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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
A Igreja Católica decidiu excomunhar, na segunda-feira 29, o padre de uma paróquia em Bauru (SP) que criticou, durante uma cerimônia, o tratamento oferecido pelo Clero aos homossexuais. O vídeo, hospedado no site Youtube, gerou uma forte repercussão nas redes sociais e causou impacto na Diocese da região.
No vídeo, Roberto Francisco Daniel, mais conhecido como Padre Beto, defendeu que a “hoje em dia não dá mais para enquadrar o ser humano em homossexual, bissexual ou heterossexual” e “que o amor pode surgir em qualquer desses níveis”.
Segundo o padre Beto, a Igreja precisa “analisar criticamente aquilo que está acontecendo na sociedade”. Para ele, é necessário “ter humildade de ver que o Espírito Santo sopra onde Ele quiser”.
As declarações do padre, que é historiador e jornalista, culminaram na exigência de um pedido de retratação e na posterior excomunhão do clérigo por heresia e cisma.
Em seu perfil no Facebook, o padre escreveu que não vai retirar nenhum material postado por ele nas redes sociais, em seu site ou em qualquer outro espaço na internet. E reiterou: “A Igreja precisa ser um espaço dialogal para que as pessoas possam transcender de fato e se tornarem verdadeiros filhos de Deus em nosso universo contemporâneo. Se refletir é um pecado, eu sempre fui e sempre serei um Pecador”.
Segundo ele, o único objetivo de suas falas é fazer com que as pessoas se aproximem mais da vivência do amor pregado por Cristo nos Evangelhos.
Na mesma nota, ele disse preferir se desligar da Igreja a cumprir com a retração exigida pelo Bispo Dom Frei Caetano Ferrari. De acordo com o comunicado da Diocese de Bauru, “em nome da ‘liberdade de expressão’, (o padre Beto) traiu o compromisso de fidelidade à Igreja à qual ele jurou servir no dia de sua ordenação sacerdotal”. A carta elenca como motivos do desligamento do padre a recusa do diálogo e da colaboração.
Apoio. Ao menos mil fiéis lotaram a paróquia de São Benedito no domingo 28 para participar da missa de despedida do padre Beto. Durante a celebração, ele afirmou: “O mandamento do amor não é um mandamento, é algo vivo. Não se força, acontece. Cristo amou o ser humano como ser humano em si. Sem olhar rosto, sem olhar raça, sem olhar religião, sem olhar sexualidade. Cristo amou o ser humano, mas não se prendeu a preconceitos. É justamente assim que devemos amar. Temos que romper os preconceitos da nossa cabeça”.
“Vou continuar minha vida procurando, através de minhas reflexões, contribuir para a construção de uma sociedade mais humana e dialogal”, escreveu em seu perfil no facebook.
Confira a íntegra do comunicado de excomungação de Padre Beto abaixo:
Comunicado ao povo de Deus da Diocese de Bauru
(Padre que defendeu homossexuais é excomungado)
"Inocêncio III, Conde de Segni, tornou-se Papa com a idade de 37 anos, era um soberano nato: teólogo educado em Paris, jurista astuto, hábil orador, administrador inteligente e refinado diplomata. Nunca antes ou depois teve um papa tanto poder como ele. A revolução desde cima (Reforma Gregoriana) iniciada por Gregório VII, no século XI atingiu seu alvo com ele. Em vez do título de "Vigário de Pedro", ele preferia para cada bispo ou sacerdote o título usado até ao século XII de "Vigário de Cristo" (Inocêncio IV converteu-o incluso em "Vigário de Deus"). Ao contrário do primeiro século e sem nunca alcançar o reconhecimento da Igreja apostólica Oriental, o Papa se comportou desde então, como um monarca, legislador e juiz de todo o cristianismo ... até agora.Com Inocêncio III manifestaram-se os primeiros sintomas de nepotismo e corrupção no Vaticano. Pode acontecer que Inocêncio III tenha sido o único papa que, por causa das qualidades extraordinárias e poderes que tinha a Igreja, poderia ter determinado outro caminho completamente diferente; isso poderia poupar-lhe o cisma e o exílio do papado dos séculos XIV e XV, bem a Reforma Protestante da Igreja do século XVI. Não há dúvida de que, já no século XII, isso teria tido como consequência uma mudança de paradigma dentro da Igreja Católica que não iria dividir a Igreja, mas sim a teria renovado e, ao mesmo tempo, teria reconciliado as igrejas ocidental e oriental.O pontificado de Inocêncio III não só acabou sendo uma culminação, mas acima de tudo um ponto de viragem. Já na sua época se manifestaram os primeiros sintomas de decadência que, em parte, têm sobrevivido até hoje como sinais de identidade do sistema da cúria romana: o nepotismo, a extrema ganância, a corrupção e os negócios financeiros duvidosos." (Hans Küng)
“Inocêncio III escutava a leitura do relatório do legado papal Arnaldo Amalric, que informava sobre o assassinato de sete mil albigenses, todos mulheres, crianças e idosos, enquanto fornicava com uma empregada doméstica; Inocêncio IV atiçava o fogo da Inquisição enquanto fornicava com escravos, tanto homens como mulheres, e, depois, mandava açoitá-los; João XII, estuprador de peregrinas, mulheres casadas, viúvas, meninas e crianças, morreu por causa de uma martelada na cabeça acertada por um marido ciumento; Bento VII foi assassinado pelo esposo, ciumento, da mulher com quem ele estava na cama; Inocêncio III entrou para a história como um dos mais famosos colecionadores de objetos e jogos eróticos da época; Inocêncio VIII, o papa que assinou a bula Summis desiderantes affectibus desencadeando uma das mais ferozes perseguições contra as bruxas, apreciava fazer prisioneiras jovens mulheres para depois deflora-las e enviá-las para a fogueira, evitando assim qualquer indiscrição; Leão X, papa homossexual, tinha que montar a cavalo sentado de lado por causa de úlceras anais de que sofria, como resultado de seus muitos encontros amorosos em becos escuros de Roma, e forçou mais de sete mil prostitutas da Cidade eterna a entregar uma parte de seus ganhos à mais alta autoridade da Igreja, ou seja, a ele mesmo; Paulo IV, finalmente, passava seus dias comissionando aos escritores obras eróticas com que preenchia suas longas noites, enquanto uma empregada doméstica ou uma nobre dama o masturbava.Não se deve esquecer, nem mesmo os papas que transformaram a tiara em objeto do desejo de familiares e amigos: Bento IX era sobrinho de João XIX, que por sua vez tinha sucedido a seu irmão, Bento VIII, neto de João XII; João XI era filho ilegítimo de Sergio III; João XXIII era o filho ilegítimo de um bispo; Paulo I sucedeu a seu irmão, Estêvão II; o Papa Silvério foi gerado a partir do sémen do papa Hormisdas; Inocêncio I foi fruto do sémen do Papa Anastácio I; Bonifácio VI era o filho de um bispo; o papa Romano era irmão do Papa Martinho e ambos eram filhos de um sacerdote.” (Eric Frattini - I Papi e il Sesso)
- “No espírito de Inocêncio III, a Igreja é uma Igreja da riqueza, do arrivismo e da pompa, da extrema ganância e dos escândalos financeiros. Em vez disso, no espírito de São Francisco, a Igreja é uma Igreja da política financeira transparente e da vida simples, uma igreja que está mais preocupado com os pobres, os fracos e os mais desfavorecidos, que não acumula riquezas ou capital, mas que luta ativamente contra a pobreza e proporciona condições de trabalho exemplares para seus trabalhadores.
- No espírito do Papa Inocêncio III, a Igreja é uma Igreja do domínio, da burocracia e da discriminação, da repressão e da Inquisição. Em vez disso, no espírito de São Francisco (1182-1226), a Igreja é uma Igreja do altruísmo, do diálogo, da fraternidade, da hospitalidade, mesmo dos inconformistas, do serviço despretensioso aos superiores e da comunidade social solidária que não exclui da Igreja novas forças e idéias religiosas, mas outorga-lhes um caráter frutífero.
