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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
No filme de Robert Bresson, O diabo, provavelmente (1977), os heróis de uma era em que não havia nem sinal da tecnologia de PCs, celulares, iPods e outros meios maravilhosos de socializar/separar, contatar/isolar, conectar/desconectar, são jovens confusos que buscam desesperadamente encontrar um objetivo para suas vidas, para o lugar que lhes foi assinalado e para o significado desse lugar. Eles não recebiam ajuda alguma dos mais velhos. Na verdade, não se vê adulto algum durante os 95 minutos do filme, até seu trágico desfecho. Apenas uma vez, ao longo de toda a projeção, os jovens, completamente absortos no aflitivo e vão esforço de se comunicar uns com os outros, registram a existência de adultos: quando, extenuados de tantas proezas, a rapaziada cheia de fome se reúne ao redor de uma geladeira abarrotada de comida providenciada para tal eventualidade pelos pais, até então personagens ignorados e invisíveis.
As três décadas posteriores ao lançamento do filme serviram para demonstrar e confirmar o caráter profético da obra de Bresson. O cineasta percebeu as verdadeiras consequências da “grande transformação” que ele e seus contemporâneos testemunhavam, embora poucos tivessem perspicácia suficiente para notá-las, sabedoria para examiná-las a fundo e paixão necessária para registrá-las no cinema: a passagem de uma sociedade de produtores – trabalhadores e soldados – para uma sociedade de consumidores – completamente individualizados e, tal como decretado por sua localização histórica, entusiastas de ideias, perspectivas e tarefas de curto prazo.
Na sociedade “sólida moderna”, de produtores e soldados, o papel dos pais consistia em incutir nos filhos, a todo custo, a autodisciplina permanente necessária para suportar a monótona rotina de uma fábrica ou de uma caserna; ao mesmo tempo, os pais tinham a função de representar para os jovens modelos exemplares desse comportamento “regulado por normas”. Michel Foucault analisou a sexualidade infantil e o “medo da masturbação” nos séculos XIX e XX como um exemplo do arsenal de armas disponíveis para a legitimação e o fomento do controle rígido e da vigilância em tempo integral que, naquele tempo, esperava-se dos pais.
Mais que as velhas formas de interdição, essa forma de poder [do papel parental] exige, para se exercer, presenças constantes, atentas e também curiosas; ela implica proximidade; procede por exames e observações insistentes; requer um intercâmbio de discursos por meio de perguntas que extorquem confissões e confidências que superam a Inquisição. Ela envolve uma
aproximação física e um jogo de sensações intensas. (História da sexualidade, v.1, A vontade de saber)
Foucault lembra que, na eterna campanha para fortalecer o papel parental e seu efeito disciplinador, o “vício da criança” era menos um inimigo que um suporte: “Em todo canto onde houvesse o risco de se manifestar, instalaram-se dispositivos de vigilância, construíram-se armadilhas para forçar confissões, impuseram-se discursos inesgotáveis e corretivos.” Os banheiros e os quartos de dormir foram estigmatizados como locais de grande perigo, os terrenos mais férteis para o cultivo das inclinações sexuais mórbidas da criança – por isso mesmo, esses lugares impunham uma vigilância severa, íntima, incessante e, naturalmente, a presença e a intervenção invasiva e atenta dos pais.
Em nossa era de modernidade líquida, a masturbação foi absolvida de seus supostos pecados, e o medo da masturbação substituído pelo medo da agressão sexual ou do “abuso sexual”. A ameaça velada, causa do novo medo, não se localizou na sexualidade das crianças, mas na dos pais. Banheiros e quartos de dormir continuam a ser vistos como antros de vício repugnante, mas hoje os acusados da agressão são os pais (e os adultos em geral, todos suspeitos de serem potenciais molestadores de crianças). Quer de maneira aberta e manifesta, quer de modo latente ou tácito, o fim da guerra declarada aos novos e perseguidos vilões é um abrandamento do controle parental; a renúncia à presença ubíqua e invasiva nas vidas dos filhos; o estabelecimento e manutenção de uma distância entre o “velho” e o “novo”, tanto no âmbito da família quanto nos círculos dos amigos.
