pública. Já que as mulheres eram classificadas como o "sexo puro", elas podiam ser obrigadas a ficar fora da batalha diária, preocupadas apenas com a manutenção dessa pureza. Da mesma forma, as mulheres hoje em dia são classificadas como o "belo sexo", o que as relega a uma preocupação de utilidade semelhante com a proteção da sua "beleza".
A feminilização pós-industrial da religião não dava, porém, às mulheres a autoridade religiosa. "Os Puritanos... adoravam um deus patriarcal, mas... nas igrejas da Nova Inglaterra havia mais mulheres do que homens", escreve a historiadora Nancy Cott em The Bonds of Womanhood, observando que enquanto a maioria feminina cresceu durante todo o século XIX, a hierarquia da igreja permaneceu "estritamente masculina". A feminilização da religião se intensificou paralelamente à secularização do mundo masculino. "Qualquer que tenha sido a expansão vivida pelo sistema religioso protestante nos Estados Unidos após a Guerra de Secessão, ela foi estimulada pelas mulheres e não pelos homens", afirma Joan Jacobs Brumberg. Até a geração atual, as mulheres não eram aceitas para a função de ministro ou de rabino. Até recentemente, elas eram instruídas a aceitar sem questionamento as interpretações religiosas masculinas sobre o que Deus quer que elas façam. Desde a Revolução Industrial, seus papéis envolveram não apenas a obediência religiosa, como também o humilde apoio às atividades da igreja, que incluía, segundo Ann Douglas em sua obra The Feminization of American Culture, a manutenção de cultos à personalidade do padre ou ministro local. Em suma, as mulheres têm uma curtíssima tradição de participação na autoridade religiosa, e uma longuíssima tradição de submissão a essa autoridade. Embora raramente controlassem os lucros, elas muitas vezes colaboraram com o pouco que tinham, sem questionamentos.
A religiosidade da mulher vitoriana servia à mesma intenção dupla dos Ritos. Do ponto de vista de uma sociedade dominada pelos homens, essa religiosidade mantinha as energias de mulheres instruídas e ociosas da classe média afastadas da rebeldia, de forma inócua e até mesmo útil. Do ponto de vista daquelas mulheres, a religiosidade emprestava significado a vidas improdutivas sob o aspecto econômico. A economista britânica Harriet Martineau observou a respeito das mulheres americanas de classe média que elas seguiam "a religião como uma ocupação" por serem impedidas de exercer todo o seu potencial de forças morais, intelectuais e físicas de outra forma. Nancy Cott escreve que "a morfologia da conversão religiosa sintonizava com a submissão e resignação esperadas das mulheres, enquanto oferecia uma confiança extremamente satisfatória às convertidas". Essa mesma saída sedutora funciona de maneira idêntica nos nossos dias.
A predisposição contrária às mulheres na tradição judaico-cristã deixou um terreno fértil para o surgimento da nova religião. Sua misoginia fazia com que as mulheres, muito mais do que os homens, tivessem de abolir o pensamento crítico se quisessem ser fiéis. Ao recompensar a humildade intelectual da mulher, ao acusá-las de pecado e culpa sexual e ao lhes oferecer a redenção apenas através da submissão a um mediador masculino, ela entregou à religião em surgimento um legado de credulidade feminina.
(Naomi Wolf - "O mito da beleza - como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres")
Assim se proclamava, nas monarquias, quando um rei morria ou era deposto e o sucessor vinha saudado. Mais importante do que o panegírico do que partia, era hora de olhar para a frente, com esperança ou receios.
Eu estava numa reunião no palácio São Joaquim, aqui no Rio, em 2005, durante o último conclave, almoçando com os bispos auxiliares, quando foi anunciada a fumaça branca. Saímos da mesa e corremos à televisão. Foi quando eu disse: “Não sei quem será, mas vai chamar-se Bento XVI”. Quando Ratzinger saiu no balcão, alguns me olharam como se eu tivesse feito uma adivinhação. Na verdade, foi uma aposta por eliminação. O novo papa certamente não retomaria a série dos Pios, não seria um seguimento de João ou de Paulo, nem do composto João Paulo. Restava, no século XX, um papa, Bento XV, que ficara poucos anos, de 1914 a 1922, mas que interrompera a caça antimodernista de Pio X. Não saiu papa um reacionário como o secretário de estado espanhol Merry Del Val (o Sodano ou o Bertone daquele momento). Era um bispo de uma diocese importante, Bolonha, que fora pouco antes denunciado de modernista, em carta, a seu antecessor.O novo papa abriu a missiva, lacrada por ocasião da morte de Pio X e convocou o assustado acusador.
