A despeito do sopro purificador da Renascença, o espírito mau da Idade Média ainda pairava como um miasma sobre a face da Europa Ocidental. No século XV, o ar da Alemanha, da Boêmia, da França, da Itália e da Espanha impregnava-se da fumaça produzida pelas carnes em chama de milhares de homens e mulheres. Os mestres da hipocrisia descobriram que o caminho mais fácil é o de matar a crítica. E, assim, todos aqueles que discordavam da Igreja (ou cuja riqueza despertasse a cobiça voraz dos bispos e Papas) eram queimados vivos e suas propriedades confiscadas.
Tanto os dissidentes da Igreja como os ofensores políticos eram julgados hereges e queimados vivos, visto que os Papas e os príncipes agiam de comum acordo. A desobediência ao Estado era considerada traição ao céu, pois que os governadores do Estado se diziam ungidos de Deus. Opor-se ao governo, reconhecido pela Igreja significava um crime capital, não só contra o governo, mas também contra a Igreja.
É necessário que nos lembremos desta íntima união política entre a Igreja e o Estado, se quisermos compreender a história de Joana D’Arc. Tendo cometido, segundo a Igreja, uma ofensa política, era de prever-se, de acordo com o espírito da época, que ela fosse acusada de um crime “religioso”, julgada e queimada como herege. A um espírito moderno, toda a carreira da virgem de Orléans parece inacreditável. Para o supersticioso espírito do século XV, sua vida nada teve de vulgar, e sua morte era o único desfecho possível naquela circunstância.
Na Idade Média, todo o mundo conversava com anjos e acreditava em milagres. Um certo Irmão Ricardo, interpretando, como dizia, as vozes diretas do céu, agitou toda a cidade de Paris, num frenesi de evangelizador supersticioso. O monge carmelita Tomás Conecta, orientado, como alegava, pela vontade dos santos do céu, pregava na Bélgica e na França a um auditório de quinze mil pessoas de cada vez. Na Bretanha, uma jovem de nome Pierrette, assombrava seus compatriotas, dizendo-lhes que se achava em constante comunicação com o próprio Jesus. Espalhou-se a notícia de que um jovem pastor suava sangue nos dias santificados. Toda a província tinha seus homens e suas mulheres histéricos, que acreditavam e faziam outros acreditarem que eles viam e conversavam com os espíritos do céu.
Todos esses contos miraculosos de comunicação com os espíritos, Joana D’Arc, a pequena camponesa de Domrémy, os ouvira dos lábios piedosos de sua mãe. Nunca lhe ensinaram a 1er nem a escrever. Sua educação consistia quase exclusivamente em contos de fadas e mitos religiosos, nos quais aprendeu a crer como fatos reais. “Nascida sob as muralhas da Igreja” — para citar o historiador francês Michelet — “embalada para dormir ao som dos sinos e alimentada com lendas, ela mesma se tornou uma lenda viva.” Não longe da casa de seu pai, havia uma floresta na qual, como se acreditava, viviam fadas. Em cima, nas nuvens fugazes, ela via os anjos nos seus carros de fogo. Algumas vezes, quando seu pai se achava nos campos e sua mãe trabalhava em casa, sentavase ela na soleira da porta e escutava os ruídos da aldeia. Um murmúrio confuso, sonolento, esquisito — não seriam mesmo as vozes dos anjos a dirigir-lhe a palavra? A linha divisória entre este mundo e o próximo era muito vaga. Anjos e homens, na sua imaginação infantil, podiam confundir-se e conversar, tão naturalmente como dois vizinhos que se encontram na rua. Ouvir um anjo chamar alguém do céu não era mais surpreendente do que ouvir sua mãe chamar alguém da cozinha. Nisso não havia milagre. Pelo contrário, Joana reputaria um milagre se lhe dissessem que os anjos não
falavam aos filhos de Deus na terra.
Em síntese, ela vivia num mundo no qual era impossível distinguir o real do irreal. Os anjos poderiam descer a ela, na terra, e ela, por sua vez, poderia subir, para encontrar-se com eles no céu.
