O primeiro a reagir aos problemas postos por Hume foi Kant, ao declarar que, graças ao filósofo inglês, pôde “despertar do sono dogmático”. O que é o sono dogmático? É tomar como ponto de partida da metafísica a idéia de que existe uma realidade em si (Deus, alma, mundo, infinito, finito, matéria, forma, substância, causalidade), que pode ser conhecida por nossa razão ou, o que dá no mesmo, tomar como ponto de partida da metafísica a afirmação de que as idéias produzidas por nossa razão correspondem exatamente a uma realidade externa, que existe em si e por si mesma.
Dogmático é aquele que aceita, sem exame e sem crítica, afirmações sobre as coisas e sobre as idéias. Hume despertou a metafísica do sono dogmático, porque a forçou a indagar sobre sua própria validade e sua pretensão ao conhecimento verdadeiro.
O que é despertar do sono dogmático? É indagar, antes de tudo, se a metafísica é possível e, se for, em que condições é possível. Despertar do dogmatismo é elaborar uma crítica da razão teórica, isto é, um estudo sobre a estrutura e o poder da razão para determinar o que ela pode e o que ela não pode conhecer
verdadeiramente.
Quando examinamos os conceitos de razão e verdade, vimos que Kant realizou uma “revolução copernicana” em filosofia, isto é, exigiu que, antes de qualquer afirmação sobre as idéias, houvesse o estudo da própria capacidade de conhecer, isto é, da razão. Vimos também que ele distinguira duas grandes modalidades de conhecimento: os conhecimentos empíricos, isto é, baseados nos dados da experiência psicológica de cada um de nós, e os conhecimentos apriorísticos, isto é, baseados exclusivamente na estrutura interna da própria razão, independentemente da experiência individual de cada um. Vimos, além disso, que ele distinguira as duas maneiras pelas quais esses dois tipos de conhecimentos se exprimem: os juízos sintéticos e os juízos analíticos. Finalmente, vimos que a questão do conhecimento estava resumida numa pergunta fundamental: São possíveis juízos sintéticos apriorísticos?
Recordemos a distinção entre os tipos de juízos. O juízo analítico é aquele em que o predicado não é senão a explicitação do conteúdo do sujeito. Por exemplo: “O triângulo é uma figura de três lados”. O juízo sintético é aquele no qual o predicado acrescenta novos dados sobre o sujeito. Por exemplo: “Sócrates é filósofo”.
Um juízo, para ter valor científico e filosófico ou valor teórico, deve preencher duas condições:
1. deve ser universal e necessário;
2. deve ser verdadeiro, isto é, corresponder à realidade que enuncia.
Os juízos analíticos, diz Kant, preenchem as duas condições, mas não os juízos sintéticos. Por quê? Porque um juízo sintético se baseia nos dados da experiência psicológica individual e, como bem mostrou Hume, tal experiência nos dá sensações e impressões que associamos em idéias, mas estas não são universais e necessárias, nem correspondem à realidade.
Ora, um juízo analítico não nos traz conhecimentos, pois simplesmente repete, no predicado, o conteúdo do sujeito. Somente juízos sintéticos são fonte de conhecimento. Portanto, se quisermos realizar metafísica e ciência, temos, primeiro, que provar que são possíveis juízos sintéticos universais, necessários e verdadeiros e, portanto, demonstrar que tais juízos não podem ser empíricos. Dizer que um juízo sintético é universal, necessário e verdadeiro e dizer que não pode ser empírico significa dizer que o juízo sintético filosófico e científico tem que ser um juízo sintético apriorístico ou a priori, isto é, tem que depender de alguma coisa que não seja a experiência.
A pergunta: “É possível a metafísica?” só poderá ser respondida se, primeiro, for provado que há ou que não pode haver juízos sintéticos a priori sobre as realidades metafísicas, isto é, Deus, alma, mundo, substância, matéria, forma, infinito, finito, causalidade, etc.
Vimos que Kant demonstrou a existência e validade dos juízos sintéticos a priori nas ciências, demonstrando que o conhecimento da realidade nada mais é do que a maneira como a razão, através de sua estrutura universal, organiza de modo universal e necessário os dados da experiência. Em outras palavras, vimos que, graças às formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e dos conceitos a priori do entendimento (as categorias de substância, causalidade, relação, quantidade, qualidade, etc.), possuímos uma capacidade de conhecimento inata, universal e necessária que não depende da experiência, mas se realiza por ocasião da experiência sobre os objetos que esta nos oferece.