Uma lógica destas apontaria, indo um pouco mais atrás, na eleição de 1878, para um possível futuro Leão XIV. O papa anterior do mesmo nome também interrompera a prática de seus dois antecessores reacionários, Gregório XVI e Pio IX. E indicou que esperassem o próximo consistório, para verem seu novo estilo. E foi então quando nomeou cardeal o grande teólogo John H. Newman, convertido da Igreja Anglicana, crítico do Vaticano I e mal visto pelo outro cardeal inglês, Henry Manning. Aliás, o papa Bento XVI tinha Newman em grande admiração e o beatificou em 2010 (alguns historiadores, para incômodo de muitos, falaram de um companheiro de toda a vida, enterrado junto com ele, numa possível porém incerta relação homosexual, o que não diminuiria em nada seu enorme valor). Mas atenção, voltando ao presente, as lógicas não se repetem e o futuro é sempre inesperado.
Com o atual precedente, um papa pode (e até deve, em certos casos) deixar o poder ainda em vida, num movimento que passa dos poderes absolutos e pro vita, para uma visão com possíveis prazos para o exercício de um poder que aparecia nos últimos séculos como irrenunciável .
O importante agora é descobrir o que estará diante do futuro papa. Tudo parece indicar que João Paulo I morreu ao tomar consciência da dimensão dos problemas que o esperavam. Carlo Martini (que tantos sonhamos como um possível “Papa bianco”), em 1999 lembrou temas estratégicos a serem enfrentados por possíveis futuros concílios: a posição da mulher na sociedade e na Igreja, a participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, a sexualidade, a disciplina do matrimônio, a prática do sacramento da penitência, a relação com as Igrejas irmãs da ortodoxia e, em um nível mais amplo, a necessidade de reavivar a esperança ecumênica. Poderíamos agora dizer que são temas colocados hoje diante do papa que vem aí.
Cada vez é mais importante desbloquear posições congeladas. Uma, urgente, seria superar o impasse criado por Paulo VI em 1968, no seu documento Humanae Vitae, sobre a contracepção. Tratar-se-ia de aceitar, ao nível do magistério, o que já é uma prática normal de um número enorme de fiéis: o uso dos contraceptivos.
Mas nos textos de teólogos espanhóis, sacerdotes alemães e austríacos, declarações de bispos australianos, estão outros pontos da agenda. Haveria que começar por superar a dualidade e uma hierarquia rígidas entre ministérios ordenados (dos padres) e não ordenados, abrindo para uma pluralidade de ministérios (serviços), como na Igreja dos primeiros séculos. E aí se coloca o tema da ordenação das mulheres. No dia da ressurreição, as mulheres foram as primeiras a serem enviadas (ordenadas) a anunciar a Boa Nova (Mateus, 28,7; Marcos, 16,7:”Ide dizer aos discípulos e também a Pedro…”; Lucas, 24,9; João, 20,17).
Teria também que desaparecer o que é apenas próprio da Igreja latina desde o milênio passado: o celibato obrigatório. O celibato é próprio da vida religiosa em comunidade e não necessariamente dos presbíteros (sacerdotes). Os escândalos recentes de uma sexualidade reprimida e doentia estão exigindo uma severa revisão. Isso levaria a ordenar homens e mulheres casados.
Há que levar a sério a ideia da colegialidade do Vaticano II, sendo o bispo de Roma o primeiro entre todos no episcopado. Numa visão ecumênica, o segundo seria o Patriarca de Constantinopla, que vive no Fanar, um bairro grego pobre de Istambul, onde estive no ano passado. Os encontros fraternos e a oração em comum de João XXIII e de Paulo VI com o patriarca Atenágoras, foram abrindo caminho nessa direção.
Claro, são antes de tudo anseios, mais do que possibilidades certas. Mas a história é inexorável e, pouco a pouco, posições que pareciam petrificadas podem ir sendo revistas ou, pelo menos, vão crescendo pressões nesse sentido. A Igreja, arejada por tempos novos na sociedade, seculares e republicanos, não poderá ficar à margem de um processo histórico contagiante. Talvez temas congelados terão que esperar futuros pontificados ou outros concílios, mas estarão cada vez mais presentes e incômodos, num horizonte que desafia os imobilismos.