- No espírito de Inocêncio, a Igreja é uma Igreja da imutabilidade dogmática, da censura moral e do regime legal, uma Igreja do medo, do direito canônico que regula tudo e da escolástica que sabe tudo. Em vez disso, no espírito de Francisco, a Igreja é uma Igreja da mensagem alegre e do regozijo, de uma teologia baseada no Evangelho simples, que escuta as pessoas em vez de as endoutrinar desde cima, que não só ensina, mas também está constantemente aprendendo com elas." (Hans Küng)
Pelo exposto acima, no comunicado de excomunhão do P.e Beto, a Igreja é "Mãe e Mestra". Igreja "Mãe e Mestra" ou Madrasta? Nunca vi uma mãe segregar ou apartar os seus filhos, mas vejo a Igreja romana "excomungar" quem (como P.e Beto e tantos outros), lucidamente, se manifesta contra o preconceito e mentira dessa mesma Igreja. Será que esta Igreja é dona da verdade? Será que apenas existe a verdade da Igreja romana? Ou será que para o bispo de Bauru o Sol ainda gira à volta da Terra? Contrariamente aos ensinamentos de Francisco de Assis e do Evangelho, Dom Caetano, que até é franciscano, pura e simplesmente, renega os princípios da humildade onde cresceu e se formou. É preciso ser muito cara de pau, Dom Caetano! Bem prega frei Tomás... A Declaração de excomunhão por parte do Conselho Presbiteral da Diocese de Bauru acaba por reduzir o seu bispo à sua nulidade e insignificância:
"O padre (ou seja, o bispo) deprecia e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. – A desobediência a Deus, ou seja, a desobediência ao padre, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios prescritos para a “reconciliação com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivíduo a sujeitar-se ao padre; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são indispensáveis em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”... Axioma Supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao padre.” (“O Anti cristo”, F. Nietzche).
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A despeito do sopro purificador da Renascença, o espírito mau da Idade Média ainda pairava como um miasma sobre a face da Europa Ocidental. No século XV, o ar da Alemanha, da Boêmia, da França, da Itália e da Espanha impregnava-se da fumaça produzida pelas carnes em chama de milhares de homens e mulheres. Os mestres da hipocrisia descobriram que o caminho mais fácil é o de matar a crítica. E, assim, todos aqueles que discordavam da Igreja (ou cuja riqueza despertasse a cobiça voraz dos bispos e Papas) eram queimados vivos e suas propriedades confiscadas.
Tanto os dissidentes da Igreja como os ofensores políticos eram julgados hereges e queimados vivos, visto que os Papas e os príncipes agiam de comum acordo. A desobediência ao Estado era considerada traição ao céu, pois que os governadores do Estado se diziam ungidos de Deus. Opor-se ao governo, reconhecido pela Igreja significava um crime capital, não só contra o governo, mas também contra a Igreja.
É necessário que nos lembremos desta íntima união política entre a Igreja e o Estado, se quisermos compreender a história de Joana D’Arc. Tendo cometido, segundo a Igreja, uma ofensa política, era de prever-se, de acordo com o espírito da época, que ela fosse acusada de um crime “religioso”, julgada e queimada como herege. A um espírito moderno, toda a carreira da virgem de Orléans parece inacreditável. Para o supersticioso espírito do século XV, sua vida nada teve de vulgar, e sua morte era o único desfecho possível naquela circunstância.
Na Idade Média, todo o mundo conversava com anjos e acreditava em milagres. Um certo Irmão Ricardo, interpretando, como dizia, as vozes diretas do céu, agitou toda a cidade de Paris, num frenesi de evangelizador supersticioso. O monge carmelita Tomás Conecta, orientado, como alegava, pela vontade dos santos do céu, pregava na Bélgica e na França a um auditório de quinze mil pessoas de cada vez. Na Bretanha, uma jovem de nome Pierrette, assombrava seus compatriotas, dizendo-lhes que se achava em constante comunicação com o próprio Jesus. Espalhou-se a notícia de que um jovem pastor suava sangue nos dias santificados. Toda a província tinha seus homens e suas mulheres histéricos, que acreditavam e faziam outros acreditarem que eles viam e conversavam com os espíritos do céu.
Todos esses contos miraculosos de comunicação com os espíritos, Joana D’Arc, a pequena camponesa de Domrémy, os ouvira dos lábios piedosos de sua mãe. Nunca lhe ensinaram a 1er nem a escrever. Sua educação consistia quase exclusivamente em contos de fadas e mitos religiosos, nos quais aprendeu a crer como fatos reais. “Nascida sob as muralhas da Igreja” — para citar o historiador francês Michelet — “embalada para dormir ao som dos sinos e alimentada com lendas, ela mesma se tornou uma lenda viva.” Não longe da casa de seu pai, havia uma floresta na qual, como se acreditava, viviam fadas. Em cima, nas nuvens fugazes, ela via os anjos nos seus carros de fogo. Algumas vezes, quando seu pai se achava nos campos e sua mãe trabalhava em casa, sentavase ela na soleira da porta e escutava os ruídos da aldeia. Um murmúrio confuso, sonolento, esquisito — não seriam mesmo as vozes dos anjos a dirigir-lhe a palavra? A linha divisória entre este mundo e o próximo era muito vaga. Anjos e homens, na sua imaginação infantil, podiam confundir-se e conversar, tão naturalmente como dois vizinhos que se encontram na rua. Ouvir um anjo chamar alguém do céu não era mais surpreendente do que ouvir sua mãe chamar alguém da cozinha. Nisso não havia milagre. Pelo contrário, Joana reputaria um milagre se lhe dissessem que os anjos não
falavam aos filhos de Deus na terra.
Em síntese, ela vivia num mundo no qual era impossível distinguir o real do irreal. Os anjos poderiam descer a ela, na terra, e ela, por sua vez, poderia subir, para encontrar-se com eles no céu.
Mesmo assim, nesse mundo fantástico e encantador, existia uma horrível e incontestável realidade — a guerra com os ingleses. Esses ingleses, “amaldiçoados de Deus” (goddams que os franceses pronunciavam goddons) estavam devastando o infeliz reino de França. Os soldados ingleses colhiam as safras dos camponeses franceses. Queimavam suas casas e levavam o gado. Às vezes, no meio da noite, Joana era acordada pelos gritos dos fugitivos de outras aldeias. Uma vez, seus próprios pais foram obrigados a fugir dos invasores. Quando a família voltou ao lar encontrou a aldeia saqueada, a casa pilhada e a igreja em chamas.
A bondade dos santos do céu e a lamentável situação do reino de França — estes eram os dois fatos predominantes na vida da pequena camponesa de Domrémy. A França era querida dos santos — foi a idéia que sua mãe lhe imprimira no espírito, repetindo-a a cada momento — e eles exerciam todo o seu poder para expulsar os ladrões ingleses do solo sagrado. Profetizava-se que uma jovem se tornaria a salvadora de França. Merlin, o mágico, e Maria de Avignon, uma santa mulher que palestrava com os anjos, já tinham, ambos, previsto isso. E, assim, a criança olhava fixamente as nuvens, sonhando com o dia em que os anjos viriam buscar a salvadora para expulsar os ingleses da França.
Certa vez, num dia santo, no meio do verão, quando todas as pessoas piedosas jejuavam, e o céu e a terra pareciam mais próximos do que nunca, Joana julgou ouvir uma voz a falar-lhe através do silêncio. Era a voz do Arcanjo São Miguel que dizia: “Seja uma boa menina, Joana. Vá sempre à igreja.” Ela se assustou, mas não se surpreendeu.
Era sabido que os anjos falavam com outras pessoas. Por que não com ela? Afinal, São Miguel estava longe de ser um estranho para ela. Sabia a sua história e sua figura lhe era familiar; era, portanto, perfeitamente natural que ele lhe dissesse, como o padre da aldeia lhe teria dito, que fosse uma boa menina e que freqüentasse a igreja.
A ilusão de que os anjos lhe falavam crescia cada vez mais. Havia pouco tempo, o Arcanjo São Miguel encontrara-se com Santa Margarida e Santa Catarina. Estas, também, eram figuras familiares a Joana. Quando as via no ar, por cima de sua cabeça, reconhecia-as imediatamente através de seus quadros.
Joana contava treze anos de idade, quando teve seu primeiro encontro com anjos. Eles vinham conversar diariamente com ela e, não raro, várias vezes por dia. Ela os via perfeitamente e ouvia suas vozes mais distintamente quando os sinos da igreja badalavam. A princípio, falavam-lhe de assuntos comuns, mas um dia, São Miguel falou-lhe sobre o assunto que a interessava, isto é, da pena que sentia do reino de França. “Filha de Deus”, disse ele, “chegou o momento de deixares tua aldeia e ires em auxílio da França.” Em outra ocasião insistia para que ela restituísse o reino de França ao verdadeiro rei. A profecia de Merlin estava para cumprir-se.
Joana, a jovem camponesa de Domrémy, foi escolhida pelos poderes do céu para tornar-se a salvadora de França. Pouco a pouco ela se convenceu completamente de sua missão. A excitação de seu próprio desejo era tão viva no espírito da criança ignorante e supersticiosa mas altamente poética da Idade Média, que os seus pensamentos se revestiram de formas visíveis e assumiram a configuração de anjos que lhe transmitiam as ordens do Senhor.
“Deixe o lar e todos os entes queridos, Joana, e vá em auxílio do rei da França.”
“Mas”, replicou ela, toda trêmula, “eu sou apenas uma pobre moça. Não sei montar, nem
combater.”