Quanto ao pânico atual, o último relatório do Institut National de la Démographie mostra que, entre 2000 e 2006, o número de mulheres e homens entrevistados que se recordavam de situações de abuso sexual quase triplicou (de 2,7% para 7,3% – 16% de mulheres e 5% e homens –, com uma tendência à aceleração) (“Les victimes de violences sexuelles en parlent de plus en plus”, Le Monde, 30 mai 2008). Os autores do relatório sublinham que “o aumento verificado não prova um crescimento da incidência da agressão, mas uma crescente inclinação a relatar casos de estupro em pesquisas científicas, o que reflete um rebaixamento do limite de tolerância à violência”. Mas eu não resisto a acrescentar que isso também é um reflexo, provavelmente mais forte ainda, das deficiências lógicas e dos problemas das supostas ou reais experiências de assédio e molestamento sexual na infância, e dos complexos de Édipo e de Electra.
Convém deixar claro que a questão não é quantos pais, com ou sem a cumplicidade de outros adultos, realmente tratam os filhos como objetos sexuais e até que ponto eles extrapolam seu poder para tirar proveito da fragilidade das crianças, assim como antigamente o problema não era quantas dessas crianças cediam aos impulsos masturbatórios. O que de fato importa, o que é grave e relevante, é que todos eles foram pública e ruidosamente advertidos de que estreitar a distância que são instruídos a manter entre si e outros adultos e seus filhos pode vir a ser (deve ser e será) interpretado como propício à liberação – aberta, sub-reptícia ou subconsciente – de impulsos pedófilos endêmicos.
A primeira vítima do medo da masturbação foi a autonomia do jovem. Desde a primeira infância, os futuros adultos tinham de ser protegidos contra os próprios instintos e impulsos mórbidos e potencialmente desastrosos (caso não controlados). As principais baixas do pânico do abuso sexual são, ao contrário, os vínculos e a intimidade entre as gerações. Se o medo da masturbação destacou o adulto como melhor amigo, anjo da guarda, guia confiável e sobretudo como guardião dos jovens, o medo do abuso sexual definiu os adultos como “suspeitos habituais”, culpados a priori de crimes que ele ou ela devem ter tido a intenção de cometer, ou pelo menos foram levados a praticar pelo instinto, com ou sem intenção maldosa.
O primeiro pânico teve como consequência um grande fortalecimento do poder parental; mas, por outro lado, induziu os adultos a reconhecerem sua responsabilidade com e para os jovens, a cumprirem com zelo os deveres correspondentes. O novo pânico do abuso sexual, para variar, libera os adultos de seus deveres – ao apresentá-los a priori como agentes responsáveis por um real ou potencial abuso de poder.
Esse novo pânico acrescenta um lustro legitimador a um já adiantado processo de comercialização da relação entre pais e filhos – que por força situa essa relação como se fosse mediada pelo mercado de consumo. Os mercados se propõem a reprimir qualquer remanescente de escrúpulo moral que resista após o recuo dos pais em relação à sua presença atenta e cuidadosa na família; fazem isso pela transformação de cada comemoração familiar, de cada feriado religioso e nacional em ocasião para distribuir presentes caros e luxuosos, com isso ajudando e incentivando, dia após dia, a demonstração de superioridade dos filhos, por meio da violenta competição de sinais adquiridos no comércio da distinção social.