(Luiz Alberto Gómez de Souza)
O termo não é bíblico. Foi uma invenção de Tertuliano (160-200), um dos primeiros Padres da Igreja, e alude à maldade universal da espécie humana, aditada pela tradição ao primeiro pecado cometido por Adão. Mas quem o elevou duzentos anos mais tarde ao nível de doutrina foi Santo Agostinho aportando, como se fora pouco, uma idéia horrenda: a noção de que a mancha do pecado se transmite de geração em geração mediante o acto da procriação. Agostinho de Hipona, (354-430), considerado o maior dos padres da Igreja e um dos mais eminentes doutores da Igreja ocidental, foi um personagem estranho e um caso clínico de neurose obsessivo-compulsiva. Na sua juventude viveu uma vida dissoluta e libertina, entregue a todos os vícios inimagináveis, e, por "méritos" próprios, foi apodado de "o grande pecador" e "o maior “putanheiro” de Mauritânia". Mais tarde desenvolveu um sentimento obsessivo de culpa e se converteu durante nove anos ao maniqueísmo, uma religião dualista baseada na luta entre o corpo material (carnal e perverso) e a alma espiritual, com a crença de que a salvação da maldade apenas se podia lograr dominando os desejos carnais. Aos iniciados era-lhes exigida castidade total e uma vida dedicada à oração; não se chegava a tanto com os meros aspirantes (de nível espiritual inferior) que não obstante eram proibidos de ter relações sexuais durante o período fértil de suas mulheres e, portanto, procriar. Já com trinta anos Agostinho se converteu ao cristianismo e além de demonstrar, como quase todos os conversos, atitudes bastante fanáticas a favor de sua nova religião e contrárias à antiga, absorveu desta (maniqueísmo) conceitos totalmente estranhos àquela. Tanto o pecado original como o conceito da predestinação dupla (segundo a qual e devido a que a salvação e a glória estão predestinadas, a condenação e a destruição também serão predestinadas) inventado por Agostinho, são, sem ter sido nunca formulados como tal, inerentes ao maniqueísmo. A predestinação dupla nunca teve êxito dentro do catolicismo e os teólogos católico-romanos rejeitaram a doutrina, insistindo em que não existe nenhuma predestinação para o mal e que aqueles que sofrem condenação são os únicos responsáveis disso. O expoente mais entusiasta da predestinação dupla foi João Calvino, resultando que a Igreja romana condenou o conceito explicitamente no Concílio de Trento reconfirmando que o homem tem livre arbítrio e inclinação natural ao bem. O horroroso da predestinação dupla é que, se aceitamos, e apenas como hipótese, a verdade do relato bíblico de Adão e Eva, a serpente e a expulsão do Éden (difere apenas em detalhes de outros mitos similares do antigo Oriente Próximo e de outras regiões) por ter comido a fruta proibida da árvore do bem e do mal (da sabedoria), implicaria que Deus teria predestinado Adão e Eva a revelar-se contra Ele para depois ter justificativa suficiente para castigá-los, a eles e a toda a sua descendência, o que converteria Deus num autêntico monstro, no mesmíssimo Satanás.
Ao contrário, a Igreja adotou com entusiasmo a doutrina do pecado original já que apresentava a perfeita justificação para a sua misoginia e o seu vilipendio das relações sexuais. Estas em vez de serem consideradas como um presente de Deus pelos seus efeitos positivos orgásticos sobre a saúde tanto física como mental e pelo seu prazer sexual que ajuda a manter o vínculo na parelha humana, foram julgadas como se fossem obra do mesmo demónio. Surpreendente, porque parece que à Igreja nunca lhe entrou na cabeça que se Deus tivesse algo contra a sexualidade humana nos poderia ter criado, como aos animais, com um instinto de procriação limitado a um par de períodos de cio anuais. De qualquer modo, a recusa doentia da sexualidade de um ex-putanheiro como Agostinho ficou demonstrada quando exclamou: "Se apenas pudéssemos ter filhos sem a sordidez da cópula". Com esta atitude poder-se-ia esperar que também tivesse introduzido no cristianismo o conceito anti-procriativo do maniqueísmo, mas certamente intuiu que a Igreja não iria comungar com um conceito que em poucas gerações teria significado a sua própria desaparição.
Se a predestinação dupla punha, pelas suas implicações, em cheque o conceito mesmo de Deus, o conceito de pecado original é totalmente anticristão por negar os fundamentos básicos do cristianismo: a expiação do pecado e propiciação de Deus mediante a encarnação, a vida, o sofrimento e a morte de Jesus. Cristo é o Salvador que morreu para redimir a humanidade de seus pecados. Seria totalmente incompreensível se esta redenção não incluísse o mais importante dos pecados, o pecado original, se este na verdade tivesse existido antes da sua chegada.