Mesmo assim, nesse mundo fantástico e encantador, existia uma horrível e incontestável realidade — a guerra com os ingleses. Esses ingleses, “amaldiçoados de Deus” (goddams que os franceses pronunciavam goddons) estavam devastando o infeliz reino de França. Os soldados ingleses colhiam as safras dos camponeses franceses. Queimavam suas casas e levavam o gado. Às vezes, no meio da noite, Joana era acordada pelos gritos dos fugitivos de outras aldeias. Uma vez, seus próprios pais foram obrigados a fugir dos invasores. Quando a família voltou ao lar encontrou a aldeia saqueada, a casa pilhada e a igreja em chamas.
A bondade dos santos do céu e a lamentável situação do reino de França — estes eram os dois fatos predominantes na vida da pequena camponesa de Domrémy. A França era querida dos santos — foi a idéia que sua mãe lhe imprimira no espírito, repetindo-a a cada momento — e eles exerciam todo o seu poder para expulsar os ladrões ingleses do solo sagrado. Profetizava-se que uma jovem se tornaria a salvadora de França. Merlin, o mágico, e Maria de Avignon, uma santa mulher que palestrava com os anjos, já tinham, ambos, previsto isso. E, assim, a criança olhava fixamente as nuvens, sonhando com o dia em que os anjos viriam buscar a salvadora para expulsar os ingleses da França.
Certa vez, num dia santo, no meio do verão, quando todas as pessoas piedosas jejuavam, e o céu e a terra pareciam mais próximos do que nunca, Joana julgou ouvir uma voz a falar-lhe através do silêncio. Era a voz do Arcanjo São Miguel que dizia: “Seja uma boa menina, Joana. Vá sempre à igreja.” Ela se assustou, mas não se surpreendeu.
Era sabido que os anjos falavam com outras pessoas. Por que não com ela? Afinal, São Miguel estava longe de ser um estranho para ela. Sabia a sua história e sua figura lhe era familiar; era, portanto, perfeitamente natural que ele lhe dissesse, como o padre da aldeia lhe teria dito, que fosse uma boa menina e que freqüentasse a igreja.
A ilusão de que os anjos lhe falavam crescia cada vez mais. Havia pouco tempo, o Arcanjo São Miguel encontrara-se com Santa Margarida e Santa Catarina. Estas, também, eram figuras familiares a Joana. Quando as via no ar, por cima de sua cabeça, reconhecia-as imediatamente através de seus quadros.
Joana contava treze anos de idade, quando teve seu primeiro encontro com anjos. Eles vinham conversar diariamente com ela e, não raro, várias vezes por dia. Ela os via perfeitamente e ouvia suas vozes mais distintamente quando os sinos da igreja badalavam. A princípio, falavam-lhe de assuntos comuns, mas um dia, São Miguel falou-lhe sobre o assunto que a interessava, isto é, da pena que sentia do reino de França. “Filha de Deus”, disse ele, “chegou o momento de deixares tua aldeia e ires em auxílio da França.” Em outra ocasião insistia para que ela restituísse o reino de França ao verdadeiro rei. A profecia de Merlin estava para cumprir-se.
Joana, a jovem camponesa de Domrémy, foi escolhida pelos poderes do céu para tornar-se a salvadora de França. Pouco a pouco ela se convenceu completamente de sua missão. A excitação de seu próprio desejo era tão viva no espírito da criança ignorante e supersticiosa mas altamente poética da Idade Média, que os seus pensamentos se revestiram de formas visíveis e assumiram a configuração de anjos que lhe transmitiam as ordens do Senhor.
“Deixe o lar e todos os entes queridos, Joana, e vá em auxílio do rei da França.”
“Mas”, replicou ela, toda trêmula, “eu sou apenas uma pobre moça. Não sei montar, nem
combater.”
São Miguel aconselhou-a então a ir ter com Roberto de Baudricourt, o senhor da cidade de Vaucouleurs e da aldeia de Domrémy. Este homem, assegurou-lhe o arcanjo, fornecer-lhe-ia homens e meios para a sua jornada a Chinon, onde o tímido delfim (herdeiro do trono) Carlos VII vivia no palácio real — um rei sem coroa numa terra conquistada.
