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O clérigo foi punido após dizer que a Igreja precisa “analisar criticamente aquilo que está acontecendo na sociedade” 

 

 

A Igreja Católica decidiu excomunhar, na segunda-feira 29, o padre de uma paróquia em Bauru (SP) que criticou, durante uma cerimônia, o tratamento oferecido pelo Clero aos homossexuais. O vídeo, hospedado no site Youtube, gerou uma forte repercussão nas redes sociais e causou impacto na Diocese da região.
No vídeo, Roberto Francisco Daniel, mais conhecido como Padre Beto, defendeu que a “hoje em dia não dá mais para enquadrar o ser humano em homossexual, bissexual ou heterossexual” e “que o amor pode surgir em qualquer desses níveis”.
Segundo o padre Beto, a Igreja precisa “analisar criticamente aquilo que está acontecendo na sociedade”. Para ele, é necessário “ter humildade de ver que o Espírito Santo sopra onde Ele quiser”.
As declarações do padre, que é historiador e jornalista, culminaram na exigência de um pedido de retratação e na posterior excomunhão do clérigo por heresia e cisma.
Em seu perfil no Facebook, o padre escreveu que não vai retirar nenhum material postado por ele nas redes sociais, em seu site ou em qualquer outro espaço na internet. E reiterou: “A Igreja precisa ser um espaço dialogal para que as pessoas possam transcender de fato e se tornarem verdadeiros filhos de Deus em nosso universo contemporâneo. Se refletir é um pecado, eu sempre fui e sempre serei um Pecador”.
Segundo ele, o único objetivo de suas falas é fazer com que as pessoas se aproximem mais da vivência do amor pregado por Cristo nos Evangelhos.
Na mesma nota, ele disse preferir se desligar da Igreja a cumprir com a retração exigida pelo Bispo Dom Frei Caetano Ferrari. De acordo com o comunicado da Diocese de Bauru, “em nome da ‘liberdade de expressão’, (o padre Beto) traiu o compromisso de fidelidade à Igreja à qual ele jurou servir no dia de sua ordenação sacerdotal”. A carta elenca como motivos do desligamento do padre a recusa do diálogo e da colaboração.
Apoio. Ao menos mil fiéis lotaram a paróquia de São Benedito no domingo 28 para participar da missa de despedida do padre Beto. Durante a celebração, ele afirmou: “O mandamento do amor não é um mandamento, é algo vivo. Não se força, acontece. Cristo amou o ser humano como ser humano em si. Sem olhar rosto, sem olhar raça, sem olhar religião, sem olhar sexualidade. Cristo amou o ser humano, mas não se prendeu a preconceitos. É justamente assim que devemos amar. Temos que romper os preconceitos da nossa cabeça”.
“Vou continuar minha vida procurando, através de minhas reflexões, contribuir para a construção de uma sociedade mais humana e dialogal”, escreveu em seu perfil no facebook.
Confira a íntegra do comunicado de excomungação de Padre Beto abaixo:

Comunicado ao povo de Deus da Diocese de Bauru


É de conhecimento público os pronunciamentos e atitudes do Reverendo Pe. Roberto Francisco Daniel que, em nome da “liberdade de expressão” traiu o compromisso de fidelidade à Igreja a qual ele jurou servir no dia de sua ordenação sacerdotal. Estes atos provocaram forte escândalo e feriram a comunhão eclesial. Sua atitude é incompatível com as obrigações do estado sacerdotal que ele deveria amar, pois foi ele quem solicitou da Igreja a Graça da Ordenação.

 

O Bispo Diocesano com a paciência e caridade de pastor, vem tentando há muito tempo diálogo para superar e resolver de modo fraterno e cristão esta situação. Esgotadas todas as iniciativas e tendo em vista o bem do Povo de Deus, o Bispo Diocesano convocou um padre canonista perito em Direito Penal Canônico,  nomeando-o como juiz instrutor para tratar essa questão e aplicar a “Lei da Igreja”, visto que o Pe. Roberto Francisco Daniel recusa qualquer diálogo e colaboração. Mesmo assim, o juiz tentou uma última vez um diálogo com o referido padre que reagiu agressivamente, na Cúria Diocesana, na qual ele recusou qualquer diálogo. Esta tentativa ocorreu na presença de 05 (cinco) membros do Conselho dos Presbíteros.

 

O referido padre feriu a Igreja com suas declarações consideradas graves contra os dogmas da Fé Católica, contra a moral e pela deliberada recusa de obediência ao seu pastor (obediência esta que prometera no dia de sua ordenação sacerdotal), incorrendo, portanto, no gravíssimo delito de heresia e cisma cuja pena prescrita no cânone 1364, parágrafo primeiro do Código de Direito Canônico é a excomunhão anexa a estes delitos. Nesta grave pena o referido sacerdote incorreu de livre vontade como consequência de seus atos.

 

A Igreja de Bauru se demonstrou Mãe Paciente quando, por diversas vezes, o chamou fraternalmente ao diálogo para a superação dessa situação por ele criada. Nenhum católico e muito menos um sacerdote pode-se valer do “direito de liberdade de expressão” para atacar a Fé, na qual foi batizado.

 

Uma das obrigações do Bispo Diocesano é defender a Fé, a Doutrina e a Disciplina da Igreja e, por isso, comunicamos que o padre Roberto Francisco Daniel não pode mais celebrar nenhum ato de culto divino (sacramentos e sacramentais, nem mais receber a Santíssima Eucaristia), pois está excomungado. A partir dessa decisão, o juiz instrutor iniciará os procedimentos para a demissão do estado clerical para enviar a Roma o procedimento penal para sua “demissão de estado clerical".

 

Com esta declaração, a Diocese de Bauru entende colocar “um ponto final” nessa dolorosa história.

 

Rezemos para que o nosso Padroeiro Divino Espírito Santo, “que nos conduz”, ilumine o Pe. Roberto Francisco Daniel para que tenha a coragem da humildade em reconhecer que não é o dono da verdade e se reconcilie com a Igreja, que é “Mãe e Mestra”.

 

 

Bauru, 29 de abril de 2013.

 


 

Por especial mandado do Bispo Diocesano, assino os representantes do Conselho Presbiteral Diocesano.

 

 

(Padre que defendeu homossexuais é excomungado)

 

 

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A NÃO ESQUECER


A excomunhão das vozes discordantes do sistema tem sido uma constante da Igreja romana, sobretudo a partir de Inocêncio III (1160-1216) até aos nossos dias. Não admira que essa Igreja, dogmática e preconceituosa, perca cada vez mais seguidores e se converta cada vez mais numa "seita". "A Igreja Católica corre risco de se transformar numa grande seita ocidental" (L. Boff)

 

"Inocêncio III, Conde de Segni, tornou-se Papa com a idade de 37 anos, era um soberano nato: teólogo educado em Paris, jurista astuto, hábil orador, administrador inteligente e refinado diplomata. Nunca antes ou depois teve um papa tanto poder como ele. A revolução desde cima (Reforma Gregoriana) iniciada por Gregório VII, no século XI atingiu seu alvo com ele. Em vez do título de "Vigário de Pedro", ele preferia para  cada bispo ou sacerdote o título usado até ao século XII de "Vigário de Cristo" (Inocêncio IV converteu-o incluso em "Vigário de Deus"). Ao contrário do primeiro século e sem nunca alcançar o reconhecimento da Igreja apostólica Oriental, o Papa se comportou desde então, como um monarca, legislador e juiz de todo o cristianismo ... até agora.
Com Inocêncio III manifestaram-se os primeiros sintomas de nepotismo e corrupção no Vaticano. Pode acontecer que Inocêncio III tenha sido o único papa que, por causa das qualidades extraordinárias e poderes que tinha a Igreja, poderia ter determinado outro caminho completamente diferente; isso poderia poupar-lhe o cisma e o exílio do papado dos séculos XIV e XV, bem a Reforma Protestante da Igreja do século XVI. Não há dúvida de que,no século XII, isso teria tido como consequência uma mudança de paradigma dentro da Igreja Católica que não iria dividir a Igreja, mas sim a teria renovado e, ao mesmo tempo, teria reconciliado as igrejas ocidental e oriental.
O pontificado de Inocêncio III não só acabou sendo uma culminação, mas acima de tudo um ponto de viragem. Já na sua época se manifestaram os primeiros sintomas de decadência que, em parte, têm sobrevivido até hoje como sinais de identidade do sistema da cúria romana: o nepotismo, a extrema ganância, a corrupção e os negócios financeiros duvidosos." (Hans Küng)

 

Não podemos esquecer sequer a vida escandalosa dentro dos muros do Vaticano:
Inocêncio III escutava a leitura do relatório do legado papal Arnaldo Amalric, que informava sobre o assassinato de sete mil albigenses, todos mulheres, crianças e idosos, enquanto fornicava com uma empregada doméstica; Inocêncio IV atiçava o fogo da Inquisição enquanto fornicava com escravos, tanto homens como mulheres, e, depois, mandava açoitá-los; João XII, estuprador de peregrinas, mulheres casadas, viúvas, meninas e crianças, morreu por causa de uma martelada na cabeça acertada por um marido ciumento; Bento VII foi assassinado pelo esposo, ciumento, da mulher com quem ele estava na cama; Inocêncio III entrou para a história como um dos mais famosos colecionadores de objetos e jogos eróticos da época; Inocêncio VIII, o papa que assinou a bula Summis desiderantes affectibus desencadeando uma das mais ferozes perseguições contra as bruxas, apreciava fazer prisioneiras jovens mulheres para depois deflora-las e enviá-las para a fogueira, evitando assim qualquer indiscrição; Leão X, papa homossexual, tinha que montar a cavalo sentado de lado por causa de úlceras anais de que sofria, como resultado de seus muitos encontros amorosos em becos escuros de Roma, e forçou mais de sete mil prostitutas da Cidade eterna a entregar uma parte de seus ganhos à mais alta autoridade da Igreja, ou seja, a ele mesmo; Paulo IV, finalmente, passava seus dias comissionando aos escritores obras eróticas com que preenchia suas longas noites, enquanto uma empregada doméstica ou uma nobre dama o masturbava.
 Não se deve esquecer, nem mesmo os papas que transformaram a tiara em objeto do desejo de familiares e amigos: Bento IX era sobrinho de João XIX, que por sua vez tinha sucedido a seu irmão, Bento VIII, neto de João XII; João XI era filho ilegítimo de Sergio III; João XXIII era o filho ilegítimo de um bispo; Paulo I sucedeu a seu irmão, Estêvão II; o Papa Silvério foi gerado a partir do sémen do papa Hormisdas; Inocêncio I foi fruto do sémen do Papa Anastácio I; Bonifácio VI era o filho de um bispo; o papa Romano era irmão do Papa Martinho e ambos eram filhos de um sacerdote.” (Eric Frattini - I Papi e il Sesso)

 

Salvo raras exceções, é esta cúpula da Igreja de Roma preconceituosa, inquisitorial, discriminatória e persecutória que tem prevalecido até aos nossos dias. Uma Igreja que tem caminhado no sentido contrário ao do avanço da ciência e do conhecimento, bem como de Francisco de Assis e do Evangelho:
  • No espírito de Inocêncio III, a Igreja é uma Igreja da riqueza, do arrivismo e da pompa,  da extrema ganância e dos escândalos financeiros. Em vez disso, no espírito de São Francisco, a Igreja é uma Igreja da política financeira transparente e da vida simples, uma igreja que está mais preocupado com os pobres, os fracos e os mais desfavorecidos, que não acumula riquezas ou capital, mas que luta ativamente contra a pobreza e proporciona condições de trabalho exemplares para seus trabalhadores.
  • No espírito do Papa Inocêncio III, a Igreja é uma Igreja do domínio, da burocracia e da discriminação, da repressão e da Inquisição. Em vez disso, no espírito de São Francisco (1182-1226), a Igreja é uma Igreja do altruísmo, do diálogo, da fraternidade, da hospitalidade, mesmo dos inconformistas, do serviço despretensioso aos superiores e da comunidade social solidária que não exclui da Igreja novas forças e idéias religiosas, mas outorga-lhes um caráter frutífero.
  • No espírito de Inocêncio, a Igreja é uma Igreja da imutabilidade dogmática, da censura moral e do regime legal, uma Igreja do medo, do direito canônico que regula tudo e da escolástica que sabe tudo. Em vez disso, no espírito de Francisco, a Igreja é uma Igreja da mensagem alegre e do regozijo, de uma teologia baseada no Evangelho simples, que escuta as pessoas em vez de as endoutrinar desde cima, que não só ensina, mas também está constantemente aprendendo com elas." (Hans Küng)

Pelo exposto acima, no comunicado de excomunhão do P.e Beto, a Igreja é "Mãe e Mestra". Igreja "Mãe e Mestra" ou Madrasta? Nunca vi uma mãe segregar ou apartar os seus filhos, mas vejo a Igreja romana "excomungar" quem (como P.e Beto e tantos outros), lucidamente, se manifesta contra o preconceito e mentira dessa mesma Igreja. Será que esta Igreja é dona da verdade? Será que apenas existe a verdade da Igreja romana? Ou será que para o bispo de Bauru o Sol ainda gira à volta da Terra? Contrariamente aos ensinamentos de Francisco de Assis e do Evangelho, Dom Caetano, que até é franciscano, pura e simplesmente, renega os princípios da humildade onde cresceu e se formou. É preciso ser muito cara de pau, Dom Caetano! Bem prega frei Tomás... A Declaração de excomunhão por parte do Conselho Presbiteral da Diocese de Bauru acaba por reduzir o seu bispo à sua nulidade e insignificância:

"O padre (ou seja, o bispo) deprecia e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. – A desobediência a Deus, ou seja, a desobediência ao padre, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios prescritos para a “reconciliação com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivíduo a sujeitar-se ao padre; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são indispensáveis em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”... Axioma Supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao padre.” (“O Anti cristo”, F. Nietzche).