São Miguel aconselhou-a então a ir ter com Roberto de Baudricourt, o senhor da cidade de Vaucouleurs e da aldeia de Domrémy. Este homem, assegurou-lhe o arcanjo, fornecer-lhe-ia homens e meios para a sua jornada a Chinon, onde o tímido delfim (herdeiro do trono) Carlos VII vivia no palácio real — um rei sem coroa numa terra conquistada.
Joana não foi bem-sucedida com Baudricourt. Ele se mostrava céptico quanto à missão da moça. Mas a plebe veio em seu auxílio. Como eram bons cristãos medievais, acreditavam em sua história de anjos, justamente por ser tão inacreditável. Compraram-lhe um cavalo e deram-lhe uma pequena escolta de homens armados. Baudricourt, movido, finalmente, pelo entusiasmo do povo, presenteou-a com uma espada.
E assim, em princípios da primavera de 1429, a Joana D’Arc de dezessete anos de idade, acompanhada por sua comitiva e vestida em trajes masculinos, partiu em sua estranha missão de curar a “triste miséria que era então a França”.
O delfim, Carlos VII, era uma criatura vacilante, fraca, crédula, ignorante e supersticiosa. Quando Joana D’Arc foi admitida à sua presença, estava cercado de um grupo de cortesãos. Contudo, ela não teve dificuldade alguma em distingui-lo porquanto, em matéria de fealdade, ele superava os demais presentes. Crente, devoto de todas as mascaradas religiosas e milagres do século XV, ouviu atentamente a história de Joana D’Arc. Ele também tinha sido inspirado pela profecia de Merlin e de Maria de Avignon. Uma virgem seria a salvadora da França. Agora, a prometida salvadora se achava diante dele, armada com o comando do Senhor e pronta a conduzi-lo à vitória e à coroa!
O ardente desejo da menina camponesa tornara-se a vontade do Rei Carlos VII.
De acordo com os planos dos anjos, isto é, de acordo com os seus próprios planos, cabia a Joana D’Arc solucionar dois deveres solenes: livrar a cidade de Orléans dos malditos ingleses e conduzir o delfim à Cidade de Reims, para ungi-lo com o óleo sagrado que se usara na coroação do Rei Clóvis, o fundador da realeza em França.
O rei aceitou a missão de Joana D’Arc e nomeou-a comandante-em-chefe do pequeno exército que lhe foi possível reunir sob seu estandarte. Nesse tempo era comum ver as mulheres combaterem lado a lado com os homens. Houve trinta mulheres feridas na Batalha de Amiens. Numerosas mulheres-soldados combateram na Boêmia, entre os partidários de João Huss. Na Idade Média quase não houve combates em que as mulheres não se sobressaíssem por seu heroísmo. Era, portanto, a coisa mais natural do mundo para Carlos aceitar os serviços militares de Joana D’Arc. Ele se lembrava das heroínas do Antigo Testamento, Débora e Judite, que, com o auxílio do céu, conquistaram os inimigos de Israel. Agora, estava uma nova profetisa indicada também pelos mensageiros do céu, para vencer os inimigos da França. Com São Miguel a ensinar-lhe o caminho, Joana D’Arc, a inspiradora donzela de Domrémy, ladeada por Santa Catarina e Santa Margarida, tornaria possível expulsar os goddams para sempre de seu reino!
Levantando um exército de 8.000 homens, uma força considerável para aqueles dias, ela partiu contra os ingleses que sitiavam a cidade de Orléans. O povo se admirava quando via a intrépida provinciana equipada com a armadura alvíssima, montada, à frente da coluna, num cavalo negro como carvão. A seu lado, ela tinha preso um machado de batalha e uma espada, e empunhava o estandarte branco onde se viam pintados Deus e os anjos, sobre um fundo de flor-de-lis. Ela lhes parecia um anjo guerreiro descido do céu. No entanto, não era belicosa por natureza. Preferia, se possível, expulsar os ingleses da França sem lutas. Jurava a si mesma que nunca empregaria sua espada para matar alguém. Quando chegou a Orléans, ditou aos ingleses uma carta de três simples palavras: Allez-vous-en (Ide embora). Os ingleses, naturalmente, não deram atenção a seu ultimato e aguardaram o ataque.
A história da Batalha de Orléans já é por demais sabida e não necessita repetição. A vitória final de Joana D’Arc sobre os ingleses não foi um milagre. O exército inglês, sob o comando do brava mas pouco inteligente Talbot, compunha-se somente de dois ou três mil homens ao todo, e uma boa parte deles era composta de franceses. Esta pequena força estava dispersa sobre as várias fortificações que cercavam a cidade. Não havia, praticamente, comunicação entre estas unidades espalhadas da força sitiada, e foi fácil a Joana entrar na cidade com o seu exército de salvadores. Exército esse que era considerado, tanto pelos franceses como pelos ingleses, um exército inspirado. O seu comandante, porém, não era Joana D’Arc e sim o Arcanjo São Miguel. Era desfecho já previsto que os ingleses cairiam ante o ataque desse terrível guerreiro que descera dos céus para expulsá-los de França.
As tropas francesas, como as inglesas, eram compostas de toda sorte de patifes que não tinham ilusões românticas sobre a glória da guerra. Encaravam-na como uma profissão agradável e lucrativa, idêntica à pirataria ou aos assaltos de estrada. Francamente grosseiros em suas atitudes para com a profissão a que se entregavam, não admitiam a possibilidade de ser um soldado um homem decente e respeitável. Certa ocasião, La Hire, o capitão do exército de Joana, em Orléans, observou que até o próprio Deus, uma vez alistado em seu exército, tornar-se-ia salteador. Mas, a presença de Joana, com seus santos invisíveis, transformou as tropas francesas em salteadores consagrados. Todo soldado do exército francês acreditava piamente que batalhões de anjos combatiam a seu lado. E essa crença era compartilhada pelos ingleses. Alguns destes pensavam que os chamados “auxiliares celestes das tropas” eram demônios e não anjos. Mas de uma coisa estavam certos: combatiam contra poderes insuperáveis. Estavam aptos a competir com as forças da terra, mas contra os poderes do céu ou do inferno nem um inglês poderia.
Em suma, os ingleses foram expulsos de Orléans, não só pelo próprio medo do sobrenatural, como também pelos franceses, mais numerosos.
Depois de ter levantado o cerco de Orléans, Joana D’Arc conseguiu aumentar o efetivo de seu exército para 12.000 homens. Agora, por toda a parte olhavam-na como uma santa, ou como uma feiticeira, de acordo com a causa que cada qual abraçava: inglesa ou francesa. Encontrou-se com o delfim Carlos em Tours, e juntos avançaram, ao longo das margens do Loire, em direção à cidade de Reims. O exército inglês, impelido pelo terror, fugia. Aqui e ali, em Jargeau, Patay, Troyes, fizeram tentativas de resistência, mas os inspirados soldados de Joana D’Arc varreram-nos do caminho por onde passavam. Ela tentava evitar combates sempre que era possível. Queria que os ingleses saíssem da França, mas não os odiava. Não gostava de ver sangue. Lamentava o sofrimento de seus inimigos tanto como o de seus próprios homens. Um soldado ferido, fosse inglês ou francês, significava para ela um irmão cristão em miséria. Após a Batalha de Patay, ela chorou ao ver tantos soldados inimigos mortos no campo. Um de seus companheiros ferira mortalmente um prisioneiro inglês. Apeando-se do cavalo, ajoelhou-se ao lado do inglês agonizante, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e murmurou palavras doces enquanto ele expirava.
Mas os seus devotos salteadores, prontos para lutar e morrer por ela, eram incapazes de compreender o seu espírito de misericórdia. Apesar dos protestos, eles mataram a maioria dos prisioneiros das batalhas com os ingleses. O vitorioso exército francês chegou a Reims em 15 de julho de 1429.
Dois dias após, Carlos VII era coroado pelo arcebispo na famosa catedral. Muitos de seus cortesãos e cortesãs estavam presentes à coroação. Sua rainha, Maria d’Anjou, porém, tinha ficado em Chinon, “a fim de poupar a despesa da viagem”. Carlos VII não foi somente um rei sem dinheiro, mas também o menos generoso dos homens.
A tarefa preliminar de Joana D’Arc estava agora finda. Levantara o cerco de Orléans e promovera a coroação do Rei Carlos. Competia-lhe agora acabar de expulsar os ingleses do território nacional. Mas a auréola de sua popularidade começava a se desvanecer. Seus soldados, acostumados agora à sua comunicação diária com os anjos, não se deixavam mais arrebatar por ela. O esplendor de suas visões celestiais decaía à luz do dia. Quanto mais tempo ela se demorasse com os homens, tanto mais estes se impacientavam com ela, pois que ela lhes proibia a pilhagem, privava-os dos prazeres da profanação e condenava-os a uma vida de castidade a ‘que não estavam habituados. Ela procurava, diziam, fazer deles simples mulheres. Muitos de seus soldados se revoltaram e alguns desertaram.