Joana não foi bem-sucedida com Baudricourt. Ele se mostrava céptico quanto à missão da moça. Mas a plebe veio em seu auxílio. Como eram bons cristãos medievais, acreditavam em sua história de anjos, justamente por ser tão inacreditável. Compraram-lhe um cavalo e deram-lhe uma pequena escolta de homens armados. Baudricourt, movido, finalmente, pelo entusiasmo do povo, presenteou-a com uma espada.
E assim, em princípios da primavera de 1429, a Joana D’Arc de dezessete anos de idade, acompanhada por sua comitiva e vestida em trajes masculinos, partiu em sua estranha missão de curar a “triste miséria que era então a França”.
O delfim, Carlos VII, era uma criatura vacilante, fraca, crédula, ignorante e supersticiosa. Quando Joana D’Arc foi admitida à sua presença, estava cercado de um grupo de cortesãos. Contudo, ela não teve dificuldade alguma em distingui-lo porquanto, em matéria de fealdade, ele superava os demais presentes. Crente, devoto de todas as mascaradas religiosas e milagres do século XV, ouviu atentamente a história de Joana D’Arc. Ele também tinha sido inspirado pela profecia de Merlin e de Maria de Avignon. Uma virgem seria a salvadora da França. Agora, a prometida salvadora se achava diante dele, armada com o comando do Senhor e pronta a conduzi-lo à vitória e à coroa!
O ardente desejo da menina camponesa tornara-se a vontade do Rei Carlos VII.
De acordo com os planos dos anjos, isto é, de acordo com os seus próprios planos, cabia a Joana D’Arc solucionar dois deveres solenes: livrar a cidade de Orléans dos malditos ingleses e conduzir o delfim à Cidade de Reims, para ungi-lo com o óleo sagrado que se usara na coroação do Rei Clóvis, o fundador da realeza em França.
O rei aceitou a missão de Joana D’Arc e nomeou-a comandante-em-chefe do pequeno exército que lhe foi possível reunir sob seu estandarte. Nesse tempo era comum ver as mulheres combaterem lado a lado com os homens. Houve trinta mulheres feridas na Batalha de Amiens. Numerosas mulheres-soldados combateram na Boêmia, entre os partidários de João Huss. Na Idade Média quase não houve combates em que as mulheres não se sobressaíssem por seu heroísmo. Era, portanto, a coisa mais natural do mundo para Carlos aceitar os serviços militares de Joana D’Arc. Ele se lembrava das heroínas do Antigo Testamento, Débora e Judite, que, com o auxílio do céu, conquistaram os inimigos de Israel. Agora, estava uma nova profetisa indicada também pelos mensageiros do céu, para vencer os inimigos da França. Com São Miguel a ensinar-lhe o caminho, Joana D’Arc, a inspiradora donzela de Domrémy, ladeada por Santa Catarina e Santa Margarida, tornaria possível expulsar os goddams para sempre de seu reino!
Levantando um exército de 8.000 homens, uma força considerável para aqueles dias, ela partiu contra os ingleses que sitiavam a cidade de Orléans. O povo se admirava quando via a intrépida provinciana equipada com a armadura alvíssima, montada, à frente da coluna, num cavalo negro como carvão. A seu lado, ela tinha preso um machado de batalha e uma espada, e empunhava o estandarte branco onde se viam pintados Deus e os anjos, sobre um fundo de flor-de-lis. Ela lhes parecia um anjo guerreiro descido do céu. No entanto, não era belicosa por natureza. Preferia, se possível, expulsar os ingleses da França sem lutas. Jurava a si mesma que nunca empregaria sua espada para matar alguém. Quando chegou a Orléans, ditou aos ingleses uma carta de três simples palavras: Allez-vous-en (Ide embora). Os ingleses, naturalmente, não deram atenção a seu ultimato e aguardaram o ataque.