HIPERLINKS:
* VÍTIMAS DA PEDOFILIA: UMA METÁFORA DO CATÓLICO PERFEITO
* In Hoc Signo Vinces
* A caça às bruxas
* Esquecer 500 anos de massacres?
* A Inquisição e as mulheres
* O Culto à Virgem Maria e a Cultura de Submissão da Mulher
* O inconsciente da Igreja
*A vergonha da Igreja sobre José Saramago
*Sexo e Contradições na Igreja Católica
*A Verdade é a Vida!
*Pedofilia: padres vítimas do estigma
*A CAÇA ÀS BRUXAS (INQUISIÇÃO)
*"Os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa". (B. Pascal)
*Deus e dignidade
* Os hereges e a Inquisição
* Budismo versus cristianismo
*Igreja "casta e putana"
*Inquisição
*Inquisição
* TORQUEMADA E A SANTA INQUISIÇÃO
* A Santa Inquisição
* Inquisição - As acusações
*Verdades reveladas e verdades alcançadas
* Celibato obrigatório, o veneno que asfixiou a Igreja romana
* PECADO ORIGINAL, PRINCÍPIO DO "MAL" OU INÍCIO DA "CIÊNCIA"?
* O beijo de Judas e o beijo de Constantino

publicado às 07:01


Parabéns, Dom Caetano!

por Thynus, em 16.05.13

 

Parabenizamos Dom Caetano Ferrari, bispo da Diocese de Bauru, que fez prevalecer a coragem e tomou a atitude correta para defender a Igreja local (e universal), da qual é guardião da fé. Há quatro anos ele vem recebendo queixas de fiéis sobre posições do Pe. Roberto Francisco Daniel (Padre Beto) e buscando conversar com o sacerdote no sentido de conter seu afã de idéias “próprias” acerca do Magistério da Igreja, comprometendo assim o ensinamento da doutrina católica aos fiéis. O fato é que Padre Beto começou a agir como um livre pensador, e a dizer tudo o que pensa a respeito da Igreja, de modo contundente, e a gerar escândalo. Posição pessoal crítica e respeitosa, admite-se. Posição exibicionista, personalista e escandalosa é inaceitável em qualquer organização humana, muito mais quando se trata da Fé e da Moral cristãs. Neste caso, assumiu o sacerdócio com o compromisso de submeter-se ao Magistério da Igreja, parte do qual diverge despudoradamente e sem a mímina coerência e consistência intelectuais. Será que pensa ser um Leonardo Boff? Falta-lhe, no mínimo, em termos intelectuais, publicar mais de 80 livros e milhares de artigos,que compõem sua vasta bibliografia.
A crise se agravou quando ele extrapolou (avançou demais o sinal, como disse o Bispo), e começou a gravar vídeos e postar nas redes sociais, opiniões próprias enquanto sacerdote. Padre Beto não apenas falou barbaridades nos vídeos, como também tinha um estilo que chocava muitos fiéis que não esperavam tais comportamentos vindos de um padre. O próprio Bispo o chamou de "filho rebelde", cuja paciência se esgotou quando determinou que ele retirasse todo o material herético da Internet e se retratasse. Padre Beto recusou a retratação, disse que o Bispo não era seu pai (aliás, o Bispo é o “PADRE” maior, pai                traduzido do latim), e que ele manteria tudo o que dissera, porque para ele a "liberdade de expressão" valia mais. Justificou-se dizendo que  todos os seus pensamentos tinham como objetivo levar as pessoas a refletirem sobre questões defendidas pela Igreja. Diante da posição herética e cismática de Padre Beto, Dom Caetano não teve outra alternativa se não o da excomunhão.
Dom Caetano agiu certo, porque o que prevaleceu foi a coerência. Como Bispo ele tinha o dever de evitar que um sacerdote católico saisse por aí pregando coisas que não condizem com o pensamento da Igreja. Se Padre Beto quisesse ser um livre pensador, então tinha mesmo que deixar o sacerdócio (decisão que ele já havia tomado). Que ele fosse ser consultor de alguma organização não governamental, ou se tornasse político, ou mesmo professor e comunicador, onde pode expressar livremente as suas "reflexões", desde que ,obviamente, não enfrentem os interesses dos  detentores dessas instituições mantenedoras. Caso contrário, será posto na rua lá também. Mas não como sacerdote católico. Ao ser ordenado padre, ele havia feito juramento de fidelidade à Igreja, portanto, seu comportamento o expôs a uma situação insustentável. Ele não tinha o direito de como padre falar o que lhe viesse à cabeça, sem refletir sobre as conseqüências de seus atos. Os fiéis vão à Igreja e esperam receber os ensinamentos da doutrina católica. O que o Padre Beto estava pregando feria gravemente muitos princípios e valores da Igreja. Foi coerente então a sua saída, e mais coerente ainda a sua excomunhão, diante do modo herético e cismático com que agiu.
Ao contrário do que ele vem dizendo, a Igreja está aberta a ouvir, a perscrutar as coisas, e aprofundar as questões, nos ambientes e foruns adequados. Quando há graves impasses, o papa convoca concílios para que se chegue a um entendimento. Mas longe do escândalo, das querelas midiáticas e dos narcisismos televisivos. Padre Beto ganhou seus quinze minutos de fama, e agora terá muitas tribunas livres (se fôr conveniente a elas) para dizer o que ele acha disso ou daquilo, mas falará agora como padre excomungado, como um livre pensador. Que ele consiga refletir sobre tudo o que aconteceu e se converta. Parabenizamos Dom Caetano pela sua atitude firme! Zelou pelo seu dever, agiu como um pai que deu o remédio amargo ao filho, por amor a quem ele quer muito bem, como manifestou em sua entrevista quando solicitou a retratação de padre Beto. A Igreja continuará sendo mestra e mãe e Dom Caetano, pai afetuoso de seus padres, freiras e leigos de sua diocese.

(Valmor Bola;, doutor em sociologia; presidente da Conap/Mec-Comissão Nacional de Acompanhamento e Controle Social do Programa Universidade para Todos - Prouni)
NOTA À MARGEM: 
""No espírito do Papa Inocêncio III (1160-1216), a Igreja é uma Igreja do domínio, da burocracia e da discriminação, da repressão e da Inquisição. Em vez disso, no espírito de São Francisco (1182-1226), a Igreja é uma Igreja do altruísmo, do diálogo, da fraternidade, da hospitalidade, mesmo dos inconformistas, do serviço despretensioso aos superiores e da comunidade social solidária que não exclui da Igreja novas forças e idéias religiosas, mas outorga-lhes um caráter frutífero." (Hans Kung)
HYPERLINKS:
*Padre que defendeu homossexuais é excomungado
*Mais padre Beto, menos padre Marcelo
 

publicado às 20:03

 

 

A despeito do sopro purificador da Renascença, o espírito mau da Idade Média ainda pairava como um miasma sobre a face da Europa Ocidental. No século XV, o ar da Alemanha, da Boêmia, da França, da Itália e da Espanha impregnava-se da fumaça produzida pelas carnes em chama de milhares de homens e mulheres. Os mestres da hipocrisia descobriram que o caminho mais fácil é o de matar a crítica. E, assim, todos aqueles que discordavam da Igreja (ou cuja riqueza despertasse a cobiça voraz dos bispos e Papas) eram queimados vivos e suas propriedades confiscadas.
Tanto os dissidentes da Igreja como os ofensores políticos eram julgados hereges e queimados vivos, visto que os Papas e os príncipes agiam de comum acordo. A desobediência ao Estado era considerada traição ao céu, pois que os governadores do Estado se diziam ungidos de Deus. Opor-se ao governo, reconhecido pela Igreja significava um crime capital, não só contra o governo, mas também contra a Igreja.
É necessário que nos lembremos desta íntima união política entre a Igreja e o Estado, se quisermos compreender a história de Joana D’Arc. Tendo cometido, segundo a Igreja, uma ofensa política, era de prever-se, de acordo com o espírito da época, que ela fosse acusada de um crime “religioso”, julgada e queimada como herege. A um espírito moderno, toda a carreira da virgem de Orléans parece inacreditável. Para o supersticioso espírito do século XV, sua vida nada teve de vulgar, e sua morte era o único desfecho possível naquela circunstância.

Na Idade Média, todo o mundo conversava com anjos e acreditava em milagres. Um certo Irmão Ricardo, interpretando, como dizia, as vozes diretas do céu, agitou toda a cidade de Paris, num frenesi de evangelizador supersticioso. O monge carmelita Tomás Conecta, orientado, como alegava, pela vontade dos santos do céu, pregava na Bélgica e na França a um auditório de quinze mil pessoas de cada vez. Na Bretanha, uma jovem de nome Pierrette, assombrava seus compatriotas, dizendo-lhes que se achava em constante comunicação com o próprio Jesus. Espalhou-se a notícia de que um jovem pastor suava sangue nos dias santificados. Toda a província tinha seus homens e suas mulheres histéricos, que acreditavam e faziam outros acreditarem que eles viam e conversavam com os espíritos do céu.
Todos esses contos miraculosos de comunicação com os espíritos, Joana D’Arc, a pequena camponesa de Domrémy, os ouvira dos lábios piedosos de sua mãe. Nunca lhe ensinaram a 1er nem a escrever. Sua educação consistia quase exclusivamente em contos de fadas e mitos religiosos, nos quais aprendeu a crer como fatos reais. “Nascida sob as muralhas da Igreja” — para citar o historiador francês Michelet — “embalada para dormir ao som dos sinos e alimentada com lendas, ela mesma se tornou uma lenda viva.” Não longe da casa de seu pai, havia uma floresta na qual, como se acreditava, viviam fadas. Em cima, nas nuvens fugazes, ela via os anjos nos seus carros de fogo. Algumas vezes, quando seu pai se achava nos campos e sua mãe trabalhava em casa, sentavase ela na soleira da porta e escutava os ruídos da aldeia. Um murmúrio confuso, sonolento, esquisito — não seriam mesmo as vozes dos anjos a dirigir-lhe a palavra? A linha divisória entre este mundo e o próximo era muito vaga. Anjos e homens, na sua imaginação infantil, podiam confundir-se e conversar, tão naturalmente como dois vizinhos que se encontram na rua. Ouvir um anjo chamar alguém do céu não era mais surpreendente do que ouvir sua mãe chamar alguém da cozinha. Nisso não havia milagre. Pelo contrário, Joana reputaria um milagre se lhe dissessem que os anjos não
falavam aos filhos de Deus na terra.
Em síntese, ela vivia num mundo no qual era impossível distinguir o real do irreal. Os anjos poderiam descer a ela, na terra, e ela, por sua vez, poderia subir, para encontrar-se com eles no céu.
Mesmo assim, nesse mundo fantástico e encantador, existia uma horrível e incontestável realidade — a guerra com os ingleses. Esses ingleses, “amaldiçoados de Deus” (goddams que os franceses pronunciavam goddons) estavam devastando o infeliz reino de França. Os soldados ingleses colhiam as safras dos camponeses franceses. Queimavam suas casas e levavam o gado. Às vezes, no meio da noite, Joana era acordada pelos gritos dos fugitivos de outras aldeias. Uma vez, seus próprios pais foram obrigados a fugir dos invasores. Quando a família voltou ao lar encontrou a aldeia saqueada, a casa pilhada e a igreja em chamas.
A bondade dos santos do céu e a lamentável situação do reino de França — estes eram os dois fatos predominantes na vida da pequena camponesa de Domrémy. A França era querida dos santos — foi a idéia que sua mãe lhe imprimira no espírito, repetindo-a a cada momento — e eles exerciam todo o seu poder para expulsar os ladrões ingleses do solo sagrado. Profetizava-se que uma jovem se tornaria a salvadora de França. Merlin, o mágico, e Maria de Avignon, uma santa mulher que palestrava com os anjos, já tinham, ambos, previsto isso. E, assim, a criança olhava fixamente as nuvens, sonhando com o dia em que os anjos viriam buscar a salvadora para expulsar os ingleses da França.