Por outro lado, seus inimigos faziam planos para a sua destruição. Havia quatro grupos distintos que desejavam vê-la eliminada: os ingleses, os franceses aliados a esses, os cortesãos de Carlos, invejosos de sua influência junto ao rei, e os arcebispos e bispos, enciumados de sua familiaridade com os anjos.
Os ingleses, após a Batalha de Azincourt (1415) possuíam a maioria das províncias ao norte do Loire. Estavam ansiosos por estender seu domínio sobre todo o reino de França. Mas Joana D’Arc, a diabólica feiticeira inspirada de Domrémy, não só impedia o progresso inglês, mas ameaçava tirar-lhes o território que já tinham conquistado à custa de tanto esforço e tanto sangue. Estavam, pois, dispostos a impedir sua atividade a qualquer preço.
Aliados a eles, estavam alguns nobres franceses que tinham esperanças de alcançar benefícios próprios com a vitória dos ingleses sobre o Rei Carlos. O principal dentre eles era o Duque de Borgonha, Filipe, o Bom, cujo real nome deveria ser Filipe, o Pouco Bom. (Ele era pai de 18 filhos ilegítimos.) A coroação de Carlos VII foi um golpe terrível pára Filipe. Mais rico, mais capaz e bem mais poderoso que o delfim, sua esperança era tornar-se o senhor de toda a França sob a proteção da Inglaterra. Mas o advento de Joana D’Arc cortou seus planos pela raiz. Junto com os ingleses estava resolvido a puni-la pela sua intromissão.
Mais perigosos ainda do que esses inimigos declarados, eram os que fingiam ser seus amigos. Os insinceros cortesãos de Carlos VII, e particularmente seu Cons. Jorge de La Trémouille, temiam a franqueza e a incorruptível honestidade de Joana D’Arc. La Trémouille era vigoroso, dominador e traiçoeiro. Repudiou sua primeira mulher e casou-se com outra cujo marido matara. Insinuara-se nas boas graças do rei, por meio de mentiras e lisonjas. Era um hipócrita, dos piores. Pronto a trair o seu rei — pois estava secretamente aliado aos ingleses — fez tudo o que pôde para se ver livre da menina camponesa, que percebia claramente suas intenções, e a qualquer momento poderia chamar a atenção do rei sobre a sua traição. Fiel a seu caráter, portanto, tratava Joana com todas as demonstrações de respeito e secretamente tramava sua queda.
Mas de todos os seus inimigos os mais temíveis eram os padres. O arcebispo de Reims, o bispo de Beauvais e a totalidade da faculdade clerical da Universidade de Paris estavam decididos a conseguir a sua morte. Ela ousara comunicar os planos de Deus a seus compatriotas sem haver recebido a permissão da Igreja. Presumindo falar diretamente com os anjos, ela violara a santidade do clero, pois somente ao clero era permitido conversar com os poderes do céu. A Igreja afirmava ser a única intérprete entre Deus e o homem. As revelações de Joana D’Arc, eles pensavam (e se revelavam sinceros em seus pensamentos) , só poderiam ter vindo do diabo, desde que não vinham através da Igreja. Ela era uma herege, uma traidora do céu e uma fonte de perigo para o clero. Por isso, deveria ser morta.
A traição dos inimigos de Joana provou ser mais poderosa do que o patrocínio de seus anjos. Na Batalha de Compiègne caiu em uma cilada armada pelas manobras de alguns de seus compatriotas. Os franceses que a capturaram, venderam-na por 10.000 libras de ouro. Os ingleses, por sua vez, para terem certeza absoluta de sua morte, entregaram-na às mãos da Inquisição. Foi assim que, embora prisioneira de guerra, Joana D’Arc foi julgada e condenada como. herege.
O homem que presidiu seu julgamento foi Pedro Caucron, bispo de Beauvais, Era um cristão devoto. A Universidade de Paris fê-lo comendador publicamente, pela sua “coragem e perseverança nos trabalhos, nas vigílias, nos sofrimentos e tormentos por amor à Igreja”. A última frase de sua comenda deveria ser emendada assim: “e os tormentos que ele infligiu a outros por amor à Igreja”. Era-lhe agradável o cheiro que exalava da carne queimada dos hereges. Foi ele quem no Concílio de Constança, o mesmo Concílio, lembremo-nos, que determinou a morte de João Huss, defendeu a tese de que era permitido em certas ocasiões matar sem as formalidades da justiça.
Quando os ingleses entregaram Joana D’Arc às mãos de Pedro Caucron, para ser julgada, eles realmente assinaram sua sentença de morte. Não tinham intenção alguma de deixá-la viva. Combinaram que, caso ela não fosse condenada como herege pela Igreja, deveria ser devolvida aos ingleses. Era como na aposta: “cara, você perde; coroa, eu ganho”. Ao iniciar o julgamento, dois dos padres presentes, na qualidade de juízes denunciaram todo o processo como ilegal. Um destes padres foi removido prontamente e encarcerado por Cauchon. O outro teve o bom senso de escapar antes que os seus superiores tivessem a oportunidade de puni-la.
O julgamento durou 4 meses. O número de juízes cresceu de 42, no começo, a 63, na parte final. Perseguiram-na como uma matilha de cães. As acusações que faziam contra ela eram, na maioria, absurdas. A principal acusação era o seu pecado de se ter comunicado com o céu, sem o auxílio da Igreja. Em outras palavras, era criminosa porque tinha se submetido à vontade de Deus e não à dos padres. Argumentavam que os poderes sobrenaturais que apareceram a Joana eram demônios em vez de santos. Visto serem os juízes 63 e Joana uma só, aqueles já tinham a questão ganha. Mesmo quando soube que sua sentença estava lavrada, Joana era ainda a única no julgamento que demonstrava uma firme presença de espírito. Numa das sessões, quando todo o bando negro de corvos eclesiásticos começou a falar contra ela, de uma só vez, Joana replicou docemente: “Por favor, bons pais, não falem todos simultaneamente. Estão sujeitos a se confundirem a si próprios.”
A comédia terminou a 30 de maio de 1431. Joana D’Arc foi condenada a ser queimada viva, e Pedro Cauchon foi condecorado mais uma vez, pela Universidade de Paris, pela “grande solenidade e o justo e santo espírito” com que presidira ô julgamento.
Tendo-a condenado à morte, os representantes da Igreja entregaram-na ao braço secular. A Igreja, para traduzir uma de suas frases favoritas em latim, “tinha horror ao derramamento de sangue”. Ela nunca executava diretamente as mortes que desejava. Sentenciava meramente as pessoas à morte, e então orava por suas almas, enquanto o Estado se incumbia de sua execução.
Pouco tempo antes de queimarem Joana D’Arc, o Rev. Prof. Nicolau Midi, da Universidade de Paris, pregou um sermão em sua homenagem. “Quando um membro da Igreja está doente”, começou ele, “a Igreja toda está doente.” E depois tendo-lhe provado que devia morrer “pelo bem da Igreja”, concluiu com as palavras, “Joana, ide em paz; a Igreja não mais pode defender-vos.”
Esta era a fórmula pela qual os padres se absolviam a si próprios de todas as máculas do assassínio de suas vítimas.
Mas Joana D’Arc sabia da verdade. Apontando para Pedro Cauchon, exclamou: “Bispo, eu morro por sua causa!”
O epílogo dessa trágica farsa foi decretado cinco séculos e meio mais tarde, quando o Papa, chegando à conclusão de que os mensageiros de Joana D’Arc eram anjos e não demônios, revogou a sentença de sua morte e transformou-a numa santa.
(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")
São Francisco foi um produto à parte da Igreja, mas Dante foi seu produto mais perfeito. O catolicismo de São Francisco nada tinha a ver com a grandeza da Igreja. Tivesse ele sido um maometano, um budista, ou um judeu, de qualquer maneira poderia ter produzido o divino poema de sua vida. O catolicismo de Dante, porém, fazia parte integrante de toda a sua pompa. Tivesse Dante sido qualquer coisa, menos católico,nunca poderia ter escrito o seu Inferno. São Francisco e Dante representam, respectivamente, a humanidade e o catolicismo em seus melhores aspectos. São Francisco tentou salvar todos os homens, tanto os católicos, como os não-católicos, dos sofrimentos deste mundo. Dante tentou mandar todo o mundo, exceto alguns poucos católicos piedosos, ao fogo perpétuo e aos sofrimentos do outro mundo.