Recorrer à ajuda de uma sedutora indústria de bens de consumo pode ser, no entanto, uma forma de “comprar uma solução para a preocupação” que acaba mais criando do que resolvendo os problemas. Comentando a “desqualificação” dos adultos em sua tarefa de exercer uma autoridade adulta, o professor Frank Furedi indaga: “Se não se confia nos adultos para acompanhar seus filhos de perto, não surpreende que alguns cheguem à conclusão de que, na realidade, não se espera que eles assumam a responsabilidade pelo bem-estar das crianças em sua comunidade?” (“Thou shalt not hug”).“Thou shalt not hug”.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Em seu primeiro livro, As estruturas elementares do parentesco,1 publicado em 1949, o grande antropólogo francês Claude Lévi-Strauss definiu como ato fundador da cultura a proibição do incesto (mais exatamente a invenção da noção de “incesto”, isto é, a ideia de uma relação sexual humana que pode ser praticada, mas não deve, que é factível e plausível, mas proibida para os seres humanos).
A cultura, o modo de ser especifica e exclusivamente humano em que o “deveria” é diferente do “é”, e com frequência se opõe a ele, começou com a imposição de um limite onde antes não havia limite algum. Ao vetar a determinadas mulheres o acesso à relação sexual (cada uma delas, porém, como todas as demais de seu gênero, é perfeitamente apta do ponto de vista biológico, isto é, pela natureza, para o papel de parceira na cópula), dividiu-as, “com a cultura”, entre aquelas com as quais era proibido copular e aquelas com as quais era permitido fazê-lo. Ou seja, em cima de diferenças e semelhanças dadas pela natureza, impuseram-se divisões e distinções artificiais imaginadas e estabelecidas pelos seres humanos; determinados traços naturais foram impregnados de significados adicionais por meio da associação daqueles traços a normas peculiares de percepção, avaliação e escolha de padrões comportamentais.
Desde seu nascimento e através de toda a sua história, a cultura vem seguindo o mesmo padrão: usou, descobriu ou construiu, de modo proposital, significantes para dividir, distinguir, diferençar, classificar e separar objetos de percepção e avaliação, bem como modalidades preferidas, recomendadas ou impostas de responder a esses objetos. Desde o princípio, e cada vez mais, a cultura tem consistido em diferençar, “estruturar” e “submeter a regras ou normas” o que de outra forma seria uniforme, aleatório e volátil. Em outras palavras, a cultura se especializa na administração das escolhas humanas.
Limites são impostos para criar diferenças: diferenças entre um lugar e outro (por exemplo, a casa e o “fora”), entre uma extensão de tempo e o resto do tempo (por exemplo, infância e idade adulta), entre uma categoria de criaturas humanas e o resto da humanidade (por exemplo, as categorias de “nós” e “eles”). Pela criação de “diferenças que fazem diferença”, diferenças que reclamam a aplicação de diversos padrões de comportamento, torna-se possível manipular probabilidades: deste ou daquele lado do limite ou fronteira, determinados eventos se tornam prováveis, enquanto outros são menos prováveis e inclusive impossíveis. A massa informe passa a ser “estruturada” – tende a ter uma estrutura. Assim, podemos saber agora onde estamos, o que esperar e o que fazer. Fronteiras proporcionam confiança . Elas nos permitem saber como, onde e quando agir. Capacitam-nos a atuar de modo confiante.
Para cumprir essa função, as fronteiras devem ser demarcadas. Há cercas ou sebes em torno de sua casa e da casa de outras pessoas que ao mesmo tempo criam e sinalizam a divisão entre o “dentro” e o “fora”. Nomes são apostos aos portões ou portas de entrada, dando sentido à oposição entre “os de dentro” e “os de fora”. A obediência às instruções explícitas ou implícitas contidas nesses sinais cria e recria, manifesta e “naturaliza” um “mundo ordenado”.