Certa vez, num dia santo, no meio do verão, quando todas as pessoas piedosas jejuavam, e o céu e a terra pareciam mais próximos do que nunca, Joana julgou ouvir uma voz a falar-lhe através do silêncio. Era a voz do Arcanjo São Miguel que dizia: “Seja uma boa menina, Joana. Vá sempre à igreja.” Ela se assustou, mas não se surpreendeu.
Era sabido que os anjos falavam com outras pessoas. Por que não com ela? Afinal, São Miguel estava longe de ser um estranho para ela. Sabia a sua história e sua figura lhe era familiar; era, portanto, perfeitamente natural que ele lhe dissesse, como o padre da aldeia lhe teria dito, que fosse uma boa menina e que freqüentasse a igreja.
A ilusão de que os anjos lhe falavam crescia cada vez mais. Havia pouco tempo, o Arcanjo São Miguel encontrara-se com Santa Margarida e Santa Catarina. Estas, também, eram figuras familiares a Joana. Quando as via no ar, por cima de sua cabeça, reconhecia-as imediatamente através de seus quadros.
Joana contava treze anos de idade, quando teve seu primeiro encontro com anjos. Eles vinham conversar diariamente com ela e, não raro, várias vezes por dia. Ela os via perfeitamente e ouvia suas vozes mais distintamente quando os sinos da igreja badalavam. A princípio, falavam-lhe de assuntos comuns, mas um dia, São Miguel falou-lhe sobre o assunto que a interessava, isto é, da pena que sentia do reino de França. “Filha de Deus”, disse ele, “chegou o momento de deixares tua aldeia e ires em auxílio da França.” Em outra ocasião insistia para que ela restituísse o reino de França ao verdadeiro rei. A profecia de Merlin estava para cumprir-se.
Joana, a jovem camponesa de Domrémy, foi escolhida pelos poderes do céu para tornar-se a salvadora de França. Pouco a pouco ela se convenceu completamente de sua missão. A excitação de seu próprio desejo era tão viva no espírito da criança ignorante e supersticiosa mas altamente poética da Idade Média, que os seus pensamentos se revestiram de formas visíveis e assumiram a configuração de anjos que lhe transmitiam as ordens do Senhor.
“Deixe o lar e todos os entes queridos, Joana, e vá em auxílio do rei da França.”
“Mas”, replicou ela, toda trêmula, “eu sou apenas uma pobre moça. Não sei montar, nem
combater.”
São Miguel aconselhou-a então a ir ter com Roberto de Baudricourt, o senhor da cidade de Vaucouleurs e da aldeia de Domrémy. Este homem, assegurou-lhe o arcanjo, fornecer-lhe-ia homens e meios para a sua jornada a Chinon, onde o tímido delfim (herdeiro do trono) Carlos VII vivia no palácio real — um rei sem coroa numa terra conquistada.
Joana não foi bem-sucedida com Baudricourt. Ele se mostrava céptico quanto à missão da moça. Mas a plebe veio em seu auxílio. Como eram bons cristãos medievais, acreditavam em sua história de anjos, justamente por ser tão inacreditável. Compraram-lhe um cavalo e deram-lhe uma pequena escolta de homens armados. Baudricourt, movido, finalmente, pelo entusiasmo do povo, presenteou-a com uma espada.
E assim, em princípios da primavera de 1429, a Joana D’Arc de dezessete anos de idade, acompanhada por sua comitiva e vestida em trajes masculinos, partiu em sua estranha missão de curar a “triste miséria que era então a França”.

O delfim, Carlos VII, era uma criatura vacilante, fraca, crédula, ignorante e supersticiosa. Quando Joana D’Arc foi admitida à sua presença, estava cercado de um grupo de cortesãos. Contudo, ela não teve dificuldade alguma em distingui-lo porquanto, em matéria de fealdade, ele superava os demais presentes. Crente, devoto de todas as mascaradas religiosas e milagres do século XV, ouviu atentamente a história de Joana D’Arc. Ele também tinha sido inspirado pela profecia de Merlin e de Maria de Avignon. Uma virgem seria a salvadora da França. Agora, a prometida salvadora se achava diante dele, armada com o comando do Senhor e pronta a conduzi-lo à vitória e à coroa!
O ardente desejo da menina camponesa tornara-se a vontade do Rei Carlos VII.
De acordo com os planos dos anjos, isto é, de acordo com os seus próprios planos, cabia a Joana D’Arc solucionar dois deveres solenes: livrar a cidade de Orléans dos malditos ingleses e conduzir o delfim à Cidade de Reims, para ungi-lo com o óleo sagrado que se usara na coroação do Rei Clóvis, o fundador da realeza em França.
O rei aceitou a missão de Joana D’Arc e nomeou-a comandante-em-chefe do pequeno exército que lhe foi possível reunir sob seu estandarte. Nesse tempo era comum ver as mulheres combaterem lado a lado com os homens. Houve trinta mulheres feridas na Batalha de Amiens. Numerosas mulheres-soldados combateram na Boêmia, entre os partidários de João Huss. Na Idade Média quase não houve combates em que as mulheres não se sobressaíssem por seu heroísmo. Era, portanto, a coisa mais natural do mundo para Carlos aceitar os serviços militares de Joana D’Arc. Ele se lembrava das heroínas do Antigo Testamento, Débora e Judite, que, com o auxílio do céu, conquistaram os inimigos de Israel. Agora, estava uma nova profetisa indicada também pelos mensageiros do céu, para vencer os inimigos da França. Com São Miguel a ensinar-lhe o caminho, Joana D’Arc, a inspiradora donzela de Domrémy, ladeada por Santa Catarina e Santa Margarida, tornaria possível expulsar os goddams para sempre de seu reino!
Levantando um exército de 8.000 homens, uma força considerável para aqueles dias, ela partiu contra os ingleses que sitiavam a cidade de Orléans. O povo se admirava quando via a intrépida provinciana equipada com a armadura alvíssima, montada, à frente da coluna, num cavalo negro como carvão. A seu lado, ela tinha preso um machado de batalha e uma espada, e empunhava o estandarte branco onde se viam pintados Deus e os anjos, sobre um fundo de flor-de-lis. Ela lhes parecia um anjo guerreiro descido do céu. No entanto, não era belicosa por natureza. Preferia, se possível, expulsar os ingleses da França sem lutas. Jurava a si mesma que nunca empregaria sua espada para matar alguém. Quando chegou a Orléans, ditou aos ingleses uma carta de três simples palavras: Allez-vous-en (Ide embora). Os ingleses, naturalmente, não deram atenção a seu ultimato e aguardaram o ataque.
A história da Batalha de Orléans já é por demais sabida e não necessita repetição. A vitória final de Joana D’Arc sobre os ingleses não foi um milagre. O exército inglês, sob o comando do brava mas pouco inteligente Talbot, compunha-se somente de dois ou três mil homens ao todo, e uma boa parte deles era composta de franceses. Esta pequena força estava dispersa sobre as várias fortificações que cercavam a cidade. Não havia, praticamente, comunicação entre estas unidades espalhadas da força sitiada, e foi fácil a Joana entrar na cidade com o seu exército de salvadores. Exército esse que era considerado, tanto pelos franceses como pelos ingleses, um exército inspirado. O seu comandante, porém, não era Joana D’Arc e sim o Arcanjo São Miguel. Era desfecho já previsto que os ingleses cairiam ante o ataque desse terrível guerreiro que descera dos céus para expulsá-los de França.
As tropas francesas, como as inglesas, eram compostas de toda sorte de patifes que não tinham ilusões românticas sobre a glória da guerra. Encaravam-na como uma profissão agradável e lucrativa, idêntica à pirataria ou aos assaltos de estrada. Francamente grosseiros em suas atitudes para com a profissão a que se entregavam, não admitiam a possibilidade de ser um soldado um homem decente e respeitável. Certa ocasião, La Hire, o capitão do exército de Joana, em Orléans, observou que até o próprio Deus, uma vez alistado em seu exército, tornar-se-ia salteador. Mas, a presença de Joana, com seus santos invisíveis, transformou as tropas francesas em salteadores consagrados. Todo soldado do exército francês acreditava piamente que batalhões de anjos combatiam a seu lado. E essa crença era compartilhada pelos ingleses. Alguns destes pensavam que os chamados “auxiliares celestes das tropas” eram demônios e não anjos. Mas de uma coisa estavam certos: combatiam contra poderes insuperáveis. Estavam aptos a competir com as forças da terra, mas contra os poderes do céu ou do inferno nem um inglês poderia.
Em suma, os ingleses foram expulsos de Orléans, não só pelo próprio medo do sobrenatural, como também pelos franceses, mais numerosos.

Depois de ter levantado o cerco de Orléans, Joana D’Arc conseguiu aumentar o efetivo de seu exército para 12.000 homens. Agora, por toda a parte olhavam-na como uma santa, ou como uma feiticeira, de acordo com a causa que cada qual abraçava: inglesa ou francesa. Encontrou-se com o delfim Carlos em Tours, e juntos avançaram, ao longo das margens do Loire, em direção à cidade de Reims. O exército inglês, impelido pelo terror, fugia. Aqui e ali, em Jargeau, Patay, Troyes, fizeram tentativas de resistência, mas os inspirados soldados de Joana D’Arc varreram-nos do caminho por onde passavam. Ela tentava evitar combates sempre que era possível. Queria que os ingleses saíssem da França, mas não os odiava. Não gostava de ver sangue. Lamentava o sofrimento de seus inimigos tanto como o de seus próprios homens. Um soldado ferido, fosse inglês ou francês, significava para ela um irmão cristão em miséria. Após a Batalha de Patay, ela chorou ao ver tantos soldados inimigos mortos no campo. Um de seus companheiros ferira mortalmente um prisioneiro inglês. Apeando-se do cavalo, ajoelhou-se ao lado do inglês agonizante, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e murmurou palavras doces enquanto ele expirava.
Mas os seus devotos salteadores, prontos para lutar e morrer por ela, eram incapazes de compreender o seu espírito de misericórdia. Apesar dos protestos, eles mataram a maioria dos prisioneiros das batalhas com os ingleses. O vitorioso exército francês chegou a Reims em 15 de julho de 1429.
Dois dias após, Carlos VII era coroado pelo arcebispo na famosa catedral. Muitos de seus cortesãos e cortesãs estavam presentes à coroação. Sua rainha, Maria d’Anjou, porém, tinha ficado em Chinon, “a fim de poupar a despesa da viagem”. Carlos VII não foi somente um rei sem dinheiro, mas também o menos generoso dos homens.
A tarefa preliminar de Joana D’Arc estava agora finda. Levantara o cerco de Orléans e promovera a coroação do Rei Carlos. Competia-lhe agora acabar de expulsar os ingleses do território nacional. Mas a auréola de sua popularidade começava a se desvanecer. Seus soldados, acostumados agora à sua comunicação diária com os anjos, não se deixavam mais arrebatar por ela. O esplendor de suas visões celestiais decaía à luz do dia. Quanto mais tempo ela se demorasse com os homens, tanto mais estes se impacientavam com ela, pois que ela lhes proibia a pilhagem, privava-os dos prazeres da profanação e condenava-os a uma vida de castidade a ‘que não estavam habituados. Ela procurava, diziam, fazer deles simples mulheres. Muitos de seus soldados se revoltaram e alguns desertaram.
Por outro lado, seus inimigos faziam planos para a sua destruição. Havia quatro grupos distintos que desejavam vê-la eliminada: os ingleses, os franceses aliados a esses, os cortesãos de Carlos, invejosos de sua influência junto ao rei, e os arcebispos e bispos, enciumados de sua familiaridade com os anjos.
Os ingleses, após a Batalha de Azincourt (1415) possuíam a maioria das províncias ao norte do Loire. Estavam ansiosos por estender seu domínio sobre todo o reino de França. Mas Joana D’Arc, a diabólica feiticeira inspirada de Domrémy, não só impedia o progresso inglês, mas ameaçava tirar-lhes o território que já tinham conquistado à custa de tanto esforço e tanto sangue. Estavam, pois, dispostos a impedir sua atividade a qualquer preço.
Aliados a eles, estavam alguns nobres franceses que tinham esperanças de alcançar benefícios próprios com a vitória dos ingleses sobre o Rei Carlos. O principal dentre eles era o Duque de Borgonha, Filipe, o Bom, cujo real nome deveria ser Filipe, o Pouco Bom. (Ele era pai de 18 filhos ilegítimos.) A coroação de Carlos VII foi um golpe terrível pára Filipe. Mais rico, mais capaz e bem mais poderoso que o delfim, sua esperança era tornar-se o senhor de toda a França sob a proteção da Inglaterra. Mas o advento de Joana D’Arc cortou seus planos pela raiz. Junto com os ingleses estava resolvido a puni-la pela sua intromissão.
Mais perigosos ainda do que esses inimigos declarados, eram os que fingiam ser seus amigos. Os insinceros cortesãos de Carlos VII, e particularmente seu Cons. Jorge de La Trémouille, temiam a franqueza e a incorruptível honestidade de Joana D’Arc. La Trémouille era vigoroso, dominador e traiçoeiro. Repudiou sua primeira mulher e casou-se com outra cujo marido matara. Insinuara-se nas boas graças do rei, por meio de mentiras e lisonjas. Era um hipócrita, dos piores. Pronto a trair o seu rei — pois estava secretamente aliado aos ingleses — fez tudo o que pôde para se ver livre da menina camponesa, que percebia claramente suas intenções, e a qualquer momento poderia chamar a atenção do rei sobre a sua traição. Fiel a seu caráter, portanto, tratava Joana com todas as demonstrações de respeito e secretamente tramava sua queda.
Mas de todos os seus inimigos os mais temíveis eram os padres. O arcebispo de Reims, o bispo de Beauvais e a totalidade da faculdade clerical da Universidade de Paris estavam decididos a conseguir a sua morte. Ela ousara comunicar os planos de Deus a seus compatriotas sem haver recebido a permissão da Igreja. Presumindo falar diretamente com os anjos, ela violara a santidade do clero, pois somente ao clero era permitido conversar com os poderes do céu. A Igreja afirmava ser a única intérprete entre Deus e o homem. As revelações de Joana D’Arc, eles pensavam (e se revelavam sinceros em seus pensamentos) , só poderiam ter vindo do diabo, desde que não vinham através da Igreja. Ela era uma herege, uma traidora do céu e uma fonte de perigo para o clero. Por isso, deveria ser morta.
A traição dos inimigos de Joana provou ser mais poderosa do que o patrocínio de seus anjos. Na Batalha de Compiègne caiu em uma cilada armada pelas manobras de alguns de seus compatriotas. Os franceses que a capturaram, venderam-na por 10.000 libras de ouro. Os ingleses, por sua vez, para terem certeza absoluta de sua morte, entregaram-na às mãos da Inquisição. Foi assim que, embora prisioneira de guerra, Joana D’Arc foi julgada e condenada como. herege.
O homem que presidiu seu julgamento foi Pedro Caucron, bispo de Beauvais, Era um cristão devoto. A Universidade de Paris fê-lo comendador publicamente, pela sua “coragem e perseverança nos trabalhos, nas vigílias, nos sofrimentos e tormentos por amor à Igreja”. A última frase de sua comenda deveria ser emendada assim: “e os tormentos que ele infligiu a outros por amor à Igreja”. Era-lhe agradável o cheiro que exalava da carne queimada dos hereges. Foi ele quem no Concílio de Constança, o mesmo Concílio, lembremo-nos, que determinou a morte de João Huss, defendeu a tese de que era permitido em certas ocasiões matar sem as formalidades da justiça.
Quando os ingleses entregaram Joana D’Arc às mãos de Pedro Caucron, para ser julgada, eles realmente assinaram sua sentença de morte. Não tinham intenção alguma de deixá-la viva. Combinaram que, caso ela não fosse condenada como herege pela Igreja, deveria ser devolvida aos ingleses. Era como na aposta: “cara, você perde; coroa, eu ganho”. Ao iniciar o julgamento, dois dos padres presentes, na qualidade de juízes denunciaram todo o processo como ilegal. Um destes padres foi removido prontamente e encarcerado por Cauchon. O outro teve o bom senso de escapar antes que os seus superiores tivessem a oportunidade de puni-la.
O julgamento durou 4 meses. O número de juízes cresceu de 42, no começo, a 63, na parte final. Perseguiram-na como uma matilha de cães. As acusações que faziam contra ela eram, na maioria, absurdas. A principal acusação era o seu pecado de se ter comunicado com o céu, sem o auxílio da Igreja. Em outras palavras, era criminosa porque tinha se submetido à vontade de Deus e não à dos padres. Argumentavam que os poderes sobrenaturais que apareceram a Joana eram demônios em vez de santos. Visto serem os juízes 63 e Joana uma só, aqueles já tinham a questão ganha. Mesmo quando soube que sua sentença estava lavrada, Joana era ainda a única no julgamento que demonstrava uma firme presença de espírito. Numa das sessões, quando todo o bando negro de corvos eclesiásticos começou a falar contra ela, de uma só vez, Joana replicou docemente: “Por favor, bons pais, não falem todos simultaneamente. Estão sujeitos a se confundirem a si próprios.”
A comédia terminou a 30 de maio de 1431. Joana D’Arc foi condenada a ser queimada viva, e Pedro Cauchon foi condecorado mais uma vez, pela Universidade de Paris, pela “grande solenidade e o justo e santo espírito” com que presidira ô julgamento.
Tendo-a condenado à morte, os representantes da Igreja entregaram-na ao braço secular. A Igreja, para traduzir uma de suas frases favoritas em latim, “tinha horror ao derramamento de sangue”. Ela nunca executava diretamente as mortes que desejava. Sentenciava meramente as pessoas à morte, e então orava por suas almas, enquanto o Estado se incumbia de sua execução.
Pouco tempo antes de queimarem Joana D’Arc, o Rev. Prof. Nicolau Midi, da Universidade de Paris, pregou um sermão em sua homenagem. “Quando um membro da Igreja está doente”, começou ele, “a Igreja toda está doente.” E depois tendo-lhe provado que devia morrer “pelo bem da Igreja”, concluiu com as palavras, “Joana, ide em paz; a Igreja não mais pode defender-vos.”
Esta era a fórmula pela qual os padres se absolviam a si próprios de todas as máculas do assassínio de suas vítimas.
Mas Joana D’Arc sabia da verdade. Apontando para Pedro Cauchon, exclamou: “Bispo, eu morro por sua causa!”