São Francisco fala por todas as épocas. Dante é meramente o porta-voz da Idade Média. É a voz da Igreja medieval. Seu poema é a melhor apologia da Igreja e sua pior acusação. É um quadro completo da beleza e da beatice do espírito medieval. Este espírito, em sua melhor forma, isto é, o espírito de Dante e o da Igreja Católica em geral, amava intensamente e odiava ainda com mais intensidade. Amava tudo dentro dos limites da Igreja, e odiava tudo fora desses limites. Seu ódio era, na verdade, devido ao seu amor. Ensinava-se a todo católico que Deus punia os filhos transviados, a fim de corrigi-los porque Ele os amava, e, tentando ser êmulos da bondade de Deus, os católicos da Idade Média resolveram corrigir os filhos desencaminhados neste mundo, torturando-os e matando-os, se necessário, porque eles os amavam. G. K. Chesterton, a voz do catolicismo hodierno, diz em um trecho de seu livro sobre São Francisco, que “não há nada incompatível entre amar uma pessoa e matá-la”. O espírito medieval de Chesterton compreende perfeitamente o espírito medieval do século XIII. Dante compadecia-se dos pecadores do Inferno, e, em alguns casos, como no de Francesca de Rimini, a quem conhecera desde a infância — amava-os. Contudo, também gostava de vê-los pagar pelos seus pecados, porque supunha serem esses sofrimentos da vontade de Deus. Dante, como a Igreja que representava, procurou não só ser o intérprete de Deus, mas também o seu promotor. Era um homem com o coração de um poeta universal e com o espírito de um padre medieval.
Demorei-me um pouco mais discorrendo sobre este pensamento, porque é de grande importância compreender o espírito de Dante se quisermos compreender o espírito da Idade Média, pela simples razão de que Dante é o próprio espírito dessa época.
Nasceu em 1265, trinta e nove anos depois da morte de São Francisco, e trinta e quatro depois da adoção oficial da Inquisição como um argumento convincente na pregação do evangelho. Seu pai era um próspero advogado na cidade de Florença. Quando criança, aprendeu três coisas acima de todas as outras: adorar a Deus, ser leal à sua cidade e lutar pela sua Igreja. Ensinaram-lhe que havia neste mundo duas espécies de indivíduos: os cristãos, a quem Deus amava, e os não-cristãos, a quem Ele odiava, aprendendo porém a amá-los se eles fossem induzidos ou forçados a se tornarem cristãos. Para aqueles que amava, Deus tinha seu Paraíso. Para os que odiava, Deus tinha o Inferno. E, entre estes dois, levantava-se a montanha do Purgatório, como uma espécie de degrau entre Seu ódio e Seu amor. Para Dante, todas essas coisas não eram contos de fadas: eram reais. Céu, Inferno e Purgatório tinham uma localização definida num mapa fixo. Segundo os melhores conhecimentos de Dante, quando as pessoas morriam, iam infalivelmente para um destes três lugares. O Inferno para Dante era tão certo quanto o é a Austrália para aqueles que nunca estiveram lá, mas que leram a seu respeito nos compêndios de Geografia. A Bíblia, para Dante, era uma fonte infalível de Geografia.
Além da Bíblia, Dante foi educado na infalibilidade de Aristóteles. Os católicos da Idade Média tinham simpatizado com as obras de Aristóteles e de Platão. Sob alguns aspectos, de fato, o catolicismo medieval não foi mais do que o platonismo batizado. Os cristãos tinham que agradecer aos maometanos e judeus pelo seu conhecimento dos filósofos gregos, visto que os maometanos traduziram para o árabe os manuscritos gregos, e os judeus, do árabe para o latim, a única língua clássica compreendida pelos católicos romanos. Assim, Dante estudou Aristóteles, e muitas vezes interpretou-o erroneamente em terceira mão, isto é, em uma tradução feita de outra tradução.
Dante aprendeu de Aristóteles e de Platão que a alma descia do céu e que aspirava a voltar para lá “como a água caída das nuvens em forma de chuva, sobe novamente em forma de vapor”. Uma vez descida, a alma torna-se rude pelo seu contato com a dureza do corpo. A vida, portanto, é um campo de batalha entre os apetites do corpo e a felicidade da alma. Negar os sentidos do corpo é purificar as aspirações da alma. Em outras palavras, devemos almejar a felicidade do céu, renunciando aos prazeres da terra. Se vivemos muito agradavelmente cá embaixo, nossa alma tornar-se-á tão coberta de inutilidades, que terá de ser purificada nos fogos do Inferno, antes de poder voltar ao céu e à santa presença de Deus.
Assim a filosofia de Aristóteles e de Platão tornara-se sutilmente metamorfoseada na moral do cristianismo medieval. Esta doutrina do Céu e do Inferno, tendo a alma humana como prêmio pelo qual ambos disputavam eternamente, ficou profundamente gravada no espírito do jovem Dante. Recebeu bons ensinamentos de Teologia Católica e Filosofia grega. Quanto à ciência, aprendeu-a da Bíblia. Sabia muito pouco acerca do mundo que habitava, mas pensava saber muito acerca do mundo em que ia morrer. Como os outros católicos fervorosos de seu tempo, Dante se interessava muito mais por Dite, a capital do Inferno, e por Jerusalém Dourada, capital do Céu, do que por Florença, cidade onde vivia. Mesmo assim, tomou parte ativa na política de sua cidade.
No século XIII, Florença era um campo de batalha entre os Guelfos, partidários do Papa, e os Gibelinos, sectários do imperador. Dante começou sua carreira como Guelfo, pela simples razão de que seu pai já o fora também. Com a idade, porém, desgostou-se com a desonestidade e a pequenez de alguns Papas. Trocou de campo, unindo-se ao partido dos Gibelinos.
Dante deu largos passos em sua carreira política. Com 35 anos apenas foi eleito um dos principais magistrados de Florença. Dois anos depois, porém, seu partido foi derrotado. Nesses dias de paixões absurdas e cruzadas históricas, uma derrota política quase sempre significava não só desgraça, mas também exílio e morte. O ódio da Idade Média era perseverante. Dante foi expulso de Florença e sentenciado a ser “queimado vivo”, onde quer que fosse encontrado.
Tornou-se um homem sem pátria. “O mundo terrestre atira-o para fora de sua órbita”, e sua imaginação sombria começou a morar no mundo mais hospitaleiro da morte. Impossibilitado de se vingar de seus inimigos na Itália, consolou-se imaginando as torturas mais engenhosas para seus inimigos no Inferno. Todos esses indivíduos foram feitos para sofrer pelo prazer de Dante e para a glória de Deus. Dividiu o Inferno em vinte e quatro círculos, cada qual aparelhado com seus instrumentos de tortura apropriados para os tipos particulares dos pecadores. A visão do Inferno de Dante é tão cheia de vícios quanto magnífica. É a obra de uma imaginação sublime e amargurada. “Ele escreveu muitas vezes”, para citar Santayana, “com uma paixão não esclarecida pelo raciocínio.” Contudo, nunca nos devemos esquecer de que ele também escreveu como um cidadão da Idade Média, filho da Igreja Católica. Pôs nas câmaras de tortura do Inferno tanto os seus
inimigos pessoais como os inimigos da Igreja, e, por inimigos da Igreja, Dante classificava todos aqueles que não eram católicos. Nada exemplifica a intolerância da Igreja medieval tão claramente como o fato de Dante negar a quaisquer dos antigos pagãos a entrada no Céu. Seu único pecado consistia no fato de eles terem nascido cedo demais para serem batizados! O amor infinito a Deus, segundo Dante, não era suficientemente grande para incluir outros que não fossem católicos. Até Virgílio, o grande mestre que guiara Dante através dos complicados labirintos do Inferno, e o trouxera são e salvo às portas do Céu, teve de permanecer, ele também, no limbo do desejo eterno sem esperança, pois Virgílio também tinha nascido cedo demais para ser um cristão.