Ordem, como Mary Douglas explicou em seu memorável estudo Pureza e perigo (1966), significa: coisas certas nos lugares certos e em nenhum outro lugar. É o limite que determina quais coisas em quais lugares estão “certas” (isto é, têm o direito de estar) e quais coisas estão “fora do lugar” e onde. Coisas de banheiro devem ficar longe da cozinha, coisas do quarto de dormir longe da sala de jantar, coisas do lado de fora da casa não devem estar dentro de casa. Ovos fritos numa bandeja de café da manhã são desejáveis, mas nunca sobre o travesseiro. É bom ter sapatos sempre bem-lustrados e polidos, mas nunca sobre a mesa de jantar. Coisas que estão fora do lugar são sujas. Sendo sujeira, é preciso varrê-las, removê-las, destruí-las ou transferi-las para outro lugar que lhes seja “apropriado” – se é que existe um lugar apropriado, claro. Esse lugar nem sempre existe, como os refugiados sem pátria e os que vagueiam sem teto podem testemunhar. A eliminação ou remoção dos indesejáveis é o que denominamos de “limpeza”. Quando nos dedicamos a pôr travessas nas prateleiras ou em cima do bufê, a varrer o chão, a arrumar a mesa ou fazer a cama, estamos cuidando da preservação ou restauração da ordem.
Traçamos limites no espaço para criar e conservar uma ordem espacial: para reunir certas pessoas e coisas em determinados lugares e manter outras pessoas longe desses espaços. A presença de guardas à entrada de centros comerciais, restaurantes, prédios da administração pública, condomínios fechados, teatros ou estádios busca dar passagem a certas pessoas e impedir o acesso de outras. Eles conferem ingressos, passes, passaportes e outros documentos que autorizem a entrada dos portadores, ou examinam a aparência das pessoas em busca de sinais e dicas sobre suas intenções e qualificações, sobre a probabilidade de que, uma vez admitidos, satisfaçam às exigências e expectativas a respeito da gente de boa-fé. Cada modelo de ordem espacial divide os seres humanos em “desejáveis” e “indesejáveis”, sob a designação codificada de “legítimos” (permitidos) e “ilegítimos” (não permitidos).
Assim, a principal função dos limites ou fronteiras é dividir. No entanto, a despeito dessa tarefa primordial e do seu propósito explícito, limites não são puras e simples barreiras – elas próprias e aqueles que as impõem não podem deixar de fazer das fronteiras interfaces que unem, conectam e confrontam os lugares que separam. Dessa forma, os limites estão subordinados a pressões opostas e contraditórias, o que os transforma em lugares de tensão e em objetos potenciais de disputa, antagonismo, permanente fervilhar de conflitos ou conflagração de hostilidades.
Raramente os muros são desprovidos de aberturas, portões ou portas. A princípio, os muros são transponíveis, embora os guardas colocados de cada lado tendam a ter objetivos contrários, cada qual tentando tornar assimétrica a osmose, a permeabilidade e a penetrabilidade do limite ou fronteira. A assimetria é completa ou quase completa no caso de penitenciárias, campos de concentração e guetos ou “áreas guetizadas” (cujos exemplos correntes mais espetaculares são Gaza e a Cisjordânia); aí, um só grupo de guardas armados controla a passagem nas duas direções. Mas as notórias “zonas perigosas” de certas cidades tendem a aproximar-se do padrão extremo, porque justapõem a atitude de “não podemos entrar” dos que estão de fora à situação de “não podemos sair” dos que estão dentro.
Fora da atenção oficial e da intervenção governamental explícita, numa zona penumbrosa, hoje proliferam fronteiras não demarcadas de base popular. São efeitos secundários da natureza multicultural (decorrente da diáspora) da convivência humana. Fredrik Barth, eminente antropólogo norueguês, observou que, contrariando a usual explicação ad hoc de que as fronteiras se construíram e fortaleceram por causa das grandes e potencialmente perigosas diferenças entre populações vizinhas, a sequência verdadeira dos fatos tende a ser outra: características de povos vizinhos que em outras circunstâncias passariam despercebidas, porque são pequenas, insignificantes, inócuas e irrelevantes, ou puramente imaginárias e imputadas, são promovidas à categoria de “aspectos dramáticos” e adquirem relevância porque os limites já traçados clamam por uma justificativa ou um reforço emocional.