Como sempre quando há que defender conceitos extravagantes, a Igreja, também neste caso, deitou mão dos Evangelhos para justificar-se. E supostamente hão encontrado algo em Rm. 7, 1; Jo. 5,19 e Lc. 11,1. No último pelo menos há uma referência à "maldade", nos outros dois nem isto sequer. Parece que para a Igreja os Evangelhos valem tanto para um roto como para um descosido e podem ser usados para demonstrar qualquer coisa e o seu contrário também.
HYPERLINK:
* Vaticano decreta o fim do limbo para não-batizados
A acumulação dos escândalos dos padres pedófilos indica uma difusão do fenómeno maior daquilo que parece. O problema, porém, vai muito mais além, estando profundamente enraizado no inconsciente da Igreja institucional. Tentemos entender porquê. Apesar das declarações de princípio e das desculpas explícitos pelas injustiças seculares com as mulheres, incluindo a Inquisição e as fogueiras, a estrutura da Igreja permanece irredutivelmente patriarcal e misógina, condenando ao silêncio a outra metade do céu, com terríveis consequências incalculáveis de ordem ética, cultural, afetiva e social . A discriminação de gênero não é, portanto, uma questão menor, mas um princípio básico da Igreja, que só pode gerar contradições explosivas. Por exemplo, diante da evidente idealização da Virgem, do seu culto e das suas capacidade de mediação com Deus, às mulheres é negado o poder de transformar o pão e o vinho no Corpo e no Sangue de Jesus. Maria, que trouxe em seu ventre o Salvador, não tem o poder, ao contrário de qualquer sacerdote do sexo masculino, de realizar o rito sacramental que o traz de volta à vida, recriando-o simbolicamente para alimentar os fiéis. O problema é que psicologicamente não é possível eliminar uma parte da natureza humana, sem graves repercussões sobre a identidade, impulsos e desejos. O bloqueio do prazer natural do homem com a mulher cria um libidinal engarrafamento, uma sede insaciável de prazer substitutivo, que se dirige para o menino, a menina. Não existe, de fato, uma via cristã para a sexualidade, o erotismo, mas apenas a sua negação absoluta, que o sexto mandamento sanciona, fora da reprodução, como pecado. Enquanto os princípios éticos da Igreja de Roma forem cunhados pelo mais rígido patriarcalismo, negação do eros, proibição dos padres se casarem, é inevitável uma uma profunda distorção, seja para possíveis actos de homossexualidade induzida, seja a uma pulsão irreprimível à pedofilia. A repressão pode, temporariamente, apaziguar os espíritos, mas sem intervenções estruturais, a pedofilia, talvez tentando camuflar-se melhor, continuará a reproduzir-se.
Eis algumas pérolas do pensamento ultra-machista dos Padres e outros santos varões da Igreja:
"No que se refere à natureza do indivíduo, a mulher é defeituosa e mal nascida, porque o poder activo da semente masculina tende à produção de um perfeito parecido no sexo masculino, enquanto que a produção de uma mulher provem de uma falta do poder activo." (Tomás de Aquino, Summa Theologica)
"Nada rebaixa tanto a mente varonil de sua altura como acariciar mulheres e esses contactos corporais que pertencem ao estado do matrimónio." (Santo Agostinho, "De Trinitate")
"E tu não sabes que és uma Eva? A sentença de Deus sobre este teu sexo vive nesta era: a culpa deve necessariamente viver também. Tu és a porta do demónio; és a que quebrou o selo daquela árvore proibida; és a primeira desertora da lei divina; és a que convenceu aquele a quem o diabo não foi suficientemente valente para atacar. Assim facilmente destruíste a imagem de Deus, o homem. Devido à tua deserção, incluso o Filho de Deus teve que morrer." (Tertuliano, Padre da Igreja, "De Culta Feminarum", 1.1)
"É Eva, a tentadora, de quem nos devemos cuidar em toda a mulher... Não consigo entender que utilidade pode ter a mulher para o homem, se se exclui a função de conceber crianças." (Santo Agostinho de Hipona, Padre da Igreja)
"As mulheres não devem ser iluminadas nem educadas de forma alguma. De facto, deveriam ser segregadas, já que são causa de insidiosas e involuntárias erecções nos santos varões." (Santo Agostinho de Hipona, Padre da Igreja)
Não se compreende muito bem como continuam a existir mulheres cristãs. Uma estranha síndrome de "Belém"?