A história da Batalha de Orléans já é por demais sabida e não necessita repetição. A vitória final de Joana D’Arc sobre os ingleses não foi um milagre. O exército inglês, sob o comando do brava mas pouco inteligente Talbot, compunha-se somente de dois ou três mil homens ao todo, e uma boa parte deles era composta de franceses. Esta pequena força estava dispersa sobre as várias fortificações que cercavam a cidade. Não havia, praticamente, comunicação entre estas unidades espalhadas da força sitiada, e foi fácil a Joana entrar na cidade com o seu exército de salvadores. Exército esse que era considerado, tanto pelos franceses como pelos ingleses, um exército inspirado. O seu comandante, porém, não era Joana D’Arc e sim o Arcanjo São Miguel. Era desfecho já previsto que os ingleses cairiam ante o ataque desse terrível guerreiro que descera dos céus para expulsá-los de França.
As tropas francesas, como as inglesas, eram compostas de toda sorte de patifes que não tinham ilusões românticas sobre a glória da guerra. Encaravam-na como uma profissão agradável e lucrativa, idêntica à pirataria ou aos assaltos de estrada. Francamente grosseiros em suas atitudes para com a profissão a que se entregavam, não admitiam a possibilidade de ser um soldado um homem decente e respeitável. Certa ocasião, La Hire, o capitão do exército de Joana, em Orléans, observou que até o próprio Deus, uma vez alistado em seu exército, tornar-se-ia salteador. Mas, a presença de Joana, com seus santos invisíveis, transformou as tropas francesas em salteadores consagrados. Todo soldado do exército francês acreditava piamente que batalhões de anjos combatiam a seu lado. E essa crença era compartilhada pelos ingleses. Alguns destes pensavam que os chamados “auxiliares celestes das tropas” eram demônios e não anjos. Mas de uma coisa estavam certos: combatiam contra poderes insuperáveis. Estavam aptos a competir com as forças da terra, mas contra os poderes do céu ou do inferno nem um inglês poderia.
Em suma, os ingleses foram expulsos de Orléans, não só pelo próprio medo do sobrenatural, como também pelos franceses, mais numerosos.
Depois de ter levantado o cerco de Orléans, Joana D’Arc conseguiu aumentar o efetivo de seu exército para 12.000 homens. Agora, por toda a parte olhavam-na como uma santa, ou como uma feiticeira, de acordo com a causa que cada qual abraçava: inglesa ou francesa. Encontrou-se com o delfim Carlos em Tours, e juntos avançaram, ao longo das margens do Loire, em direção à cidade de Reims. O exército inglês, impelido pelo terror, fugia. Aqui e ali, em Jargeau, Patay, Troyes, fizeram tentativas de resistência, mas os inspirados soldados de Joana D’Arc varreram-nos do caminho por onde passavam. Ela tentava evitar combates sempre que era possível. Queria que os ingleses saíssem da França, mas não os odiava. Não gostava de ver sangue. Lamentava o sofrimento de seus inimigos tanto como o de seus próprios homens. Um soldado ferido, fosse inglês ou francês, significava para ela um irmão cristão em miséria. Após a Batalha de Patay, ela chorou ao ver tantos soldados inimigos mortos no campo. Um de seus companheiros ferira mortalmente um prisioneiro inglês. Apeando-se do cavalo, ajoelhou-se ao lado do inglês agonizante, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e murmurou palavras doces enquanto ele expirava.
Mas os seus devotos salteadores, prontos para lutar e morrer por ela, eram incapazes de compreender o seu espírito de misericórdia. Apesar dos protestos, eles mataram a maioria dos prisioneiros das batalhas com os ingleses. O vitorioso exército francês chegou a Reims em 15 de julho de 1429.
Dois dias após, Carlos VII era coroado pelo arcebispo na famosa catedral. Muitos de seus cortesãos e cortesãs estavam presentes à coroação. Sua rainha, Maria d’Anjou, porém, tinha ficado em Chinon, “a fim de poupar a despesa da viagem”. Carlos VII não foi somente um rei sem dinheiro, mas também o menos generoso dos homens.