O epílogo dessa trágica farsa foi decretado cinco séculos e meio mais tarde, quando o Papa, chegando à conclusão de que os mensageiros de Joana D’Arc eram anjos e não demônios, revogou a sentença de sua morte e transformou-a numa santa.

(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")

publicado às 21:16

 

 

São Francisco foi um produto à parte da Igreja, mas Dante foi seu produto mais perfeito. O catolicismo de São Francisco nada tinha a ver com a grandeza da Igreja. Tivesse ele sido um maometano, um budista, ou um judeu, de qualquer maneira poderia ter produzido o divino poema de sua vida. O catolicismo de Dante, porém, fazia parte integrante de toda a sua pompa. Tivesse Dante sido qualquer coisa, menos católico,nunca poderia ter escrito o seu Inferno. São Francisco e Dante representam, respectivamente, a humanidade e o catolicismo em seus melhores aspectos. São Francisco tentou salvar todos os homens, tanto os católicos, como os não-católicos, dos sofrimentos deste mundo. Dante tentou mandar todo o mundo, exceto alguns poucos católicos piedosos, ao fogo perpétuo e aos sofrimentos do outro mundo.
São Francisco fala por todas as épocas. Dante é meramente o porta-voz da Idade Média. É a voz da Igreja medieval. Seu poema é a melhor apologia da Igreja e sua pior acusação. É um quadro completo da beleza e da beatice do espírito medieval. Este espírito, em sua melhor forma, isto é, o espírito de Dante e o da Igreja Católica em geral, amava intensamente e odiava ainda com mais intensidade. Amava tudo dentro dos limites da Igreja, e odiava tudo fora desses limites. Seu ódio era, na verdade, devido ao seu amor. Ensinava-se a todo católico que Deus punia os filhos transviados, a fim de corrigi-los porque Ele os amava, e, tentando ser êmulos da bondade de Deus, os católicos da Idade Média resolveram corrigir os filhos desencaminhados neste mundo, torturando-os e matando-os, se necessário, porque eles os amavam. G. K. Chesterton, a voz do catolicismo hodierno, diz em um trecho de seu livro sobre São Francisco, que “não há nada incompatível entre amar uma pessoa e matá-la”. O espírito medieval de Chesterton compreende perfeitamente o espírito medieval do século XIII. Dante compadecia-se dos pecadores do Inferno, e, em alguns casos, como no de Francesca de Rimini, a quem conhecera desde a infância — amava-os. Contudo, também gostava de vê-los pagar pelos seus pecados, porque supunha serem esses sofrimentos da vontade de Deus. Dante, como a Igreja que representava, procurou não só ser o intérprete de Deus, mas também o seu promotor. Era um homem com o coração de um poeta universal e com o espírito de um padre medieval.
Demorei-me um pouco mais discorrendo sobre este pensamento, porque é de grande importância compreender o espírito de Dante se quisermos compreender o espírito da Idade Média, pela simples razão de que Dante é o próprio espírito dessa época.

Nasceu em 1265, trinta e nove anos depois da morte de São Francisco, e trinta e quatro depois da adoção oficial da Inquisição como um argumento convincente na pregação do evangelho. Seu pai era um próspero advogado na cidade de Florença. Quando criança, aprendeu três coisas acima de todas as outras: adorar a Deus, ser leal à sua cidade e lutar pela sua Igreja. Ensinaram-lhe que havia neste mundo duas espécies de indivíduos: os cristãos, a quem Deus amava, e os não-cristãos, a quem Ele odiava, aprendendo porém a amá-los se eles fossem induzidos ou forçados a se tornarem cristãos. Para aqueles que amava, Deus tinha seu Paraíso. Para os que odiava, Deus tinha o Inferno. E, entre estes dois, levantava-se a montanha do Purgatório, como uma espécie de degrau entre Seu ódio e Seu amor. Para Dante, todas essas coisas não eram contos de fadas: eram reais. Céu, Inferno e Purgatório tinham uma localização definida num mapa fixo. Segundo os melhores conhecimentos de Dante, quando as pessoas morriam, iam infalivelmente para um destes três lugares. O Inferno para Dante era tão certo quanto o é a Austrália para aqueles que nunca estiveram lá, mas que leram a seu respeito nos compêndios de Geografia. A Bíblia, para Dante, era uma fonte infalível de Geografia.
Além da Bíblia, Dante foi educado na infalibilidade de Aristóteles. Os católicos da Idade Média tinham simpatizado com as obras de Aristóteles e de Platão. Sob alguns aspectos, de fato, o catolicismo medieval não foi mais do que o platonismo batizado. Os cristãos tinham que agradecer aos maometanos e judeus pelo seu conhecimento dos filósofos gregos, visto que os maometanos traduziram para o árabe os manuscritos gregos, e os judeus, do árabe para o latim, a única língua clássica compreendida pelos católicos romanos. Assim, Dante estudou Aristóteles, e muitas vezes interpretou-o erroneamente em terceira mão, isto é, em uma tradução feita de outra tradução.
Dante aprendeu de Aristóteles e de Platão que a alma descia do céu e que aspirava a voltar para lá “como a água caída das nuvens em forma de chuva, sobe novamente em forma de vapor”. Uma vez descida, a alma torna-se rude pelo seu contato com a dureza do corpo. A vida, portanto, é um campo de batalha entre os apetites do corpo e a felicidade da alma. Negar os sentidos do corpo é purificar as aspirações da alma. Em outras palavras, devemos almejar a felicidade do céu, renunciando aos prazeres da terra. Se vivemos muito agradavelmente cá embaixo, nossa alma tornar-se-á tão coberta de inutilidades, que terá de ser purificada nos fogos do Inferno, antes de poder voltar ao céu e à santa presença de Deus.
Assim a filosofia de Aristóteles e de Platão tornara-se sutilmente metamorfoseada na moral do cristianismo medieval. Esta doutrina do Céu e do Inferno, tendo a alma humana como prêmio pelo qual ambos disputavam eternamente, ficou profundamente gravada no espírito do jovem Dante. Recebeu bons ensinamentos de Teologia Católica e Filosofia grega. Quanto à ciência, aprendeu-a da Bíblia. Sabia muito pouco acerca do mundo que habitava, mas pensava saber muito acerca do mundo em que ia morrer. Como os outros católicos fervorosos de seu tempo, Dante se interessava muito mais por Dite, a capital do Inferno, e por Jerusalém Dourada, capital do Céu, do que por Florença, cidade onde vivia. Mesmo assim, tomou parte ativa na política de sua cidade.
No século XIII, Florença era um campo de batalha entre os Guelfos, partidários do Papa, e os Gibelinos, sectários do imperador. Dante começou sua carreira como Guelfo, pela simples razão de que seu pai já o fora também. Com a idade, porém, desgostou-se com a desonestidade e a pequenez de alguns Papas. Trocou de campo, unindo-se ao partido dos Gibelinos.
Dante deu largos passos em sua carreira política. Com 35 anos apenas foi eleito um dos principais magistrados de Florença. Dois anos depois, porém, seu partido foi derrotado. Nesses dias de paixões absurdas e cruzadas históricas, uma derrota política quase sempre significava não só desgraça, mas também exílio e morte. O ódio da Idade Média era perseverante. Dante foi expulso de Florença e sentenciado a ser “queimado vivo”, onde quer que fosse encontrado.
Tornou-se um homem sem pátria. “O mundo terrestre atira-o para fora de sua órbita”, e sua imaginação sombria começou a morar no mundo mais hospitaleiro da morte. Impossibilitado de se vingar de seus inimigos na Itália, consolou-se imaginando as torturas mais engenhosas para seus inimigos no Inferno. Todos esses indivíduos foram feitos para sofrer pelo prazer de Dante e para a glória de Deus. Dividiu o Inferno em vinte e quatro círculos, cada qual aparelhado com seus instrumentos de tortura apropriados para os tipos particulares dos pecadores. A visão do Inferno de Dante é tão cheia de vícios quanto magnífica. É a obra de uma imaginação sublime e amargurada. “Ele escreveu muitas vezes”, para citar Santayana, “com uma paixão não esclarecida pelo raciocínio.” Contudo, nunca nos devemos esquecer de que ele também escreveu como um cidadão da Idade Média, filho da Igreja Católica. Pôs nas câmaras de tortura do Inferno tanto os seus
inimigos pessoais como os inimigos da Igreja, e, por inimigos da Igreja, Dante classificava todos aqueles que não eram católicos. Nada exemplifica a intolerância da Igreja medieval tão claramente como o fato de Dante negar a quaisquer dos antigos pagãos a entrada no Céu. Seu único pecado consistia no fato de eles terem nascido cedo demais para serem batizados! O amor infinito a Deus, segundo Dante, não era suficientemente grande para incluir outros que não fossem católicos. Até Virgílio, o grande mestre que guiara Dante através dos complicados labirintos do Inferno, e o trouxera são e salvo às portas do Céu, teve de permanecer, ele também, no limbo do desejo eterno sem esperança, pois Virgílio também tinha nascido cedo demais para ser um cristão.
Essa intolerância e essa insensibilidade egoísta aos sofrimentos de todos aqueles que por acaso não conseguiram alcançar as doutrinas da Igreja estão mais adiante ilustradas em diversas passagens espantosas da Divina Comédia, das quais mencionarei somente duas. A primeira delas está no segundo canto do Inferno; Beatriz, que goza a eterna felicidade no Céu, diz a Virgílio (linha 91) que, devido à graça de Deus, as misérias dos pecadores do Inferno não a tocam. Isso estava de pleno acordo com o temperamento selvagem da Idade Média. Mesmo um dos mais piedosos dos escritores medievais, Santo Tomás de Aquino, chegou a ponto de dizer que Deus em sua bondade intensifica a felicidade dos santos do Céu, permitindo-lhes contemplar as torturas dos pecadores no Inferno. A outra passagem que mencionarei está no último canto do Purgatório. Virgílio está descrevendo o limbo do Inferno (linhas 28 a 34) a Sordello, uma das almas do Purgatório. “Lá embaixo”, diz-lhe Virgílio, “moro com as crianças inocentes arrancadas da vida pelas garras da morte, antes de terem sido eximidas do pecado humano.” Em outras palavras, de acordo com a doutrina de Dante, não somente os hereges, infiéis e pagãos, mas até as crianças indefesas deviam sofrer para sempre o Inferno, se tivessem a infelicidade de morrer antes de serem batizadas. O mundo em que Dante vivia era vicioso, estreito, estúpido, ignorante e vergonhosamente intolerante. Se compreendermos o espírito de Dante, também compreenderemos facilmente o espírito das Cruzadas e as inquisições da Idade Média. Era um espírito que se comprazia em criar beleza e destruir a vida humana. A Idade Média foi bela. É um fato que não pode nem necessita ser negado. Mas a beleza só não basta. Um terremoto é belo, como o é também uma avalancha, uma tempestade no oceano, uma erupção vulcânica, os raios dum relâmpago, um assassínio cuidadosamente planejado, ou uma batalha entre dois exércitos selvagens. Há uma grandiosidade no horror e uma beleza mesmo na morte. Mas é a grandiosidade e a beleza da desarmonia, da destruição, da loucura, de um mundo doentio dividido contra si próprio. Esta é a beleza do poema de Dante e do. século xiii em que ele viveu. Durante mil anos a Europa prosseguiu com ardor, sob a ilusão, louca de que Deus desejava que todos os seus filhos fossem cristãos ou amaldiçoados. Dante herdou essa ilusão e assim sucedeu com os membros da Inquisição: Dante exprimiu-a num poema e os inquisidores usavam o poema como uma fonte de informações para os seus próprios intentos destruidores. Dante assassinou os inimigos da Igreja apenas em sua imaginação, mas os inquisidores, homens práticos e não poetas, queimaram-nos realmente. De acordo com o cálculo de Voltaire, nada menos de dez milhões de hereges foram queimados vivos “por instigação da Igreja”.
O poema de Dante é a “Divina Comédia” de um dos supremos sonhadores do mundo. É a tragédia humana de um de seus mais lamentáveis consumadores de erros clamorosos.