Gostaria de acrescentar, no entanto, que as fronteiras “de base popular”, “imateriais” e notáveis apenas do ponto de vista mental, não sensorial, formadas de preceitos para que se evite compartilhar objetos, refeições e camas, em lugar de trincheiras, casamatas, torres de vigilância, arame farpado ou concreto, desempenham uma dupla função: além da função de separação, instigada pelo medo do desconhecido e pelo desejo de segurança, elas têm uma destinação ou um papel de “interface” de encontro, de intercâmbio e de fusão de horizontes cognitivos e práticas cotidianas.
É aí, nesse plano “microssocial” de encontros face a face, que diferentes tradições, crenças, motivações culturais e estilos de vida – que as fronteiras no plano “macrossocial”, supervisionadas e administradas por governos, lutam nem sempre com sucesso para manter separados – se confrontam a pequena distância e à queima-roupa; elas compartilham o dia a dia e inevitavelmente dialogam entre si, numa conversa pacífica e benevolente, ou tormentosa e antagônica, mas que leva sempre à familiarização, e não ao estranhamento, contribuindo então para o respeito, a solidariedade e o entendimento mútuo.
Em nosso mundo líquido moderno, a complexa missão de construir condições para se chegar a um modo agradável e reciprocamente benéfico de coexistência de formas de vida diferentes (e determinadas a seguir diferentes) tem sido despejada em pequenas áreas localizadas (sobretudo urbanas), como se dá com muitos outros problemas gerados no plano mundial; isso transforma essas áreas em laboratórios (com ou sem o consentimento das localidades) para a descoberta ou invenção de meios e modos de convivência humana num planeta globalizado; ou para a realização de experiências, testes práticos e aprendizados.
Fronteiras (materiais ou mentais, feitas de tijolo e cimento ou simbólicas) intercomunitárias (interdiaspóricas) se tornam às vezes campos de batalha onde se despejam receios e frustrações comuns, de várias origens; mas também, de forma bem menos espetacular e muito mais consistente e original, constituem oficinas de criação para a arte da convivência; canteiros onde as sementes de formas futuras de humanidade (consciente ou inconscientemente) são cultivadas.
Na história nada é predeterminado; a história é um traço deixado no tempo por escolhas humanas múltiplas, dispersas e discrepantes, raramente coordenadas. Ainda é muito cedo para prever qual das duas funções interligadas das fronteiras prevalecerá. De uma coisa podemos estar certos, porém: nós e nossos filhos dormiremos nas camas que estamos construindo coletivamente para nós mesmos e para eles. Essas camas são feitas estabelecendo fronteiras e negociando normas de vida na zona fronteiriça. Quer saibamos disso ou não, de caso pensado ou por falta de opção, de propósito ou inadvertidamente. Quer a gente queira, quer não.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Aconteça o que acontecer na história das cidades, um aspecto permanece constante: elas são espaços onde os estrangeiros se hospedam e se movem em estreita proximidade entre si. A ubíqua presença de estrangeiros, sempre à vista e ao alcance de todos, introduz grande dose de incerteza na vida dos moradores das cidades, e sua presença é fonte de uma prolífica e incessante ansiedade, de uma agressividade em geral enrustida, que irrompe de tempos em tempos.
Os estrangeiros também propiciam uma válvula de escape, uma solução conveniente e cômoda para nossos temores inatos do desconhecido, do incerto, do imprevisível. Expulsando os estrangeiros de nossas casas e ruas, fazemos uma espécie de exorcismo dos fantasmas aterradores da insegurança que nasce da incerteza, ao menos por um instante: queimamos no fogo, pelo menos em efígie, o monstro fugidio que nos irrita e horroriza.
No entanto, esses exorcismos não deixam incólume nossa vida líquido-moderna, e com certeza não a reformam: ela continua a exalar insegurança, permanece obstinadamente incerta, errática e caprichosa. Todo alívio tende a ser passageiro, e mesmo as esperanças associadas às medidas mais duras contra os supostos transmissores de incertezas são frustradas assim que surgem.