O que é exatamente um juízo?
Um juízo é uma afirmação ou uma negação referente a propriedades de um sujeito, isto é, a maneira como o conhecimento afirma ou nega o que uma coisa é ou não é. Como a realidade ou o objeto é aquilo que pode ser conhecido através das formas a priori da sensibilidade e dos conceitos a priori do entendimento, um juízo é a afirmação ou a negação da realidade de um objeto pela afirmação ou negação de suas propriedades.
O que é conhecer?
Conhecer é formular juízos que nos apresentem todas as propriedades positivas de um objeto e excluam todas as propriedades negativas que o objeto não pode possuir. Por exemplo, quando digo: “O número 4 é um inteiro par ”, esse juízo afirma que um certo objeto – 4 – é alguma coisa – é um número -, que possui determinadas propriedades positivas – inteiro, par – e, por conseguinte, dele estão excluídas propriedades negativas, diferentes das que possui – fracionário e ímpar.
Quando digo: “Isto é uma mesa, é de madeira, possui quatro pés, está junto à janela, é usada para escrever”, este juízo afirma que um certo objeto – isto – é alguma coisa –mesa -, que possui certas qualidades – madeira, quatro pés, serve para escrever, está junto à janela – e, por conseguinte, dele estão excluídas outras coisas – não é uma cadeira, não é um livro – e a ele são negadas certas propriedades – não é de vidro, não está junto à porta, não serve para deitar, etc.
Um juízo, portanto, nos dá a conhecer alguma coisa, desde que esta possa ser apreendida sob as formas do espaço e do tempo e sob os conceitos do entendimento. Uma coisa passa a existir quando se torna objeto de um juízo. Isso não significa que o juízo cria a própria coisa, mas sim que a faz existir para nós. O juízo põe a realidade de alguma coisa ao colocá-la como sujeito de uma proposição, isto é, ao colocá-la como objeto de um conhecimento. É, portanto, o juízo que põe a qualidade, a quantidade, a causalidade, a substância, a matéria, a forma, a essência das coisas, na medida em que estas existem apenas enquanto são objetos de conhecimento postos pelas formas do espaço, do tempo e pelos conceitos do entendimento.
Em outras palavras, uma coisa existe quando pode ser posta pelo sujeito do conhecimento, entendido não como um sujeito individual e psicológico (João, Pedro, Maria, Ana), mas como o sujeito universal ou estrutura a priori universal da razão humana, aquilo que Kant denomina de Sujeito Transcendental.
Quando o juízo for sintético e a priori, o conhecimento obtido é universal, necessário e verdadeiro.
No entanto, a demonstração de que, graças às formas a priori da sensibilidade e graças aos conceitos a priori do entendimento, os juízos sintéticos a priori são possíveis, é uma demonstração que não ajuda em nada a pergunta sobre a possibilidade da metafísica. Por quê?
Kant distinguiu duas modalidades de realidade. A realidade que se oferece a nós na experiência e a realidade que não se oferece à experiência. A primeira foi chamada por ele de fenômeno, isto é, aquilo que se apresenta ao sujeito do conhecimento na experiência, é estruturado pelo sujeito com as formas do espaço e do tempo e com os conceitos do entendimento, é sujeito de um juízo e objeto de um conhecimento. A segunda foi chamada por ele de nôumeno, isto é, aquilo que não é dado à sensibilidade nem ao entendimento, mas é afirmado pela razão sem base na experiência e no entendimento.
O fenômeno é a coisa para nós ou o objeto do conhecimento propriamente dito, é o objeto enquanto sujeito do juízo. O nôumeno é a coisa em si ou o objeto da metafísica, isto é, o que é dado para um pensamento puro, sem relação com a experiência. Ora, só há conhecimento universal e necessário daquilo que é organizado pelo sujeito do conhecimento nas formas do espaço e do tempo e de acordo com os conceitos do entendimento. Se o nôumeno é aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade, nem ao entendimento, mas é afirmado pelo pensamento puro, não pode ser conhecido. E se o nôumeno é o objeto da metafísica, esta não é um conhecimento possível.