Dante morreu em 1317, e com ele, assim dizem, terminou a Idade Média. Contudo, tais afirmações arbitrárias estão historicamente incorretas. Infelizmente para a paz e o progresso da espécie humana, muitos milhões de homens e de mulheres do mundo inteiro ainda vivem na intolerância e na disputa da Idade Média.

(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")

publicado às 07:42

 

Existem diferentes versões sobre quem foi o verdadeiro fundador da chamada Santa Aliança, o serviço de espionagem do Vaticano. Mas terá sido o papa Pio V (1566-1572) quem, em 1566, organizou o primeiro serviço de espionagem papal no sentido de lutar contra o protestantismo representado por Isabel I de Inglaterra.
Protegido pelo poderoso cardeal Juan Pedro Caraffa (o futuro papa Paulo IV), Miguel Ghislieri foi chamado a Roma para assumir a direcção de uma missão especial. Ghislieri foi encarregado pelo papa de criar uma espécie de serviço de contra-espionagem, que se ocuparia, de forma piramidal, em obter informações de todos aqueles que pudessem violar os preceitos papais e os dogmas da Igreja e por isso pudessem ser julgados pela Inquisição.
O jovem presbítero era muito devotado às sociedades secretas e o Santo Ofício era para ele uma das ”sociedades secretas” com maior poder no seu tempo. O trabalho realizado pelos agentes de Ghislieri nas regiões de Como e de Bergamo chamaram a atenção dos poderosos de Roma. Em menos de um ano, quase mil e duzentas pessoas, desde agricultores a nobres, foram julgadas pelo tribunal da Inquisição e mais de duas centenas foram consideradas culpadas, depois de serem submetidas a terríveis torturas e executadas.
A tortura da corda consistia em atar as mãos do presumido herege atrás das costas e o preso era levantado através de uma outra corda presa no tecto. Com o corpo suspenso, era solto por breves momentos para que caísse com o seu próprio peso. O preso ficava a um metro do solo e com essa violenta sacudidela as extremidades deslocavam-se.
Uma outra das torturas mais utilizadas era a da água. Os carrascos estendiam a vítima num cepo de madeira em forma de canal e colocavam um abraço, lenço fino molhado na garganta, enquanto lhe tapavam o nariz para que não pudesse respirar. Um dos verdugos enfiava-lhe água pela boca e pelas narinas e assim o preso não tinha nenhuma possibilidade de respirar. Quando o médico da Inquisição mandava parar com esse tormento, muitos dos réus já estavam mortos.
Em 1551, Miguel Ghislieri, devido aos serviços prestados, foi promovido por Caraffa, que o nomeou geral da Inquisição em Roma, sob o pontificado de Júlio III (1550-1555). Com Ghislieri como geral, a Congregação do Santo Ofício dispôs de todas as condições para alcançar os objectivos a que se propunha. Em primeiro lugar, foi realizada uma reforma do chamado Conselho da Suprema, e o papa nomeou um grupo de cardeais para o controlarem. Os purpurados faziam ao mesmo tempo de juizes e de conselheiros do Pontífice no caso de levar a juízo pessoas relevantes da sociedade romana.
Foi Ghislieri quem, no início de 1552, estabeleceu as sete classes de delitos susceptíveis de serem julgados pelo tribunal do Santo Ofício: os hereges; os suspeitos de heresia; os que protegiam os hereges; os magos, bruxos e feiticeiros; os blasfemos; os que resistissem às autoridades ou agentes da Inquisição; e os que quebrassem, ofendessem ou violassem os selos ou símbolos do Santo Ofício.
A partir desse mesmo ano, Ghislieri criou em toda a cidade uma autêntica rede de espiões, que operavam desde os lupanares da cidade até às cozinhas dos palácios dos nobres de Roma. Todas as informações de qualquer natureza recolhidas pelos agentes da Inquisição eram entregues pessoalmente a Ghislieri por intermédio de dois sistemas: de viva voz e pelo chamado Informi Rosso (Relatório Vermelho). Este último consistia num pequeno pergaminho enrolado numa cinta vermelha com o escudo do Santo Ofício. Segundo as leis vigentes, o rompimento do selo era punido imediatamente com a morte. Os agentes de Ghislieri registavam nesses pergaminhos todas as informações com que acusavam, e muitas vezes sem nenhuma prova, qualquer cidadão de Roma de violar as normas da Igreja e que podiam ser apreciadas por um tribunal da Inquisição. O Informi Rosso era depositado num pequeno vaso de bronze colocado para esse efeito na sede romana do Santo Ofício.
Durante anos, o geral da Inquisição criou uma das maiores e mais eficazes redes de espiões e um dos melhores arquivos de dados pessoais dos cidadãos de toda a Roma. Ninguém se movimentava ou falava nas ruelas ou praças da cidade sem que Ghislieri o não soubesse. Ninguém se movimentava ou falava dentro do Vaticano sem que o geral da Inquisição o não conhecesse.
A 23 de Maio de 1555, e depois de um breve pontificado com menos de um mês do papa Marcelo II, o cardeal Juan Pedro Caraffa, sem a oposição do sector imperial nem do sector francês, foi eleito papa no conclave. O embaixador de Veneza, Giacomo Navagero, definia assim o novo papa de setenta e nove anos: ”Caraffa é um papa de um temperamento violento e fogoso. É demasiado impetuoso no tratamento dos assuntos da Igreja e por isso o velho Pontífice não tolera que ninguém o contradiga”.
Caraffa, já como papa Paulo IV, chegou a temer o grande poder de Ghislieri. Em Roma, a populaça chegou mesmo a definir o geral da Inquisição como ”o papa na sombra”, mas apesar de tudo o pontífice concedeu a Miguel Ghislieri a púrpura cardinalícia. A partir daí Ghislieri o inquisidor tornar-se-ia mais perigoso e mais poderoso. Muitos membros do Colégio Cardinalício não permitiriam que, a partir do posto ocupado na temível Inquisição, ele dirigisse os destinos da Igreja Católica.
Os agentes de Ghislieri vangloriavam-se muito e impunham o terror nas ruas de Roma. Os espiões do cardeal, conhecidos como os ”monges negros”, escolhiam uma vítima e esperavam que ela seguisse por uma rua isolada. Nesse momento, era assaltada e metida numa carruagem fechada hermeticamente e levada para uma sala da Inquisição. Um frade que foi testemunha disso relatou a chegada dos sequestrados ao palácio do Santo Ofício em Roma, assim publicada na obra de Leonardo Gallois, Historia General de la Inquisition, de 1869:
Deixava-se a vítima num piso inferior do primeiro pátio, ao lado da porta principal. A vítima começava ali a sua iniciação numa sala circular onde dez esqueletos pregados na parede lhe anunciavam que por vezes naquela hospedaria se cravava em vida os hóspedes para os deixar esperar a morte com calma. Depois de um aviso tão santo, encontrava numa galeria contígua mais dois esqueletos humanos, não colocados de pé e na atitude de receber as visitas, mas estendidos em forma de mosaico ou de estrado.
Na mesma galeria podia distinguir claramente à direita um forno manchado por várias nódoas de gordura e consagrado a substituir em segredo as fogueiras das praças públicas, caídas em desuso por causa da picardia do século corrompido. (...) Poucos calabouços propriamente ditos se encontram neste primeiro corpo de edifícios, mas em contrapartida no segundo piso à direita encontra-se a sala do Santo Tribunal protegida por duas portas. Uma delas coroada por um letreiro que indica stanza del primo padre compagno e a segunda coroada por um letreiro que indica stanza del secando padre compagno. Assim se chamavam os dois inquisidores encarregados da dupla missão de ajudar a Suprema a procurar descobrir os criminosos e converter definitivamente o réu.
Mas essa situação mudaria por completo para o cardeal Ghislieri quando na noite de 18 de Agosto de 1559 o papa Paulo IV faleceu de repente. Após ser conhecida a notícia da morte, espalhou-se a sedição nas ruas de Roma; a captura e prisão dos agentes de Ghislieri converteu-se numa das principais motivações das massas. Muitos dos que serviram fielmente a Santa Inquisição eram assassinados pela população e os seus cadáveres lançados nas cloacas. Os distúrbios não acabaram aí. O povo de Roma assaltou o palácio que albergava o Tribunal da Inquisição e foi derrubada a estátua do pontífice falecido.
O cardeal Ghislieri e alguns dos seus homens conseguiram pôr a salvo uma grande parte dos arquivos secretos, levados em oito carruagens na sua fuga de Roma. Por fim, a situação voltou à normalidade em 25 de Dezembro de 1559 quando o cardeal Giovanni Angelo Medíeis, que era inimigo do anterior papa, se converteu no novo pontífice com o nome de Pio IV.
O papa era um homem de carácter firme, hábil diplomata e estava disposto a limpar a Igreja Católica de todos os vestígios do pontífice anterior, Paulo IV. Para essa tarefa rodeou-se de dois fiéis cardeais e seus sobrinhos, Marcos Sittich de Altemps e Carlos Borromeo. O primeiro era um mestre com a espada e na arte da guerra. O segundo era um mestre da diplomacia.
Borromeo foi nomeado arcebispo de Milão, legado papal em Bolonha e Romagna, responsável do governo dos Estados Pontifícios e finalmente secretário pessoal do papa. Como primeira medida, ordenou a detenção e reclusão no castelo de Sant’Angelo dos cardeais Carlo e Alfonso Caraffa, bem como de Juan Caraffa, duque de Paliano, e outros cavaleiros do séquito ducal acusados do assassínio da esposa daquele.
Como segunda medida, o papa Pio IV, aconselhado por Carlos Borromeo, decidiu reabilitar o cardeal Morone e o bispo Fiescherati que antes tinham sido acusados de heresia pelo Santo Ofício por ordem de Paulo IV. Como terceira medida, o papa ordenou o ”desterro” do cardeal Miguel Ghislieri, então geral da Inquisição, e a dissolução dos ”monges negros”. O cardeal, que se refugiou num mosteiro isolado, retomou o seu trabalho pastoral no antigo bispado, o que o fez ser visto com bons olhos quando o conclave voltou a reunir-se após o falecimento do papa Pio IV a 9 de Dezembro de 1565. Curiosamente, e depois de três semanas de conclave, o cardeal Carlos Borromeo, homem de confiança do papa falecido, decidiu defender a candidatura do cardeal Ghislieri, que contava com o apoio do rei Filipe II e desde há alguns anos recebia da Coroa de Espanha uma subvenção de 800 ducados.
A 7 de Janeiro de 1566, o cardeal Ghislieri era eleito papa e adoptou o nome de Pio V. O então embaixador de Espanha disse: ”Pio V é o papa que os tempos exigem”. Filipe II também aprovava a chegada de um aliado ao trono de São Pedro. A sua nomeação supunha a vitória de todos os que desejavam um pontífice austero e piedoso, mas por sua vez capaz de lutar e actuar com grande energia contra a Reforma protestante. O que era certo é que o papa Pio V utilizaria a sua ampla experiência à frente da Inquisição para criar um verdadeiro serviço de espionagem, implacável e de cega obediência às ordens supremas do pontífice.
A primeira função dos agentes da Santa Aliança, nome dado pelo próprio papa ao seu serviço secreto em honra da aliança entre o Vaticano e a rainha católica Maria Stuart, era sobretudo a de obter informações dos possíveis movimentos políticos e das intrigas dirigidas a partir da corte de Londres. As informações que obtinham eram enviadas àqueles poderosos monarcas que apoiavam o catolicismo e o poder pontifício em face do cada vez mais alargado protestantismo. O principal objectivo dos espiões do papa era prestar os seus serviços à rainha Maria Stuart com o intuito de procurar restaurar o catolicismo na Escócia, que se tinha declarado presbiteriana no ano de 1560, e lutar contra o protestantismo. O papa Pio V entendia que o seu principal inimigo era a Igreja cismática de Inglaterra, representada pela rainha Isabel, filha de Henrique VIII e de Ana Bolena.
O rei Henrique VIII havia rompido com a Igreja Católica em 1532, quando pediu a Clemente VII (19-XI-1523 / 25-IX-1534) autorização para se divorciar da rainha Catarina de Aragão, que era filha dos reis católicos e tia do imperador Carlos I de Espanha e V da Alemanha, para se poder casar com a sua amante Ana Bolena. O pontífice estudou a carta enviada pelo rei de Inglaterra, um velho pergaminho de sessenta por noventa centímetros e com a assinatura, como aval, de setenta e cinco altas personalidades do reino. Desse documento pendiam setenta e cinco cintas de seda vermelha com setenta e cinco selos de lacre.
No texto, Henrique VIII exprimia o desejo de contrair casamento com a sua amante e pedia a autorização papal para se divorciar da sua esposa, a rainha Catarina de Aragão. Essa petição foi negada pelo papa Clemente VII, o que provocou a ira e o afastamento de Henrique VIII da Igreja Católica. Mas o monarca de Inglaterra decidiu contrair matrimónio com Ana Bolena e anulou assim o seu casamento com Catarina, apesar da recusa de Roma.
O cisma definitivo aconteceu a 15 de Janeiro de 1535, sob o pontificado de Paulo III, quando, para dar uma base jurídica à sua nova supremacia eclesiástica, Henrique VIII convocara os sábios de todas as universidades do reino e o clero para que declarassem publicamente que o papa romano não tinha nenhum direito divino ou autoridade alguma sobre a Inglaterra. As bases reais da nova Igreja eram as de uma Igreja Católica anglicana, sob a autoridade da Coroa.
Os cinco anos de reinado de Maria Tudor até à sua morte, ocorrida a 17 de Novembro de 1558, foram muito intensos. Guerras, execuções, rebeliões internas, golpes de Estado e conflitos religiosos espalharam-se pelo reino. Na própria noite da morte da rainha Maria, a sua irmã Isabel, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, foi proclamada rainha de Inglaterra.
Grande parte da população recebeu com júbilo a chegada da nova rainha, em parte pela má recordação deixada por Maria Tudor, a quem popularmente baptizaram como Maria, a Sanguinária (Bloody Mary). Desde a sua chegada ao trono, Maria tinha-se mostrado decidida, com o apoio de Paulo IV e a resistência do embaixador de Espanha, a implantar a sangue e fogo o catolicismo, mas para isso devia antes cortar as cabeças dos que haviam defendido a Reforma.
Muitos dos bispos protestantes, que Maria Tudor definia como ”maus pastores que conduziram as suas ovelhas à perdição”, seriam os primeiros a ser queimados na fogueira por crime de heresia. O ex-bispo de Londres, Ridley, o mesmo que pouco tempo antes tinha proclamado Jane Grey como rainha de Inglaterra e considerado Maria Tudor como bastarda, foi queimado vivo a 16 de Outubro de 1555 numa praça da cidade de Oxford. Na fogueira também o acompanharia o ex-bispo de Worcester, Latimer. Uma outra execução ordenada pela rainha, e que causaria viva surpresa mesmo em Roma e no Parlamento da Inglaterra, seria o suplício, a 21 de Março de 1556, de Thomas Cranmer, ex-bispo de Canterbury, e que no passado declarara a anulação do casamento do rei Henrique VIII com Catarina de Aragão e consumara a ruptura definitiva com o poder papal de Roma.
A 15 de Janeiro de 1559, Isabel I foi coroada como rainha de Inglaterra e a 8 de Maio inaugurava a sessão do Parlamento, onde pedia a aprovação das leis que permitiam o restabelecimento do protestantismo em todo o reino e nos seus domínios. Roma e a Igreja Católica, dirigida por um ancião de oitenta e três anos, o papa Paulo IV, já não tinham força para fazer pressão face à mudança religiosa que novamente se avizinhava na Inglaterra.