Mas essa consideração não ajuda em nada a sorte dos estrangeiros. Eles são, por definição, um agente movido por intenções que no máximo podemos imaginar, mas nunca afirmar em definitivo. Em todas as equações que compomos quando deliberamos sobre o que fazer e como pôr em prática nossas decisões, o estrangeiro é sempre uma variável desconhecida. Um estrangeiro é, afinal, um “estranho”, um ser bizarro cujas intenções e reações podem ser completamente diferentes do comportamento das pessoas normais (comuns, familiares). E assim, mesmo quando eles não agem de modo agressivo ou explicitamente ofensivo, os estrangeiros (os estranhos) causam desconforto: sua simples presença torna exorbitante a já intimidadora tarefa de prever os efeitos dos nossos atos e nossas chances de sucesso. No entanto, dividir espaço com os estrangeiros, viver perto deles (em geral não convidados e não desejados), é uma situação difícil para os citadinos, situação da qual chega ser impossível escapar.
Dado que a proximidade com os estrangeiros é uma sina que os urbanos não podem negociar, deve-se pensar, tentar e testar um modus vivendi para tornar palatável a convivência e facilitar a vida. O modo como resolvemos essa necessidade é uma questão de escolha. Fazemos escolhas todos os dias: por obrigação ou omissão, de propósito ou por falta de opção; por uma decisão consciente ou por seguir cega e mecanicamente os costumes; por deliberação e demoradas discussões, ou apenas seguindo padrões confiáveis porque estão na moda. Desistir completamente da busca de um modo melhor de convivência com o estranho e o estrangeiro é uma das escolhas possíveis. A “mixofobia” [palavra derivado do grego mixis (mistura) e phobos (fobia, medo intenso). Refere-se ao medo incondicional da mistura e descreve a forma dominante do racismo associado ao nacionalismo] é uma delas.
A mixofobia manifesta-se no impulso de construir ilhas de similaridade e identidade em meio a um oceano de diversidade e diferença. As razões da mixofobia são banais, fáceis de entender, mas não necessariamente fáceis de esquecer. Como sugeriu Richard Sennet, “o sentimento de ‘nós’, que exprime um desejo de ser semelhante, é uma forma de os homens evitarem a necessidade de olhar fundo dentro de si mesmos”. A mixofobia contém uma promessa de conforto espiritual: a perspectiva do sentimento de grupo que torna redundante todo esforço de compreender, negociar e conciliar.
É inato ao processo de formar uma imagem coerente da comunidade o desejo de evitar a
participação concreta e real. A percepção da existência de laços comuns sem uma experiência
comum ocorre, em primeiro lugar, porque os homens temem a participação, temem os perigos e os desafios, temem a dor (The Uses of Disorder: Personal Identity and City Life)
O impulso em direção a uma “comunidade de similaridade” é um sinal de recuo não só da alteridade externa como também de um compromisso com a interação interna, cheia de vida, mas turbulenta, engajada, embora sem dúvida enfadonha.
Escolher a fuga pela mixofobia envolve uma consequência deletéria e insidiosa: quanto mais a estratégia se autoalimenta e autoperpetua, menos eficiente ela é. Quanto mais tempo as pessoas passam na companhia de “suas iguais” – interagindo de modo superficial e casual para evitar o risco da incompreensão e a necessidade ainda mais onerosa e incômoda de traduzir diferentes universos de significado –, é mais provável que “desaprendam” a arte de negociar significados comuns e modos de convivência satisfatórios para todos. Já que se esqueceram das habilidades necessárias para conviver com a diferença, ou por negligência nunca as aprenderam, elas veem a perspectiva de enfrentar face a face os estrangeiros ou estranhos com crescente apreensão.
Quanto mais alheios, desconhecidos e incompreensíveis são os estrangeiros, mais eles parecem assustadores, pois a comunicação recíproca que eventualmente poderia acomodar e assimilar sua “alteridade” com relação ao nosso mundo-da-vida se esvai e falha. A tendência a escolher um ambiente homogêneo, territorialmente isolado, pode ser incentivada pela mixofobia; e a prática de uma separação territorial é a fonte que alimenta e preserva esse medo.