Essa intolerância e essa insensibilidade egoísta aos sofrimentos de todos aqueles que por acaso não conseguiram alcançar as doutrinas da Igreja estão mais adiante ilustradas em diversas passagens espantosas da Divina Comédia, das quais mencionarei somente duas. A primeira delas está no segundo canto do Inferno; Beatriz, que goza a eterna felicidade no Céu, diz a Virgílio (linha 91) que, devido à graça de Deus, as misérias dos pecadores do Inferno não a tocam. Isso estava de pleno acordo com o temperamento selvagem da Idade Média. Mesmo um dos mais piedosos dos escritores medievais, Santo Tomás de Aquino, chegou a ponto de dizer que Deus em sua bondade intensifica a felicidade dos santos do Céu, permitindo-lhes contemplar as torturas dos pecadores no Inferno. A outra passagem que mencionarei está no último canto do Purgatório. Virgílio está descrevendo o limbo do Inferno (linhas 28 a 34) a Sordello, uma das almas do Purgatório. “Lá embaixo”, diz-lhe Virgílio, “moro com as crianças inocentes arrancadas da vida pelas garras da morte, antes de terem sido eximidas do pecado humano.” Em outras palavras, de acordo com a doutrina de Dante, não somente os hereges, infiéis e pagãos, mas até as crianças indefesas deviam sofrer para sempre o Inferno, se tivessem a infelicidade de morrer antes de serem batizadas. O mundo em que Dante vivia era vicioso, estreito, estúpido, ignorante e vergonhosamente intolerante. Se compreendermos o espírito de Dante, também compreenderemos facilmente o espírito das Cruzadas e as inquisições da Idade Média. Era um espírito que se comprazia em criar beleza e destruir a vida humana. A Idade Média foi bela. É um fato que não pode nem necessita ser negado. Mas a beleza só não basta. Um terremoto é belo, como o é também uma avalancha, uma tempestade no oceano, uma erupção vulcânica, os raios dum relâmpago, um assassínio cuidadosamente planejado, ou uma batalha entre dois exércitos selvagens. Há uma grandiosidade no horror e uma beleza mesmo na morte. Mas é a grandiosidade e a beleza da desarmonia, da destruição, da loucura, de um mundo doentio dividido contra si próprio. Esta é a beleza do poema de Dante e do. século xiii em que ele viveu. Durante mil anos a Europa prosseguiu com ardor, sob a ilusão, louca de que Deus desejava que todos os seus filhos fossem cristãos ou amaldiçoados. Dante herdou essa ilusão e assim sucedeu com os membros da Inquisição: Dante exprimiu-a num poema e os inquisidores usavam o poema como uma fonte de informações para os seus próprios intentos destruidores. Dante assassinou os inimigos da Igreja apenas em sua imaginação, mas os inquisidores, homens práticos e não poetas, queimaram-nos realmente. De acordo com o cálculo de Voltaire, nada menos de dez milhões de hereges foram queimados vivos “por instigação da Igreja”.
O poema de Dante é a “Divina Comédia” de um dos supremos sonhadores do mundo. É a tragédia humana de um de seus mais lamentáveis consumadores de erros clamorosos.
Dante morreu em 1317, e com ele, assim dizem, terminou a Idade Média. Contudo, tais afirmações arbitrárias estão historicamente incorretas. Infelizmente para a paz e o progresso da espécie humana, muitos milhões de homens e de mulheres do mundo inteiro ainda vivem na intolerância e na disputa da Idade Média.
(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")
"Os homens nunca fazem o maltão plenamente e com tanto entusiasmocomo quando o fazem por convicção religiosa"(Pascal
"Parece-me que as pessoas que se apegaram a ela (religião cristã) foram, em sua maioria, extremamente más. Tendes este fato curioso: quanto mais intensa a religião em qualquer época, e quanto mais profunda a crença dogmática, tanto maior a crueldade e tanto pior o estado das coisas. Nas chamadas Idades da Fé, quando os homens realmente acreditavam na religião cristã em toda a sua inteireza, houve a Inquisição, com as suas torturas; houve milhares de infelizes queimadas como feiticeiras – e houve toda a espécie de crueldade praticada sobre toda a espécie de gente em nome da religião. Constatareis, se lançardes um olhar pelo mundo, que cada pequenino progresso verificado nos sentimentos humanos, cada melhoria no direito penal, cada passo no sentido da diminuição da guerra, cada passo no sentido de um melhor tratamento das raças de cor, e que toda diminuição da escravidão, todo o progresso moral havido no mundo, foram coisas combatidas sistematicamente pelas Igrejas estabelecidas do mundo. Digo, com toda convicção, que a religião cristã, tal como se acha organizada em suas Igrejas, foi e ainda é a principal inimiga do progresso no mundo."
A tolerância apreende-se do Evangelho de Jesus Nazaré. Em que "Evangelho" se inspira quem defende tais ideias? Como é possível que as autoridades eclesiásticas ou civis ainda concedam tempo de antena a alguém que advoga e é porta-voz do famigerado obscurantismo medieval da Igreja? Quem espalha a semente do Diabo presta um péssimo serviço à sociedade e ao Evangelho. Não me admiraria nada que este cromo estivesse incluído na lista de personalidades a acolher o Papa Francisco, na próxima visita ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude!"A Inquisição tomou a si o encargo de perseguir não somente os hereges, isto é, os cristãos que se desviassem do caminho ortodoxo, mas também os maometanos e os judeus. Os maometanos e os judeus que viviam na Europa cristã e particularmente na Espanha eram considerados bons combustíveis para a santa fogueira... não tanto porque seus corações se achassem repletos de pecados, mas porque seus cofres se achavam cheios de ouro. Primeiro, eram eles compelidos a aceitar a religião cristã, e depois eram assados vivos, na suposição de que fossem “maus” cristãos.
O homem que mais sobressaiu em zelo nas incinerações de maometanos e judeus foi Tomás de Turrecremata, ou como é mais geralmente conhecido, Tomás de Torquemada. Se Gregório IX foi o pai da Inquisição, Torquemada foi o seu produto mais perfeita. Tinha paixão por três coisas: oração, dinheiro e assassínios. Era um beato convicto — um dos animais humanos mais perigosos. Pensava que satisfazia a vontade de Deus matando seus semelhantes. Era um louco piedoso, investido pelo Papa com poder de dar vazão a toda sua loucura. Durante sua presidência da Inquisição, queimou cerca de dois mil homens e mulheres (alguns calculam o número em oito ou nove mil), e quebrou os ossos de dezenas de milhares de seres, com instrumentos de tortura. Servia igualmente de acusador, testemunha e juiz, e freqüentemente “dava uma ajudazinha” na câmara de tortura."
O acusado na Inquisição era responsabilizado por uma "crise de fé", pela qual poderia, ou não, ter relação com fenômenos naturais como pestes, terremotos, doenças e miséria social. Ele era então preso e entregue às autoridades estatais para ser punido. As penas variavam de confisco de bens à pena de morte na fogueira. O uso do fogo foi o modo de punição mais famoso, embora outros meios fossem utilizados. Essas punições tinham um significado religioso, já que o fogo era o símbolo da purificação e materialização da desobediência a Deus, ou seja, do pecado e ilustração da imagem do inferno.
As punições com fogo também envolviam autores de livros polêmicos. Em 1756, em Londres, por exemplo, há o registro do que teria sido levado à execução um Cavaleiro de Oliveira, na verdade o escritor português Francisco Xavier de Oliveira (1702-1783): a publicação da obra Discours pathetéque ou suget des calamites, publicado naquela cidade. Há duas versões para essa execução: em uma delas, o cavaleiro foi queimado com o livro suspenso ao pescoço como herege convicto. Na segunda, o livro foi colocado em uma estátua do escritor e então queimada.
É importante lembrar, entretanto, que os tribunais da Inquisição não eram permanentes, e sim entravam em funcionamento em casos de heresia comprovada e depois eram desativados. Quando houve a Reforma Protestante, no século XVI, foram instituídos outros métodos judiciários de combate à heresia. Neles o delator que apontava um herege garantia sua própria fé em público e sua condição perante a sociedade. Basta lembrar que a caça às bruxas teve origem em países protestantes e não foi liderada pela Inquisição.
Outro ponto que deve ficar claro é que a Inquisição apenas fazia as investigações e inquéritos, deixando a aplicação da pena final para o poder secular. Aos poucos, a partir do século XIX, os tribunais inquisitórios foram suprimidos pelos estados europeus, embora fossem mantidos pelo Estado Pontifício, hoje a cidade-estado do Vaticano.
A partir de 1908, no pontificado de Pio X (1835-1914), a Inquisição ganhou a nova denominação de Sacra Congregação do Santo Ofício e, em 1965, quando aconteceu o Concilio Vaticano II, assumiu o nome que tem hoje: Congregação para a Doutrina da Fé.
(Sérgio Pereira Couto - "Os arquivos secretos do Vaticano")
Passamos agora a tratar da conturbada história daquela que seria uma das principais fontes de documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano: a Santa Inquisição, o terror que condenou milhares de pessoas à morte em nome da preservação do catolicismo.
A imagem que ficou popularizada é a dos inquisidores com longas vestes escuras que apontavam o dedo para o acusado de algum delito, em geral bruxaria ou heresia, considerada mais grave, e que agia muitas vezes ao mesmo tempo como juiz, júri e executor.
A primeira coisa que vem à mente das pessoas é saber como uma instituição de caráter religioso acumulou tanto poder a ponto de desafiar até mesmo os reis, em uma época em que aqueles governantes se achavam com direito divino e absoluto de governar.
Para tanto, é necessário entender o papel da Inquisição desde sua concepção. Segundo o historiador Gilberto Coltrim, a Santa Inquisição foi criada para combater o sincretismo, definido como "fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpretação de seus elementos", entre certos grupos religiosos que se valiam da adoração de plantas e animais e praticavam mancias, adivinhações por meio de algo designado pelo precedente. Essa era sua função original, já que a Inquisição, como a conhecemos, é derivada da versão medieval, mas, na verdade, existiram instituições anteriores dedicadas a tais combates.