(Eric Frattini -  "A santa aliança, cinco séculos de espionagem do Vaticano)

publicado às 07:41

 


"Os homens nunca fazem o mal
tão plenamente e com tanto entusiasmo
como quando o fazem por convicção religiosa"
(Pascal
Esse zelota do vídeo fala assim porque vive numa sociedade tolerante, caso contrário, já teria sido queimado na fogueira. Ele e a ideia que pretende passar de que todos nós seríamos maus, se não nos apegássemos à religião cristã/católica. Concordo plenamente com Bertrand Russel:
"Parece-me que as pessoas que se apegaram a ela (religião cristã) foram, em sua maioria, extremamente más. Tendes este fato curioso: quanto mais intensa a religião em qualquer época, e quanto mais profunda a crença dogmática, tanto maior a crueldade e tanto pior o estado das coisas. Nas chamadas Idades da Fé, quando os homens realmente acreditavam na religião cristã em toda a sua inteireza, houve a Inquisição, com as suas torturas; houve milhares de infelizes queimadas como feiticeiras – e houve toda a espécie de crueldade praticada sobre toda a espécie de gente em nome da religião. Constatareis, se lançardes um olhar pelo mundo, que cada pequenino progresso verificado nos sentimentos humanos, cada melhoria no direito penal, cada passo no sentido da diminuição da guerra, cada passo no sentido de um melhor tratamento das raças de cor, e que toda diminuição da escravidão, todo o progresso moral havido no mundo, foram coisas combatidas sistematicamente pelas Igrejas estabelecidas do mundo. Digo, com toda convicção, que a religião cristã, tal como se acha organizada em suas Igrejas, foi e ainda é a principal inimiga do progresso no mundo."
Esse padre é um exemplo vivo do que é e pode fazer o fundamentalismo religioso. Defender a tese de que a Inquisição foi um "ato de caridade" para com os católicos, além de aberrante, é, no mínimo, desonestidade inteletual com pretensão de branquear o verdadeiro móbil inquisitorial. Será que o Sol ainda gira em volta da Terra? Só um cromo seria capaz de defender tal tese. Por outro lado, pretender reduzir a Inquisição a uma mera questão de disciplina interna da ICAR e desafiar a que alguém lhe prove que a Inquisição não actuou  apenas por questões heréticas, é no mínimo patético. É uma tentativa da branquear a perseguição inquisitorial aos judeus, maometanos e seguidores de outras igrejas.Só Hitler conseguiu ser tão farsante e irónico! Cito Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA":
"A Inquisição tomou a si o encargo de perseguir não somente os hereges, isto é, os cristãos que se desviassem do caminho ortodoxo, mas também os maometanos e os judeus. Os maometanos e os judeus que viviam na Europa cristã e particularmente na Espanha eram considerados bons combustíveis para a santa fogueira... não tanto porque seus corações se achassem repletos de pecados, mas porque seus cofres se achavam cheios de ouro. Primeiro, eram eles compelidos a aceitar a religião cristã, e depois eram assados vivos, na suposição de que fossem “maus” cristãos.
O homem que mais sobressaiu em zelo nas incinerações de maometanos e judeus foi Tomás de Turrecremata, ou como é mais geralmente conhecido, Tomás de Torquemada. Se Gregório IX foi o pai da Inquisição, Torquemada foi o seu produto mais perfeita. Tinha paixão por três coisas: oração, dinheiro e assassínios. Era um beato convicto — um dos animais humanos mais perigosos. Pensava que satisfazia a vontade de Deus matando seus semelhantes. Era um louco piedoso, investido pelo Papa com poder de dar vazão a toda sua loucura. Durante sua presidência da Inquisição, queimou cerca de dois mil homens e mulheres (alguns calculam o número em oito ou nove mil), e quebrou os ossos de dezenas de milhares de seres, com instrumentos de tortura. Servia igualmente de acusador, testemunha e juiz, e freqüentemente “dava uma ajudazinha” na câmara de tortura."
 A tolerância apreende-se do Evangelho de Jesus Nazaré. Em que "Evangelho" se inspira quem defende tais ideias? Como é possível que as autoridades eclesiásticas ou civis ainda concedam tempo de antena a alguém que advoga e é porta-voz do famigerado obscurantismo medieval da Igreja? Quem espalha a semente do Diabo presta um péssimo serviço à sociedade e ao Evangelho. Não me admiraria nada que este cromo estivesse incluído na lista de personalidades a acolher o Papa Francisco, na próxima visita ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude!

publicado às 23:43


Inquisição - As acusações

por Thynus, em 01.05.13

 

 

O acusado na Inquisição era responsabilizado por uma "crise de fé", pela qual poderia, ou não, ter relação com fenômenos naturais como pestes, terremotos, doenças e miséria social. Ele era então preso e entregue às autoridades estatais para ser punido. As penas variavam de confisco de bens à pena de morte na fogueira. O uso do fogo foi o modo de punição mais famoso, embora outros meios fossem utilizados. Essas punições tinham um significado religioso, já que o fogo era o símbolo da purificação e materialização da desobediência a Deus, ou seja, do pecado e ilustração da imagem do inferno.
As punições com fogo também envolviam autores de livros polêmicos. Em 1756, em Londres, por exemplo, há o registro do que teria sido levado à execução um Cavaleiro de Oliveira, na verdade o escritor português Francisco Xavier de Oliveira (1702-1783): a publicação da obra Discours pathetéque ou suget des calamites, publicado naquela cidade. Há duas versões para essa execução: em uma delas, o cavaleiro foi queimado com o livro suspenso ao pescoço como herege convicto. Na segunda, o livro foi colocado em uma estátua do escritor e então queimada.
É importante lembrar, entretanto, que os tribunais da Inquisição não eram permanentes, e sim entravam em funcionamento em casos de heresia comprovada e depois eram desativados. Quando houve a Reforma Protestante, no século XVI, foram instituídos outros métodos judiciários de combate à heresia. Neles o delator que apontava um herege garantia sua própria fé em público e sua condição perante a sociedade. Basta lembrar que a caça às bruxas teve origem em países protestantes e não foi liderada pela Inquisição.
Outro ponto que deve ficar claro é que a Inquisição apenas fazia as investigações e inquéritos, deixando a aplicação da pena final para o poder secular. Aos poucos, a partir do século XIX, os tribunais inquisitórios foram suprimidos pelos estados europeus, embora fossem mantidos pelo Estado Pontifício, hoje a cidade-estado do Vaticano.
A partir de 1908, no pontificado de Pio X (1835-1914), a Inquisição ganhou a nova denominação de Sacra Congregação do Santo Ofício e, em 1965, quando aconteceu o Concilio Vaticano II, assumiu o nome que tem hoje: Congregação para a Doutrina da Fé.