A tarefa preliminar de Joana D’Arc estava agora finda. Levantara o cerco de Orléans e promovera a coroação do Rei Carlos. Competia-lhe agora acabar de expulsar os ingleses do território nacional. Mas a auréola de sua popularidade começava a se desvanecer. Seus soldados, acostumados agora à sua comunicação diária com os anjos, não se deixavam mais arrebatar por ela. O esplendor de suas visões celestiais decaía à luz do dia. Quanto mais tempo ela se demorasse com os homens, tanto mais estes se impacientavam com ela, pois que ela lhes proibia a pilhagem, privava-os dos prazeres da profanação e condenava-os a uma vida de castidade a ‘que não estavam habituados. Ela procurava, diziam, fazer deles simples mulheres. Muitos de seus soldados se revoltaram e alguns desertaram.
Por outro lado, seus inimigos faziam planos para a sua destruição. Havia quatro grupos distintos que desejavam vê-la eliminada: os ingleses, os franceses aliados a esses, os cortesãos de Carlos, invejosos de sua influência junto ao rei, e os arcebispos e bispos, enciumados de sua familiaridade com os anjos.
Os ingleses, após a Batalha de Azincourt (1415) possuíam a maioria das províncias ao norte do Loire. Estavam ansiosos por estender seu domínio sobre todo o reino de França. Mas Joana D’Arc, a diabólica feiticeira inspirada de Domrémy, não só impedia o progresso inglês, mas ameaçava tirar-lhes o território que já tinham conquistado à custa de tanto esforço e tanto sangue. Estavam, pois, dispostos a impedir sua atividade a qualquer preço.
Aliados a eles, estavam alguns nobres franceses que tinham esperanças de alcançar benefícios próprios com a vitória dos ingleses sobre o Rei Carlos. O principal dentre eles era o Duque de Borgonha, Filipe, o Bom, cujo real nome deveria ser Filipe, o Pouco Bom. (Ele era pai de 18 filhos ilegítimos.) A coroação de Carlos VII foi um golpe terrível pára Filipe. Mais rico, mais capaz e bem mais poderoso que o delfim, sua esperança era tornar-se o senhor de toda a França sob a proteção da Inglaterra. Mas o advento de Joana D’Arc cortou seus planos pela raiz. Junto com os ingleses estava resolvido a puni-la pela sua intromissão.
Mais perigosos ainda do que esses inimigos declarados, eram os que fingiam ser seus amigos. Os insinceros cortesãos de Carlos VII, e particularmente seu Cons. Jorge de La Trémouille, temiam a franqueza e a incorruptível honestidade de Joana D’Arc. La Trémouille era vigoroso, dominador e traiçoeiro. Repudiou sua primeira mulher e casou-se com outra cujo marido matara. Insinuara-se nas boas graças do rei, por meio de mentiras e lisonjas. Era um hipócrita, dos piores. Pronto a trair o seu rei — pois estava secretamente aliado aos ingleses — fez tudo o que pôde para se ver livre da menina camponesa, que percebia claramente suas intenções, e a qualquer momento poderia chamar a atenção do rei sobre a sua traição. Fiel a seu caráter, portanto, tratava Joana com todas as demonstrações de respeito e secretamente tramava sua queda.
Mas de todos os seus inimigos os mais temíveis eram os padres. O arcebispo de Reims, o bispo de Beauvais e a totalidade da faculdade clerical da Universidade de Paris estavam decididos a conseguir a sua morte. Ela ousara comunicar os planos de Deus a seus compatriotas sem haver recebido a permissão da Igreja. Presumindo falar diretamente com os anjos, ela violara a santidade do clero, pois somente ao clero era permitido conversar com os poderes do céu. A Igreja afirmava ser a única intérprete entre Deus e o homem. As revelações de Joana D’Arc, eles pensavam (e se revelavam sinceros em seus pensamentos) , só poderiam ter vindo do diabo, desde que não vinham através da Igreja. Ela era uma herege, uma traidora do céu e uma fonte de perigo para o clero. Por isso, deveria ser morta.
A traição dos inimigos de Joana provou ser mais poderosa do que o patrocínio de seus anjos. Na Batalha de Compiègne caiu em uma cilada armada pelas manobras de alguns de seus compatriotas. Os franceses que a capturaram, venderam-na por 10.000 libras de ouro. Os ingleses, por sua vez, para terem certeza absoluta de sua morte, entregaram-na às mãos da Inquisição. Foi assim que, embora prisioneira de guerra, Joana D’Arc foi julgada e condenada como. herege.