Cá por mim ainda bem que existe a mulher. Se ela não existisse, como é que iria funcionar a mola?
Primeiro os Estados Unidos, depois a Irlanda, Alemanha e Holanda: a sombra de pedofilia desestabiliza o equilíbrio da Igreja Católica e levanta questões sérias sobre a castidade de seus sacerdotes . O Papa Bento XVI tem falado recentemente de "crimes vergonhosos", um flagelo a ser combatido. Para Hans Kung, a ferida é mais profunda, não se trata de casos isolados, mas de um problema interno ao próprio clero: o celibato. Kung, um dos principais teólogos católicos antes de lhe ser revogada a "missão canônica" e que convidou mesmo o actual pontífice para professor da cadeira de teologia em Tübingen, é um dos mais influentes críticos das doutrinas da Igreja de Roma.
Para ele, a única solução para travar os desvios morais de alguns círculos religiosos é acabar com a obrigação insustentável do celibato. O teólogo suíço desmonta as alegadas certezas, atrás das quais se refugiam frequentemente as hierarquias católicas. "O abuso sexual por parte dos padres não têm nada a ver com o celibato. Protesto! (...) Como então são registados em massa propriamente dentro da igreja católica, liderada por celibatários? Claramente, essas falhas não são apenas atribuíveis ao celibato. Mas este é a mais importante expressão estrutural da abordagem que os clérigos de topo têm com respeito a sexualidade. " Kung, conhecido nos círculos do Vaticano como “o rebelde” critica esta regra imposta "que não existia ainda no primeiro milênio e foi criada no século XI." Critica o silêncio da hierarquia eclesiástica e “a prática do encobrimento de décadas de casos abusivos". "A Igreja não deve esperar um mea culpa também por parte do Papa, na colegialidade dos bispos?" Solicita Kung.
Em entrevista à emissora de televisão pública suiça SF (21/03/2010) Hans Kung acusa: "não é exagero dizer que dificilmente houve um homem na Igreja Católica que sabia tanto quanto o papa sobre os casos de abusos". E acrescenta: "Desde a Idade Média temos uma teologia da sexualidade inibida"... "Isso culmina na lei do celibato, que tem a ver com esses casos de abusos", acrescentou.
Segundo Küng, este é um dos motivos pelos quais o papa, em sua carta pastoral, não assumiu qualquer responsabilidade pelos casos de abuso. "O mais importante seria que o papa liberasse a discussão sobre o celibato. Muita coisa melhoria se o celibato fosse abolido", disse Küng.
Küng acusa Bento XVI de "absolutismo", por não querer ouvir vozes que exigem reformas. Segundo ele, o celibato obrigatório é também a causa da escassez de sacerdotes, que na Alemanha atingiu uma dimensão dramática, levando um padre a ter de cuidar de duas ou mais paróquias.
Por outro lado, o psiquiatra austríaco Reinhard Haller, que tem muitos padres entre os seus pacientes, calcula que apenas 10% dos padres conseguem viver a vida inteira no regime celibatário. Segundo ele, a Igreja subestima a importância da sexualidade e, além disso, não prepara os padres psicologicamente para uma renúncia à sexualidade. “Um dos meus pacientes, um padre acusado de abuso sexual, contou que o capítulo sexualidade foi concluído no seminário com um simples "vocês já são homens adultos" - lembra Haller, que já atuou também como perito em processos contra acusados de pedofilia.
Os escândalos de pedofilia são "um sinal de que precisamos de mudanças profundas, de uma revolução suave, no Papado e na hierarquia em Roma. São muito, muito, corruptos, e são-no há dois mil anos sem qualquer avaliação externa do que fazem. Precisamos de uma autoridade secular dentro da Cúria para ver o que se está a passar", vinca por sua vez a teóloga inglesa Myra Poole.
O celibato imposto, pode até não ser a causa direta dos abusos sexuais por parte dos padres pedófilos, mas que existe uma cultura que leva a casos de desvio sexual (pedofilia, homossexualismo, misoginia,...) na igreja romana, isso parece mais que evidente. Como sabemos, "Deus perdoa sempre, o Homem perdoa às vezes, mas a Natureza nunca perdoa"; a natureza vinga-se sempre e de forma avassaladora e trágica. O celibato obrigatório não passa de uma imposição castradora e contra natura. Ora acontece que a Igreja romana está a intoxicar-se com o próprio veneno que ela gerou. Curioso, não é?! Não existe pior cego que aquele que não quer ver!