(Sérgio Pereira Couto - "Os arquivos secretos do Vaticano")

publicado às 22:58


A Santa Inquisição

por Thynus, em 01.05.13

 

 

Passamos agora a tratar da conturbada história daquela que seria uma das principais fontes de documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano: a Santa Inquisição, o terror que condenou milhares de pessoas à morte em nome da preservação do catolicismo.
A imagem que ficou popularizada é a dos inquisidores com longas vestes escuras que apontavam o dedo para o acusado de algum delito, em geral bruxaria ou heresia, considerada mais grave, e que agia muitas vezes ao mesmo tempo como juiz, júri e executor.
A primeira coisa que vem à mente das pessoas é saber como uma instituição de caráter religioso acumulou tanto poder a ponto de desafiar até mesmo os reis, em uma época em que aqueles governantes se achavam com direito divino e absoluto de governar.
Para tanto, é necessário entender o papel da Inquisição desde sua concepção. Segundo o historiador Gilberto Coltrim, a Santa Inquisição foi criada para combater o sincretismo, definido como "fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpretação de seus elementos", entre certos grupos religiosos que se valiam da adoração de plantas e animais e praticavam mancias, adivinhações por meio de algo designado pelo precedente. Essa era sua função original, já que a Inquisição, como a conhecemos, é derivada da versão medieval, mas, na verdade, existiram instituições anteriores dedicadas a tais combates.
Um fator importante é entender que, embora o termo heresia seja utilizado até hoje, ele ficou ligado à Idade Média e às ações da atual "Congregação para a doutrina da fé", o novo nome sob o qual a Santa Inquisição sobrevive até hoje. A cada dia que passa, os doutores da igreja reveem os atos de seus antepassados e admitem que "a prática inquisitorial estava errada ao punir com violência e morte de indivíduos hereges", como foi declarado pelo papa João Paulo II no artigo "Perdoai as nossas ofensas", na revista Veja Especial, de 6 de abril de 2005.
O que não se pode deixar de admitir é o fato de que a Inquisição foi e é considerada ainda como uma das instituições humanas que mais feriu os direitos humanos, principalmente o da livre escolha religiosa.

(Sérgio Pereira Couto - "Os arquivos secretos do Vaticano")

publicado às 22:42


TORQUEMADA E A SANTA INQUISIÇÃO

por Thynus, em 29.04.13

 

 


Com o intuito de ser mais justo possível para com a Inquisição, tentei examiná-la através de seus próprios depoimentos. Confiei, exclusivamente, em fontes católicas ao colher o material para este capítulo, e, por conseguinte, considerarei a Inquisição sob o ângulo daqueles que a patrocinaram, que a defenderam no passado e estão prontos, em teoria ao menos, a defendê-la hoje.
Os primeiros cristãos, fiéis aos ensinamentos de Cristo, opunham-se a qualquer espécie de violência. Tertuliano negava o direito a qualquer cristão de servir no exército. “Certamente não faz parte da religião”, dizia ele, “forçar a religião. Ela deve ser abraçada livremente e não por coação.” Era esta também a doutrina de Orígenes e de Lactâncio. “Não há justificação para a violência”, escrevia Lactâncio, “pois a religião não pode ser imposta pela força.”
No século IV, contudo, houve uma mudança nos corações dos cristãos. Agostinho assegurava que em “alguns” casos era permitido matar descrentes. Optato estendia a pena de morte a “todos” os hereges, Agostinho e Optato são, hoje, venerados como santos. Na cidade de Verona queimaram vivos cerca de sessenta homens num mês.
Os bispos tinham ordens de assalariar informantes, cujo dever era denunciar todos os cristãos suspeitos, isto é, todos aqueles cuja maneira de viver divergia da dos católicos. Os bispos, então, examinavam estes cristãos e os puniam como achavam conveniente. Os bispos que deixassem de contribuir com suas quotas de hereges queimados eram, por ordem do Papa, depostos de seus cargos; quando mostravam muita clemência para com suas vítimas, eram ameaçados de prisão, sob a acusação de heresia. Deste modo, assegurava o Papa um constante fornecimento de seres humanos “para a glória do Senhor”, e casualmente também para a sua riqueza pessoal, pois que a Igreja confiscava a propriedade dos condenados. Os bispos, com todo o seu zelo, não eram nem suficientemente sedentos de sangue, nem bastante eficazes para satisfazer ao Papa.
A fim de descobrir todos os pecadores e exterminar todo o pecado da cristandade, eram necessários espiões treinados. De acordo com esse preceito, o Papa aceitou o auxílio de dominicanos. Estes, como estão lembrados, eram os sectários de Domingos, que santamente advogava o batismo pela espada. Agora, o Papa Gregório IX tirava vantagem desse treinamento dos dominicanos na arte da selvageria eclesiástica, e, com a sua ajuda, transformou a Inquisição num negócio poderoso e lucrativo. Numa carta que Gregório dirigiu aos dominicanos, delineava os seus deveres do seguinte modo:

“Logo ao chegar a uma cidade, convoquem os bispos, o clero e o povo, e preguem um solene sermão de fé; depois, façam uma seleção de certos homens de boa reputação para estes os ajudarem no julgamento dos hereges e de suspeitos denunciados nos seus tribunais. Todos os que, em exame, forem achados culpados ou suspeitos de heresia, serão obrigados a prometer obediência absoluta aos comandos da Igreja. Se eles recusarem, devem processá-los.”

Por que estava o Papa tão sedento de hereges? Só por uma razão: os hereges se opunham ao esplendor do Papa. Representavam os socialistas cristãos e os anarquistas filosóficos do mundo medieval. Foram os antepassados espirituais de Emerson e de Tolstoi. Havia vários grupos, tendo todos uma coisa em comum: acreditavam na doçura de Cristo e odiavam a arrogância dos padres. “Cristo”, diziam “não tinha onde descansar a cabeça, ao passo que os Papas vivem num palácio. Cristo rejeitava domínios terrestres, enquanto os Papas os exigem. O que tem o papado romano, com sua sede de riquezas e honrarias, em comum com o evangelho de Cristo?” Como aconteceu mais tarde com a seita dos quacres, os hereges pregavam contra a opressão, o ódio, a pena capital e a guerra. Suas teorias radicais, escreve Vacandard, “não eram só anticatólicas, mas antipatrióticas e anti-sociais”. E, assim, matando todos esses amantes da paz a Igreja agia simplesmente em defesa própria o crescimento de suas idéias devia ser embargado a todo custo. Ainda que fosse à custa da morte!

É interessante notar que esta não é a opinião de um padre medieval, e sim de um historiador católico moderno. O espírito da Inquisição, como parece, ainda está bem vivo em certos lugares, mesmo em nossos dias.

A Inquisição tomou a si o encargo de perseguir não somente os hereges, isto é, os cristãos que se desviassem do caminho ortodoxo, mas também os maometanos e os judeus. Os maometanos e os judeus que viviam na Europa cristã e particularmente na Espanha eram considerados bons combustíveis para a santa fogueira... não tanto porque seus corações se achassem repletos de pecados, mas porque seus cofres se achavam cheios de ouro. Primeiro, eram eles compelidos a aceitar a religião cristã, e depois eram assados vivos, na suposição de que fossem “maus” cristãos.
O homem que mais sobressaiu em zelo nas incinerações de maometanos e judeus foi Tomás de Turrecremata, ou como é mais geralmente conhecido, Tomás de Torquemada. Se Gregório IX foi o pai da Inquisição, Torquemada foi o seu produto mais perfeita. Tinha paixão por três coisas: oração, dinheiro e assassínios. Era um beato convicto — um dos animais humanos mais perigosos. Pensava que satisfazia a vontade de Deus matando seus semelhantes. Era um louco piedoso, investido pelo Papa com poder de dar vazão a toda sua loucura. Durante sua presidência da Inquisição, queimou cerca de dois mil homens e mulheres (alguns calculam o número em oito ou nove mil), e quebrou os ossos de dezenas de milhares de seres, com instrumentos de tortura. Servia igualmente de acusador, testemunha e juiz, e freqüentemente “dava uma ajudazinha” na câmara de tortura. Examinemos, rapidamente, o processo da Inquisição sob a direção de Torquemada.
Para começar, o inquisidor expedia uma intimação geral, ordenando que os hereges aparecessem à sua presença e abjurassem suas heresias dentro do prazo de trinta dias. Bem poucos, naturalmente, denunciavam-se espontaneamente. Ao findar o “período de graça”, todo católico era incitado a denunciar todos os habitantes da cidade que suspeitasse de heresia. Para culpar alguém, bastavam duas testemunhas e essas testemunhas podiam ser ladrões ou assassinos, desde que fossem cristãos confessos. Ao acusado, porém, não era permitido ter nem advogados, nem testemunhas. E, ainda mais, os nomes dos espiões e das testemunhas para a Inquisição não eram revelados ao acusado. Com todas as cartas assim dispostas contra ele, o prisioneiro achava-se virtualmente impossibilitado de provar a falsidade da acusação. Se se confessava cristão, era mandado para a prisão; se, por outro lado, insistisse em sua inocência, era levado à câmara de tortura.
Poder-se-ia escrever um livro interessante, embora bem pouco agradável, sobre os instrumentos de tortura empregados pelos inquisidores a serviço do Senhor. Mencionarei, rapidamente, apenas dois ou três.
Primeiro havia o Strappado. Vacandard, o moderno apologista da Inquisição, descreve-o como segue: “O prisioneiro, com as mãos amarradas para trás, era levantado por uma corda que passava por uma roldana, e guindado até o alto do patíbulo ou do teto da câmara de tortura; em seguida, deixava-se cair o indivíduo e travava-se o aparelho ao chegar o seu corpo a poucas polegadas do solo. Repetia-se isso várias vezes. Os cruéis carrascos, às vezes, amarravam pesos nos pés da vítima, a fim de aumentar o choque da queda.
“Depois havia a tortura pelo fogo. Colocavam-se os pés da vítima sobre carvão em brasa e espalhava-se por cima uma camada de graxa, a fim de que este combustível estalasse ao contato com o fogo. Os inquisidores estavam ali enquanto o fogo martirizava a vítima, e incitavam-na, piedosamente, a aceitar os ensinamentos da Igreja em cujo nome ela estava sendo tratada tão delicadamente e tão misericordiosamente. Para que houvesse um contraste com a tortura pelo fogo, também praticavam a da água.

“Amarrando as mãos e os pés do prisioneiro com uma corda trançada que lhe penetrava nas carnes e nos tendões, abriam a boca da vítima à força, despejando dentro dela água até que chegasse o ponto de sufocação ou confissão.”

Em suma, todas as imaginações bárbaras do espírito de Dante, quando escreveu o Inferno, foram incorporadas em máquinas reais que cauterizavam as carnes, esticavam os corpos e quebravam os ossos de todos aqueles que recusavam crer na branda misericórdia dos Inquisidores.
E agora citemos mais uma vez o Sr. Vacandard:

“De acordo com a lei, tortura só podia ser infligida uma vez, mas essa regulamentação era burlada facilmente ... quando desejavam fazer repetir a tortura, mesmo depois de um intervalo de alguns dias, infringiam a lei, não alegando que fosse uma repetição, mas simplesmente uma continuação da primeira tortura... Esse jogo de palavras dava margem à crueldade e ao zelo desenfreado dos inquisidores.”

Se, por fim, sob a dor que a tortura causava, a vítima prometesse ser um bom católico, era posta, geralmente, em prisão perpétua. Se, porém, recusasse a atirar-se nos braços da Igreja, era entregue às chamas. Teoricamente, como já observei, a Igreja fazia questão de dizer que nada tinha com o assassínio de suas vítimas. Apenas “retirava sua proteção” dessas criaturas e entregava-as à justiça. Tecnicamente falando, suas mãos ficavam limpas. Mesmo os historiadores modernos tentam salvá-la de todas as vergonhas em relação aos assassínios de homens e mulheres que cometeu. José de Maistre, escrevendo no século XIX, foi suficientemente ingênuo para fazer a seguinte observação surpreendente:

“Quando examinarmos a Inquisição, é preciso separar e distinguir muito cuidadosamente o papel da Igreja e o do Estado. Tudo o que há de horrível e cruel neste Tribunal, especialmente sua pena de morte, é devido ao Estado... Toda a clemência, por outro lado, que tem um papel tão preponderante no tribunal da Inquisição deve ser atribuída à Igreja.”

Na realidade, infelizmente, a Igreja não só condenava as suas vítimas, como também insistia sobre suas mortes. De acordo com uma lei estabelecida pelo Papa Inocêncio IV, o Estado era obrigado a queimar, dentro de um período de cinco dias, todos os prisioneiros condenados que a Igreja lhe confiasse. Todos aqueles príncipes que se recusassem a matar os condenados hereges eram prontamente excomungados pela Igreja.
Mas a mancha mais negra da Inquisição era o tratamento bárbaro dos filhos dos condenados. Quando queimava um homem, a Igreja confiscava suas propriedades. Não permitia aos filhos herdar um único vintém. A esta regra, contudo, far-se-ia uma exceção importante. E esta exceção era ainda mais desumana do que a regra. Os filhos de pais hereges podiam herdar uma parte de suas propriedades, desde que espionassem e denunciassem seus progenitores à Inquisição. Esta lei incrível, estabelecida por Frederico II, foi reforçada no texto da carta por muitos inquisidores e particularmente por Torquemada. De fato, os pais da Igreja não só acreditavam nesta lei, como também se orgulhavam dela. O Papa Gregório IX dizia que fazia bem a seu coração ver como as crianças se voltavam contra seus pais, por amor a Deus. “Deixai vir a mim os pequeninos”, dizia Cristo. E a santa irmandade da Inquisição respondia: “Sim, na verdade, Senhor! Nós deixaremos sofrer os pequeninos, de maneira que eles possam ir a Vós!”