O homem que presidiu seu julgamento foi Pedro Caucron, bispo de Beauvais, Era um cristão devoto. A Universidade de Paris fê-lo comendador publicamente, pela sua “coragem e perseverança nos trabalhos, nas vigílias, nos sofrimentos e tormentos por amor à Igreja”. A última frase de sua comenda deveria ser emendada assim: “e os tormentos que ele infligiu a outros por amor à Igreja”. Era-lhe agradável o cheiro que exalava da carne queimada dos hereges. Foi ele quem no Concílio de Constança, o mesmo Concílio, lembremo-nos, que determinou a morte de João Huss, defendeu a tese de que era permitido em certas ocasiões matar sem as formalidades da justiça.
Quando os ingleses entregaram Joana D’Arc às mãos de Pedro Caucron, para ser julgada, eles realmente assinaram sua sentença de morte. Não tinham intenção alguma de deixá-la viva. Combinaram que, caso ela não fosse condenada como herege pela Igreja, deveria ser devolvida aos ingleses. Era como na aposta: “cara, você perde; coroa, eu ganho”. Ao iniciar o julgamento, dois dos padres presentes, na qualidade de juízes denunciaram todo o processo como ilegal. Um destes padres foi removido prontamente e encarcerado por Cauchon. O outro teve o bom senso de escapar antes que os seus superiores tivessem a oportunidade de puni-la.
O julgamento durou 4 meses. O número de juízes cresceu de 42, no começo, a 63, na parte final. Perseguiram-na como uma matilha de cães. As acusações que faziam contra ela eram, na maioria, absurdas. A principal acusação era o seu pecado de se ter comunicado com o céu, sem o auxílio da Igreja. Em outras palavras, era criminosa porque tinha se submetido à vontade de Deus e não à dos padres. Argumentavam que os poderes sobrenaturais que apareceram a Joana eram demônios em vez de santos. Visto serem os juízes 63 e Joana uma só, aqueles já tinham a questão ganha. Mesmo quando soube que sua sentença estava lavrada, Joana era ainda a única no julgamento que demonstrava uma firme presença de espírito. Numa das sessões, quando todo o bando negro de corvos eclesiásticos começou a falar contra ela, de uma só vez, Joana replicou docemente: “Por favor, bons pais, não falem todos simultaneamente. Estão sujeitos a se confundirem a si próprios.”
A comédia terminou a 30 de maio de 1431. Joana D’Arc foi condenada a ser queimada viva, e Pedro Cauchon foi condecorado mais uma vez, pela Universidade de Paris, pela “grande solenidade e o justo e santo espírito” com que presidira ô julgamento.
Tendo-a condenado à morte, os representantes da Igreja entregaram-na ao braço secular. A Igreja, para traduzir uma de suas frases favoritas em latim, “tinha horror ao derramamento de sangue”. Ela nunca executava diretamente as mortes que desejava. Sentenciava meramente as pessoas à morte, e então orava por suas almas, enquanto o Estado se incumbia de sua execução.
Pouco tempo antes de queimarem Joana D’Arc, o Rev. Prof. Nicolau Midi, da Universidade de Paris, pregou um sermão em sua homenagem. “Quando um membro da Igreja está doente”, começou ele, “a Igreja toda está doente.” E depois tendo-lhe provado que devia morrer “pelo bem da Igreja”, concluiu com as palavras, “Joana, ide em paz; a Igreja não mais pode defender-vos.”
Esta era a fórmula pela qual os padres se absolviam a si próprios de todas as máculas do assassínio de suas vítimas.
Mas Joana D’Arc sabia da verdade. Apontando para Pedro Cauchon, exclamou: “Bispo, eu morro por sua causa!”
O epílogo dessa trágica farsa foi decretado cinco séculos e meio mais tarde, quando o Papa, chegando à conclusão de que os mensageiros de Joana D’Arc eram anjos e não demônios, revogou a sentença de sua morte e transformou-a numa santa.
(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")