Um fator importante é entender que, embora o termo heresia seja utilizado até hoje, ele ficou ligado à Idade Média e às ações da atual "Congregação para a doutrina da fé", o novo nome sob o qual a Santa Inquisição sobrevive até hoje. A cada dia que passa, os doutores da igreja reveem os atos de seus antepassados e admitem que "a prática inquisitorial estava errada ao punir com violência e morte de indivíduos hereges", como foi declarado pelo papa João Paulo II no artigo "Perdoai as nossas ofensas", na revista Veja Especial, de 6 de abril de 2005.
O que não se pode deixar de admitir é o fato de que a Inquisição foi e é considerada ainda como uma das instituições humanas que mais feriu os direitos humanos, principalmente o da livre escolha religiosa.
(Sérgio Pereira Couto - "Os arquivos secretos do Vaticano")
Com o intuito de ser mais justo possível para com a Inquisição, tentei examiná-la através de seus próprios depoimentos. Confiei, exclusivamente, em fontes católicas ao colher o material para este capítulo, e, por conseguinte, considerarei a Inquisição sob o ângulo daqueles que a patrocinaram, que a defenderam no passado e estão prontos, em teoria ao menos, a defendê-la hoje.
Os primeiros cristãos, fiéis aos ensinamentos de Cristo, opunham-se a qualquer espécie de violência. Tertuliano negava o direito a qualquer cristão de servir no exército. “Certamente não faz parte da religião”, dizia ele, “forçar a religião. Ela deve ser abraçada livremente e não por coação.” Era esta também a doutrina de Orígenes e de Lactâncio. “Não há justificação para a violência”, escrevia Lactâncio, “pois a religião não pode ser imposta pela força.”
No século IV, contudo, houve uma mudança nos corações dos cristãos. Agostinho assegurava que em “alguns” casos era permitido matar descrentes. Optato estendia a pena de morte a “todos” os hereges, Agostinho e Optato são, hoje, venerados como santos. Na cidade de Verona queimaram vivos cerca de sessenta homens num mês.
Os bispos tinham ordens de assalariar informantes, cujo dever era denunciar todos os cristãos suspeitos, isto é, todos aqueles cuja maneira de viver divergia da dos católicos. Os bispos, então, examinavam estes cristãos e os puniam como achavam conveniente. Os bispos que deixassem de contribuir com suas quotas de hereges queimados eram, por ordem do Papa, depostos de seus cargos; quando mostravam muita clemência para com suas vítimas, eram ameaçados de prisão, sob a acusação de heresia. Deste modo, assegurava o Papa um constante fornecimento de seres humanos “para a glória do Senhor”, e casualmente também para a sua riqueza pessoal, pois que a Igreja confiscava a propriedade dos condenados. Os bispos, com todo o seu zelo, não eram nem suficientemente sedentos de sangue, nem bastante eficazes para satisfazer ao Papa.
A fim de descobrir todos os pecadores e exterminar todo o pecado da cristandade, eram necessários espiões treinados. De acordo com esse preceito, o Papa aceitou o auxílio de dominicanos. Estes, como estão lembrados, eram os sectários de Domingos, que santamente advogava o batismo pela espada. Agora, o Papa Gregório IX tirava vantagem desse treinamento dos dominicanos na arte da selvageria eclesiástica, e, com a sua ajuda, transformou a Inquisição num negócio poderoso e lucrativo. Numa carta que Gregório dirigiu aos dominicanos, delineava os seus deveres do seguinte modo:
“Logo ao chegar a uma cidade, convoquem os bispos, o clero e o povo, e preguem um solene sermão de fé; depois, façam uma seleção de certos homens de boa reputação para estes os ajudarem no julgamento dos hereges e de suspeitos denunciados nos seus tribunais. Todos os que, em exame, forem achados culpados ou suspeitos de heresia, serão obrigados a prometer obediência absoluta aos comandos da Igreja. Se eles recusarem, devem processá-los.”
Por que estava o Papa tão sedento de hereges? Só por uma razão: os hereges se opunham ao esplendor do Papa. Representavam os socialistas cristãos e os anarquistas filosóficos do mundo medieval. Foram os antepassados espirituais de Emerson e de Tolstoi. Havia vários grupos, tendo todos uma coisa em comum: acreditavam na doçura de Cristo e odiavam a arrogância dos padres. “Cristo”, diziam “não tinha onde descansar a cabeça, ao passo que os Papas vivem num palácio. Cristo rejeitava domínios terrestres, enquanto os Papas os exigem. O que tem o papado romano, com sua sede de riquezas e honrarias, em comum com o evangelho de Cristo?” Como aconteceu mais tarde com a seita dos quacres, os hereges pregavam contra a opressão, o ódio, a pena capital e a guerra. Suas teorias radicais, escreve Vacandard, “não eram só anticatólicas, mas antipatrióticas e anti-sociais”. E, assim, matando todos esses amantes da paz a Igreja agia simplesmente em defesa própria o crescimento de suas idéias devia ser embargado a todo custo. Ainda que fosse à custa da morte!
É interessante notar que esta não é a opinião de um padre medieval, e sim de um historiador católico moderno. O espírito da Inquisição, como parece, ainda está bem vivo em certos lugares, mesmo em nossos dias.
A Inquisição tomou a si o encargo de perseguir não somente os hereges, isto é, os cristãos que se desviassem do caminho ortodoxo, mas também os maometanos e os judeus. Os maometanos e os judeus que viviam na Europa cristã e particularmente na Espanha eram considerados bons combustíveis para a santa fogueira... não tanto porque seus corações se achassem repletos de pecados, mas porque seus cofres se achavam cheios de ouro. Primeiro, eram eles compelidos a aceitar a religião cristã, e depois eram assados vivos, na suposição de que fossem “maus” cristãos.
O homem que mais sobressaiu em zelo nas incinerações de maometanos e judeus foi Tomás de Turrecremata, ou como é mais geralmente conhecido, Tomás de Torquemada. Se Gregório IX foi o pai da Inquisição, Torquemada foi o seu produto mais perfeita. Tinha paixão por três coisas: oração, dinheiro e assassínios. Era um beato convicto — um dos animais humanos mais perigosos. Pensava que satisfazia a vontade de Deus matando seus semelhantes. Era um louco piedoso, investido pelo Papa com poder de dar vazão a toda sua loucura. Durante sua presidência da Inquisição, queimou cerca de dois mil homens e mulheres (alguns calculam o número em oito ou nove mil), e quebrou os ossos de dezenas de milhares de seres, com instrumentos de tortura. Servia igualmente de acusador, testemunha e juiz, e freqüentemente “dava uma ajudazinha” na câmara de tortura. Examinemos, rapidamente, o processo da Inquisição sob a direção de Torquemada.
Para começar, o inquisidor expedia uma intimação geral, ordenando que os hereges aparecessem à sua presença e abjurassem suas heresias dentro do prazo de trinta dias. Bem poucos, naturalmente, denunciavam-se espontaneamente. Ao findar o “período de graça”, todo católico era incitado a denunciar todos os habitantes da cidade que suspeitasse de heresia. Para culpar alguém, bastavam duas testemunhas e essas testemunhas podiam ser ladrões ou assassinos, desde que fossem cristãos confessos. Ao acusado, porém, não era permitido ter nem advogados, nem testemunhas. E, ainda mais, os nomes dos espiões e das testemunhas para a Inquisição não eram revelados ao acusado. Com todas as cartas assim dispostas contra ele, o prisioneiro achava-se virtualmente impossibilitado de provar a falsidade da acusação. Se se confessava cristão, era mandado para a prisão; se, por outro lado, insistisse em sua inocência, era levado à câmara de tortura.
Poder-se-ia escrever um livro interessante, embora bem pouco agradável, sobre os instrumentos de tortura empregados pelos inquisidores a serviço do Senhor. Mencionarei, rapidamente, apenas dois ou três.
Primeiro havia o Strappado. Vacandard, o moderno apologista da Inquisição, descreve-o como segue: “O prisioneiro, com as mãos amarradas para trás, era levantado por uma corda que passava por uma roldana, e guindado até o alto do patíbulo ou do teto da câmara de tortura; em seguida, deixava-se cair o indivíduo e travava-se o aparelho ao chegar o seu corpo a poucas polegadas do solo. Repetia-se isso várias vezes. Os cruéis carrascos, às vezes, amarravam pesos nos pés da vítima, a fim de aumentar o choque da queda.