Tudo começou nos Estados Unidos, mas escapou para a Europa e agora se espalhou pela maioria dos países europeus: a tendência dos moradores urbanos com melhores condições financeiras a pagar para fugir das ruas apinhadas das cidades, onde tudo pode acontecer e muito pouco se pode prever, instalando-se em “comunidades muradas”, conjuntos habitacionais cercados, com a entrada rigorosamente controlada, cheios de guardas, circuitos internos de TV e alarmes contra invasores. Os poucos felizardos que compram moradias nesses condomínios rigorosamente guardados pagam fortunas pelos “serviços de segurança”, isto é, para banir de qualquer mistura. Condomínios fechados são pequenas coleções de casulos privados suspensos num vácuo espacial.
No interior dos condomínios fechados as ruas estão quase sempre vazias. Assim, se alguém que não “pertence” ao lugar, se um estranho for visto na calçada, isso logo será detectado como evento fora do normal antes que ocorra um trote ou um dano. Na verdade, qualquer um que seja visto passando perto de sua janela ou de sua porta pode cair na categoria de estranho, essa gente assustadora, cujas intenções ou cujos próximos passos ninguém sabe prever ao certo. Qualquer um que você desconheça pode ser um ladrão ou um molestador, um intruso cheio de más intenções.
Afinal, vivemos na época dos telefones celulares (para não falar no MySpace, no Facebook e no Twitter): com os amigos a gente troca mensagens eletrônicas em vez de visitas, todas ou quase todas as pessoas que conhecemos podem ser contatadas “on-line” e são capazes de nos informar previamente se estão pensando em nos visitar; dessa forma, se alguém bater na porta de sua casa ou tocar a campainha sem ser anunciado, este é um evento fora do normal, um sinal de perigo em potencial. Dentro do “condomínio fechado”, as ruas são mantidas vazias para que um estranho, ou alguém que se comporte como um estranho, nem sequer se arrisque a entrar.
O efeito secundário ou o corolário de esvaziar as ruas é que a expressão “condomínio fechado” se converte, para todos os fins práticos, num nome equivocado. Uma pesquisa publicada em 2003 pela Universidade de Glasgow afirma que “não há um desejo evidente de fazer contato com ‘a comunidade’ na área cercada e murada. O sentido de ‘comunidade’ é mais baixo nas áreas cercadas”. Por mais que os moradores (e seus agentes imobiliários) justifiquem suas escolhas, eles não pagam alugueis exorbitantes ou preços de compra exagerados para fundar ou viver numa “comunidade” – essa “bisbilhotice coletiva”, notoriamente intrusiva e obstrutiva que só abre os braços para nós a fim de nos manter pressionados como se fosse um fórceps de aço.
Ainda que digam e às vezes pensem de outra maneira, as pessoas pagam toda aquela soma de dinheiro com o intuito de se libertarem de qualquer companhia, salvo a que escolherem na hora que quiserem. No fundo, pagam pelo privilégio de ser deixados em paz. Dentro dos muros e dos portões dos condomínios vivem “lobos solitários”: gente que só tolera o tanto de “comunidade” que querem em determinado momento, e não mais que esse período de tempo que desejam.
A grande maioria dos pesquisadores concorda que o principal motivo de as pessoas se trancarem dentro de muros, sob o controle dos circuitos internos de TV de um condomínio fechado, é, consciente ou inconscientemente, de modo tácito ou explícito, o desejo de evitar a miséria e a fome, o que se traduz em manter afastados os estrangeiros. Os estranhos são perigosos, são portadores e presságios de risco. Pelo menos é nisso que as pessoas creem. E o que mais desejam é se sentirem a salvo do perigo. Mais exatamente, se sentirem a salvo do intimidador, angustiante, paralisante medo da insegurança. Sua esperança é que os muros as protejam desse medo.