Tomemos um exemplo que nos ajude a compreender a argumentação kantiana.
Quando a metafísica se refere a Deus, ela o define como imaterial, infinito, eterno, incausado, princípio e fundamento das essências e existências de todos os seres.
Vejamos cada uma das qualidades atribuídas ao sujeito “Deus” ou à idéia de Deus. Imaterial: portanto, não espacial; infinito: portanto, não espacial; eterno: portanto, não temporal; incausado: portanto, sem causa; princípio e fundamento de tudo: portanto, acima e fora de toda a realidade conhecida ou incondicionado.
A idéia metafísica de Deus é a idéia de um ser que não pode nos aparecer sob a forma do espaço e tempo; de um ser ao qual a categoria de causalidade não se aplica; de um ser que, nunca tendo sido dado a nós, é posto, entretanto, como fundamento e princípio de toda a realidade e de toda a verdade. Assim, a idéia metafísica de Deus escapa de todas as condições de possibilidade do conhecimento humano e, portanto, a metafísica usa ilegitimamente essa idéia para afirmar que Deus existe e para dizer o que ele é.
Até agora, diz Kant, a metafísica tem sido uma insensatez dogmática. Tem sido a pretensão de conhecer aqueles seres que, justamente, escapam de toda possibilidade humana de conhecimento, pois são seres aos quais não se aplicam as condições universais e necessárias dos juízos, isto é, espaço, tempo, causalidade, qualidade, quantidade, substancialidade, etc. Essa metafísica não é possível.
Mas isso não significa que toda metafísica seja impossível.
Qual é a metafísica possível? É aquela que tem como objeto a investigação dos conceitos usados pelas ciências – espaço, tempo, quantidade, qualidade, causalidade, substancialidade, universalidade, necessidade, etc. -, isto é, que tem como objeto o estudo das condições de possibilidade de todo conhecimento humano e de toda a experiência humana possíveis. A metafísica estuda, portanto, as condições universais e necessárias da objetividade em geral e não o “Ser enquanto Ser”, nem Deus, alma e mundo, nem substância infinita, pensante e extensa. Estuda as maneiras pelas quais o sujeito do conhecimento, ou a razão teórica, põe a realidade, isto é, estabelece os objetos do conhecimento e da experiência. A metafísica é o conhecimento do conhecimento humano e da experiência humana, ou, em outras palavras, do modo como os seres humanos, enquanto expressões do Sujeito Transcendental, definem e estabelecem realidades.
Há, além desse, um outro objeto para a metafísica. Não se trata, porém, de um objeto teórico e sim de um objeto prático, qual seja, a ação humana enquanto ação moral, ou o que Kant chama de ação livre por dever. Por que a moral, ou a ética, se torna objeto da metafísica? Por causa da liberdade.
A razão teórica mostra que todos os seres, incluindo os homens, são seres naturais. Isso significa que são seres submetidos a relações necessárias de causa e efeito. A Natureza é o reino das leis naturais de causalidade. Nela, tudo acontece de modo necessário ou causal, não havendo lugar para escolhas livres. No entanto, os seres humanos são capazes de agir por escolha livre, por determinação racional de sua vontade e são capazes de agir em nome de fins ou finalidades humanas, e não apenas condicionados por causas naturais necessárias.
A ação livre ou por escolha voluntária ou racional é uma ação por finalidade e não por causalidade. Nesse sentido, a ação moral mostra que, além do reino causal da Natureza, existe o reino ético da liberdade e da finalidade. Cabe à metafísica o estudo dessa outra modalidade de realidade, que não é natural nem teórica, mas prática. Assim, ao lado do conhecimento da razão teórica, a metafísica tem como objeto o estudo da razão prática ou da ética.
Como é possível a liberdade? Como é possível a ação livre por finalidade? Quais são as finalidades da vida ética? O que é o dever? O que é e como é possível agir por dever? O que é a virtude? Eis alguns dos temas da metafísica como estudo da razão prática.
(Marilena Chauí - "Convite à filosofia")
É possível que desejo e vontade não sejam a mesma coisa?
O professor Clóvis de Barros Filho explica o pensamento Kantiano, tão presente em nossas vidas, mesmo que não percebamos.