“Depois havia a tortura pelo fogo. Colocavam-se os pés da vítima sobre carvão em brasa e espalhava-se por cima uma camada de graxa, a fim de que este combustível estalasse ao contato com o fogo. Os inquisidores estavam ali enquanto o fogo martirizava a vítima, e incitavam-na, piedosamente, a aceitar os ensinamentos da Igreja em cujo nome ela estava sendo tratada tão delicadamente e tão misericordiosamente. Para que houvesse um contraste com a tortura pelo fogo, também praticavam a da água.
“Amarrando as mãos e os pés do prisioneiro com uma corda trançada que lhe penetrava nas carnes e nos tendões, abriam a boca da vítima à força, despejando dentro dela água até que chegasse o ponto de sufocação ou confissão.”
Em suma, todas as imaginações bárbaras do espírito de Dante, quando escreveu o Inferno, foram incorporadas em máquinas reais que cauterizavam as carnes, esticavam os corpos e quebravam os ossos de todos aqueles que recusavam crer na branda misericórdia dos Inquisidores.
E agora citemos mais uma vez o Sr. Vacandard:
“De acordo com a lei, tortura só podia ser infligida uma vez, mas essa regulamentação era burlada facilmente ... quando desejavam fazer repetir a tortura, mesmo depois de um intervalo de alguns dias, infringiam a lei, não alegando que fosse uma repetição, mas simplesmente uma continuação da primeira tortura... Esse jogo de palavras dava margem à crueldade e ao zelo desenfreado dos inquisidores.”
Se, por fim, sob a dor que a tortura causava, a vítima prometesse ser um bom católico, era posta, geralmente, em prisão perpétua. Se, porém, recusasse a atirar-se nos braços da Igreja, era entregue às chamas. Teoricamente, como já observei, a Igreja fazia questão de dizer que nada tinha com o assassínio de suas vítimas. Apenas “retirava sua proteção” dessas criaturas e entregava-as à justiça. Tecnicamente falando, suas mãos ficavam limpas. Mesmo os historiadores modernos tentam salvá-la de todas as vergonhas em relação aos assassínios de homens e mulheres que cometeu. José de Maistre, escrevendo no século XIX, foi suficientemente ingênuo para fazer a seguinte observação surpreendente:
“Quando examinarmos a Inquisição, é preciso separar e distinguir muito cuidadosamente o papel da Igreja e o do Estado. Tudo o que há de horrível e cruel neste Tribunal, especialmente sua pena de morte, é devido ao Estado... Toda a clemência, por outro lado, que tem um papel tão preponderante no tribunal da Inquisição deve ser atribuída à Igreja.”
Na realidade, infelizmente, a Igreja não só condenava as suas vítimas, como também insistia sobre suas mortes. De acordo com uma lei estabelecida pelo Papa Inocêncio IV, o Estado era obrigado a queimar, dentro de um período de cinco dias, todos os prisioneiros condenados que a Igreja lhe confiasse. Todos aqueles príncipes que se recusassem a matar os condenados hereges eram prontamente excomungados pela Igreja.
Mas a mancha mais negra da Inquisição era o tratamento bárbaro dos filhos dos condenados. Quando queimava um homem, a Igreja confiscava suas propriedades. Não permitia aos filhos herdar um único vintém. A esta regra, contudo, far-se-ia uma exceção importante. E esta exceção era ainda mais desumana do que a regra. Os filhos de pais hereges podiam herdar uma parte de suas propriedades, desde que espionassem e denunciassem seus progenitores à Inquisição. Esta lei incrível, estabelecida por Frederico II, foi reforçada no texto da carta por muitos inquisidores e particularmente por Torquemada. De fato, os pais da Igreja não só acreditavam nesta lei, como também se orgulhavam dela. O Papa Gregório IX dizia que fazia bem a seu coração ver como as crianças se voltavam contra seus pais, por amor a Deus. “Deixai vir a mim os pequeninos”, dizia Cristo. E a santa irmandade da Inquisição respondia: “Sim, na verdade, Senhor! Nós deixaremos sofrer os pequeninos, de maneira que eles possam ir a Vós!”
Um dos principais atos da Inquisição, e o acontecimento culminante na vida de Torquemada, foi a expulsão dos judeus da Espanha. Em sua juventude, Torquemada foi o confessor da Princesa Isabel, que mais tarde veio a ser esposa do Rei Fernando. Tal como seu confessor fanático, Isabel era vingativa, estúpida, bárbara e devota. Prometera a Torquemada que devotaria sua vida inteira à exterminação da heresia.
Quando se tornou rainha da Espanha, encontrou um aliado entusiástico em seu marido. Fernando foi um dos reis mais cobiçosos. Era ávido em queimar os judeus porque suas propriedades, quando confiscadas pela Igreja, eram divididas entre os padres e ele. Quando Torquemada veio queixar-se a ele de que todos os judeus deviam ser expulsos da Espanha, escutouo avidamente, pois a expulsão dos judeus significaria uma pilhagem, por atacado, aos seus bens e ao seu ouro, uma parte substancial da qual tornar-se-ia ,sua propriedade pessoal. Com um simples golpe de pena poderia tornar-se o homem mais rico da Europa. Isabel, não sendo mais do que uma argila maleável nas mãos de um velho padre confessor,aderiu prontamente a seus planos. O decreto da expulsão dos judeus foi elaborado e apresentado aorei para ser assinado.
Entrementes, os judeus lançavam mão de tudo o que estava ao seu alcance para abrandar o coração do rei. Jogados de um lado para outro pelos ventos da intolerância religiosa, eles eram expulsos de uma região para outra. Tudo o que pediam agora ao Rei Fernando era que os deixasse em paz. Mandaram-lhe os oradores mais eloqüentes. Lembraram-lhe que eles o tinham ajudado a pagar as despesas de suas guerras com os mouros. Ofereceram-lhe um presente de 30.000 ducados — uma soma tentadora aos olhos do cobiçoso príncipe. Fernando, nada inclinado a escutar seus argumentos, estava pronto a considerar o ouro, quando Torquemada, precipitando-se no palácio real, segurando um crucifixo no ar, em suas mãos enrugadas — nesse tempo ele já tinha mais de setenta anos — berrou: “Eis aqui aquele Judas, que vendeu Jesus por 30 moedas de prata! Estais vós porventura pronto a vendê-lo por 30.000 moedas de prata novamente?” Não, trinta mil não era bastante. Torquemada subjugara a vontade do rei e da rainha. O edito contra os judeus foi assinado em 31 de março de 1492. De acordo com este edito, todo judeu residente em território espanhol deveria ser batizado dentro de quatro meses ou deixar o país para sempre. Trezentos mil preferiram o, exílio ao cristianismo. Permitia-se-lhes vender suas propriedades, mas os compradores esperavam astuciosamente até o último momento, quando podiam ditar seus próprios preços. Bernaldes, um autor contemporâneo, afirma ter visto judeus deixarem um palácio por um burro, e um vinhedo por uma peça de linho. Aos exilados era proibido levar qualquer porção de ouro consigo.
Tendo assim roubado os judeus e os lançado para fora do país, os cristãos regozijaram-se com suas barbaridades. “Eis aqui”, gritava o irmão dominicano Bleda, “o acontecimento mais glorioso da Espanha, desde o tempo dos apóstolos; agora a unidade da religião está assegurada; uma era de prosperidade está, realmente, para chegar.” Mas a esperada alvorada de prosperidade jamais chegou. Pelo contrário, a expulsão dos judeus marcou o começo do ocaso da prosperidade espanhola.
Ao serem expulsos da Espanha, os judeus não sabiam então para onde se dirigir, em busca de proteção. Um grande número deles lançou-se sob a misericórdia de Manuel, rei de Portugal. Mas o rei chamava-se a si próprio de cristão piedoso, Pilhou o que os judeus conseguiram salvar e ordenou-lhes então que deixassem o país. Esse “rei misericordioso” fez a sua manobra bem-feita. Roubou não só os bens dos judeus, como também seus filhos, pois expediu uma ordem secreta para seqüestrar todas as crianças judias menores de 14 anos, a fim de que fossem batizadas e educadas como cristãos.
Quanto a Torquemada, alimentava os fogos sagrados lançando nas chamas várias centenas de hereges, “Sua crueldade”, dizem seus admiradores, “explica-se pelo seu sincero desejo de salvar os hereges.” Tal como seu amado Tomás de Aquino, “ele consolava seu coração entristecido, refletindo que agia pelo bem da Igreja”. Pois convém notar que Torquemada ignorava que fosse cruel. Como todos os outros inquisidores, ele mutilava e assassinava suas vítimas misericordia et justitia — com misericórdia e justiça. Essa era a frase dos inquisidores quando sentenciavam suas vítimas a morrer queimadas.
Torquemada retirou-se da Inquisição com setenta e quatro anos e morreu dois anos depois, em 1498.
A Inquisição, porém, continuou até o século, XIX.
(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")