Um dos principais atos da Inquisição, e o acontecimento culminante na vida de Torquemada, foi a expulsão dos judeus da Espanha. Em sua juventude, Torquemada foi o confessor da Princesa Isabel, que mais tarde veio a ser esposa do Rei Fernando. Tal como seu confessor fanático, Isabel era vingativa, estúpida, bárbara e devota. Prometera a Torquemada que devotaria sua vida inteira à exterminação da heresia.
Quando se tornou rainha da Espanha, encontrou um aliado entusiástico em seu marido. Fernando foi um dos reis mais cobiçosos. Era ávido em queimar os judeus porque suas propriedades, quando confiscadas pela Igreja, eram divididas entre os padres e ele. Quando Torquemada veio queixar-se a ele de que todos os judeus deviam ser expulsos da Espanha, escutouo avidamente, pois a expulsão dos judeus significaria uma pilhagem, por atacado, aos seus bens e ao seu ouro, uma parte substancial da qual tornar-se-ia ,sua propriedade pessoal. Com um simples golpe de pena poderia tornar-se o homem mais rico da Europa. Isabel, não sendo mais do que uma argila maleável nas mãos de um velho padre confessor,aderiu prontamente a seus planos. O decreto da expulsão dos judeus foi elaborado e apresentado aorei para ser assinado.
Entrementes, os judeus lançavam mão de tudo o que estava ao seu alcance para abrandar o coração do rei. Jogados de um lado para outro pelos ventos da intolerância religiosa, eles eram expulsos de uma região para outra. Tudo o que pediam agora ao Rei Fernando era que os deixasse em paz. Mandaram-lhe os oradores mais eloqüentes. Lembraram-lhe que eles o tinham ajudado a pagar as despesas de suas guerras com os mouros. Ofereceram-lhe um presente de 30.000 ducados — uma soma tentadora aos olhos do cobiçoso príncipe. Fernando, nada inclinado a escutar seus argumentos, estava pronto a considerar o ouro, quando Torquemada, precipitando-se no palácio real, segurando um crucifixo no ar, em suas mãos enrugadas — nesse tempo ele já tinha mais de setenta anos — berrou: “Eis aqui aquele Judas, que vendeu Jesus por 30 moedas de prata! Estais vós porventura pronto a vendê-lo por 30.000 moedas de prata novamente?” Não, trinta mil não era bastante. Torquemada subjugara a vontade do rei e da rainha. O edito contra os judeus foi assinado em 31 de março de 1492. De acordo com este edito, todo judeu residente em território espanhol deveria ser batizado dentro de quatro meses ou deixar o país para sempre. Trezentos mil preferiram o, exílio ao cristianismo. Permitia-se-lhes vender suas propriedades, mas os compradores esperavam astuciosamente até o último momento, quando podiam ditar seus próprios preços. Bernaldes, um autor contemporâneo, afirma ter visto judeus deixarem um palácio por um burro, e um vinhedo por uma peça de linho. Aos exilados era proibido levar qualquer porção de ouro consigo.
Tendo assim roubado os judeus e os lançado para fora do país, os cristãos regozijaram-se com suas barbaridades. “Eis aqui”, gritava o irmão dominicano Bleda, “o acontecimento mais glorioso da Espanha, desde o tempo dos apóstolos; agora a unidade da religião está assegurada; uma era de prosperidade está, realmente, para chegar.” Mas a esperada alvorada de prosperidade jamais chegou. Pelo contrário, a expulsão dos judeus marcou o começo do ocaso da prosperidade espanhola.
Ao serem expulsos da Espanha, os judeus não sabiam então para onde se dirigir, em busca de proteção. Um grande número deles lançou-se sob a misericórdia de Manuel, rei de Portugal. Mas o rei chamava-se a si próprio de cristão piedoso, Pilhou o que os judeus conseguiram salvar e ordenou-lhes então que deixassem o país. Esse “rei misericordioso” fez a sua manobra bem-feita. Roubou não só os bens dos judeus, como também seus filhos, pois expediu uma ordem secreta para seqüestrar todas as crianças judias menores de 14 anos, a fim de que fossem batizadas e educadas como cristãos.

Quanto a Torquemada, alimentava os fogos sagrados lançando nas chamas várias centenas de hereges, “Sua crueldade”, dizem seus admiradores, “explica-se pelo seu sincero desejo de salvar os hereges.” Tal como seu amado Tomás de Aquino, “ele consolava seu coração entristecido, refletindo que agia pelo bem da Igreja”. Pois convém notar que Torquemada ignorava que fosse cruel. Como todos os outros inquisidores, ele mutilava e assassinava suas vítimas misericordia et justitia — com misericórdia e justiça. Essa era a frase dos inquisidores quando sentenciavam suas vítimas a morrer queimadas.
Torquemada retirou-se da Inquisição com setenta e quatro anos e morreu dois anos depois, em 1498.
A Inquisição, porém, continuou até o século, XIX.

(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")

 

publicado às 20:51


...

por Thynus, em 31.03.13

O Brasil tem conhecido um grande desenvolvimento em sua produção histo-riográfica, como o crescimento do número de autores que publicam trabalhos especializados em História e do interesse de um público mais amplo pela produção historiográfica. Essa popularidade nasceu com a influência da Nova História francesa, interessada, sobretudo, na cultura e no cotidiano, e cujas abordagens se aproximam bastante da ficção. Foram essas abordagens mais culturais que geraram no Brasil um mercado editorial para publicações de História, tendo alguns temas um importante papel nesse processo. Um desses é a Inquisição.

A Inquisição é menos um conceito que uma instituição. Inquisição é o termo pelo qual é mais comumente conhecido o Tribunal do Santo Ofício, órgão de investigação e repressão instituído pela Igreja Católica na Idade Média que teve seu apogeu depois da Reforma Católica, a partir do século xvi. Os estudiosos dividem sua história normalmente em dois grandes períodos quase independentes, a Idade Média e a Idade Moderna. Na Idade Média, o Tribunal do Santo Ofício foi criado pelo Vaticano para investigar a existência de heresias em qualquer bispado, e era subordinando diretamente ao Papado. Não tinha, assim, ligação política com as regiões que investigava, obedecendo diretamente ao Vaticano. Nesse período, a preocupação maior da Igreja era com os hereges, pessoas ou grupos de católicos que se desviavam da conduta regulamentada pelo Papado e criavam novos dogmas. A Inquisição medieval agiu em diversas partes da Europa ocidental, mas teve sua maior atuação repressiva na França, perseguindo dissidentes religiosos, como os cátaros.

Já na Idade Moderna, a Inquisição se desligou do Vaticano e se submeteu aos Estados nacionais em ascensão. Nesse caso, os interesses mudaram. O Tribunal agora tinha muito mais objetivos em comum com as monarquias às quais estava ligado do que com o Vaticano, e as perseguições variaram suas vítimas por toda a Europa. A mais famosa das inquisições modernas foi a espanhola, devido a sua grande influência social e política e sua massiva perseguição aos judeus e cristãos novos, ou seja, judeus convertidos ao Cristianismo na Península Ibérica e nas Américas.

O caráter repressivo da Inquisição esteve presente, desde seus primórdios, atrelado a seu caráter investigativo. Na Idade Média seu objetivo era extirpar toda heresia da Igreja, ou seja, toda crença que discordasse dos dogmas do catolicismo. Nesse sentido, a Inquisição só poderia perseguir e “investigar” católicos, pois era fundamentalmente uma instituição de controle das dissidências internas. Perseguiu os hereges – os discordantes – na França, na Itália e as bruxas por toda a Europa. A Inquisição espanhola, todavia, durante a Idade Moderna, mudou seu alvo consideravelmente. Na Península Ibérica, a Inquisição virou uma instituição de proteção tanto da Igreja quanto do Estado centralizado. O Estado espanhol se unificou com base em alguns princípios, dos quais o Catolicismo e a unidade da fé eram os mais fortes. Nesse caso, a manutenção da unidade religiosa deveria ser feita a todo custo, pois o Catolicismo era um dos alicerces sobre o qual estava fundamentado o novo Estado unificado. E o Tribunal do Santo Ofício foi instituído com esse intuito. As principais “ameaças” a essa unidade nacional eram os judeus e os mouros, que habitavam a Península há séculos. Foi contra eles que se voltou o Tribunal do Santo Ofício espanhol, e depois o português, sobretudo contra os judeus e seus descendentes católicos convertidos, pela influência econômica que possuíam em suas sociedades.

A Inquisição na Península Ibérica se tornou uma das mais importantes instituições de apoio ao estabelecimento e ao fortalecimento do Estado nacional e da monarquia centralizada. O controle exercido sobre a sociedade era imenso, censurando livros e pensamentos. O controle do Tribunal não se resumia aos cristãos-novos, mas abarcava a todos, impondo formas de comportamento, principalmente sexual. A misoginia era uma das características mais fortes dessa instituição, que desde a Idade Média alimentava discursos de medo e desconfiança contra as mulheres.

O Tribunal do Santo Ofício, como já diz o nome, era um órgão judiciário, e a Espanha estabeleceu diversos tribunais em seu Império, inclusive três na América. Portugal, por sua vez, não tinha os mesmos interesses religiosos e nacionalistas que a Espanha. A direção política de Portugal na Idade Moderna era muito mais comercial e menos preocupada com a conquista de territórios que a Espanha. Sua Inquisição, por exemplo, não foi estabelecida na América portuguesa. Aqui, a Coroa portuguesa se limitou a enviar visitações, ou seja, inquisidores de tempos em tempos para realizar vistorias gerais na colônia. Temos notícia de três visitações: uma no século xvi, dirigida para a Bahia e Pernambuco, outra no xvii, restrita à Bahia, e uma terceira no século xviii, ao Grão-Pará. Comparada à Inquisição espanhola, que funcionava diariamente no México, em Lima e em Cartagena de Las Índias, na Colômbia, a repressão inquisitorial no Brasil foi muito pequena. No entanto, existiu e, enquanto os visitadores realizavam suas investigações nas cidades coloniais, desencadeavam uma série de conflitos sociais, em que vizinhos denunciavam vizinhos, por exemplo.

Não devemos esquecer o caráter de extrema violência desse tribunal. Para alcançar confissões de hereges, judeus, feiticeiras, entre outros indivíduos tidos como perigosos para a Igreja, a tortura era considerada um instrumento apropriado de investigação. Acreditavam então que uma confissão obtida sob tortura era uma confissão legítima. E, assim, o Tribunal se especializou em técnicas de tortura, inclusive elaborando manuais até hoje famosos, como o Martelo das feiticeiras. Sob tortura, a maioria dos réus, pessoas denunciadas muitas vezes pela inveja ou paranoia de seus conhecidos, confessava todos os “crimes” que os inquisidores lhes imputavam. A grande violência da ação do Tribunal, no entanto, não deve obscurecer outros caracteres importantes desse órgão, como a grande influência política e econômica que exerceu na Península Ibérica.

No Brasil, a Inquisição se tornou um importante tema de pesquisa, principalmente pelo fato de que são os registros de suas investigações minuciosas, das perseguições que impôs às minorias, que nos permitem hoje conhecer tanto essas minorias quanto o cotidiano da sociedade colonial. A Inquisição perseguiu, no mundo ibérico, cristãos-novos, feiticeiras, formas de sincretismo religioso, homossexuais, entre outros. Assim, a documentação inquisitorial, os chamados autos, são importantes registros da vida desses personagens. Além disso, os estudos sobre cultura e cotidiano na colônia se desenvolveram em grande parte sobre a documentação da Inquisição: desde as pesquisas de Ronaldo Vainfas e Luis Mott sobre a sexualidade na sociedade colonial até recentes abordagens sobre os degredados, passando por um importante setor de estudos dedicado à História dos cristãos-novos e judeus na América portuguesa.

A documentação das visitações do Santo Ofício se encontra hoje impressa e de fácil acesso para qualquer interessado. Constitui rica fonte de informações sobre o cotidiano colonial e, utilizada com uma boa bibliografia de apoio, pode fornecer aos professores de História um inesgotável material de pesquisa e trabalho em sala de aula. O educador estará assim incitando os alunos a produzir conhecimento. Mas é preciso cuidado com essa documentação, devido à diferença linguística trazida pelos documentos, pois a língua portuguesa mudou desde os séculos xvi e xvii até hoje. O professor precisa dedicar certo tempo à leitura de uma bibliografia que analise tal documentação, à leitura da própria documentação e à preparação do material adequado a ser apresentado a sua sala de aula. Vai ser de enorme ajuda o grande número de textos de divulgação científica publicados sobre a Inquisição e suas vítimas em periódicos especializados, assim como o grande número de títulos que os profissionais de ensino encontrarão nas livrarias. Além disso, muitos são os filmes que abordam temáticas diversas associadas à Inquisição medieval e à Inquisição moderna. Esse tema riquíssimo está aberto à criatividade do professor e atende, como poucos, às exigências das novas abordagens da história, que pregam o trabalho com a História das minorias e com a construção das identidades.

(Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva - "Dicionário de conceitos históricos") 
 

publicado às 02:05


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