O problema é que há mais de um motivo para se sentir inseguro. Verossímeis ou fantasiosos, os rumores sobre o aumento da criminalidade, de multidões de ladrões ou criminosos sexuais à espreita de uma oportunidade para atacar são apenas um deles. Afinal, nos sentimos inseguros porque nossos empregos e nossos salários, nossa posição e dignidade social estão sob risco. Não temos garantias contra a ameaça de demissão, de exclusão e despejo, de perder a posição que amamos e cujo direito acreditávamos ter conquistado para sempre.
Nem as parcerias que amamos são garantidas e à toda prova: sentimos tremores subterrâneos e pressentimos terremotos. Nossa vizinhança conhecida e acolhedora pode estar ameaçada de demolição para dar lugar a um novo empreendimento imobiliário. É tolice esperar que todas essas ansiedades, bem ou mal-fundamentadas, possam ser aplacadas e adormecidas por nos cercamos de muros, guardas armados e câmeras de TV.
Mas o que dizer da razão principal e ostensiva para escolhermos um condomínio fechado – o medo do ataque físico, da violência, do roubo, do furto de carros, de mendigos importunos? Será que ao menos vamos pôr fim a esse tipo de ameaça? Infelizmente, mesmo nessa frente de batalha, os ganhos tampouco justificam as perdas. A maioria dos observadores atentos da vida urbana contemporânea afirma que a probabilidade de ser assaltado ou roubado diminui quando a pessoa recua para dentro de muros – embora uma pesquisa sobre “sentimentos de segurança” realizada na Califórnia, de longe o maior reduto da obsessão pelos condomínios fechados, não tenha detectado diferença entre espaços cercados e não cercados. Mas o medo persiste.
Anna Minton, autora de um estudo de fôlego intitulado Ground Control: Fear and Happiness in the Twenty-First Century City, relata a história de Mônica, “que passou a noite inteira acordada e mais apavorada que nunca durante os vinte anos em que morou numa rua normal”, quando, “certa noite, os portões de controle eletrônico falharam e tiveram de ser deixados abertos”. Atrás dos muros, a ansiedade cresce em vez de se dissipar, e com ela a dependência do estado de espírito dos moradores com relação a “novas e melhores” engenhocas high-tech, vendidas pela propaganda com a promessa de desmoralizar os perigos e o medo do perigo.
Quanto maior o número de equipamentos com que nos cercamos, maior é o receio de que eles “falhem”. Quanto mais tempo gastamos preocupados com a ameaça de todo e qualquer estranho ou estrangeiro, menos tempo passamos na companhia deles, pondo à prova nossa preocupação. Quanto mais se perde a capacidade de “tolerância e valorização do inesperado”, menos é possível enfrentar, lidar com, desfrutar de e apreciar a vitalidade, variedade e pujança da vida urbana. Viver trancados dentro de um condomínio fechado a fim afastar os medos é o mesmo que escoar a piscina para ter certeza de que as crianças vão aprender a nadar em completa segurança.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Não faz muito tempo, Siobhan Healey, uma jovem que hoje tem 23 anos, obteve seu primeiro cartão de crédito. Ela o saudou como o amanhecer de sua liberdade, a ser comemorado e festejado todos os anos, como o dia de sua alforria. Daí em diante, ela se tornava dona de si mesmo, livre para administrar suas finanças pessoais, livre para escolher suas prioridades e compatibilizar seus desejos com as possibilidades reais.
Não muito depois desse dia, Siobhan obteve um segundo cartão de crédito para pagar a dívida contraída no primeiro. Não se passou muito tempo para ela compreender o preço que tinha de pagar pela tão festejada “liberdade financeira” – assim que se deu conta de que o segundo cartão não era suficiente para cobrir os juros da dívida acumulado no primeiro. Siobhan então recorreu a um empréstimo bancário para liquidar suas dívidas nos dois cartões, que já alcançavam a soma de 26 mil dólares australianos (cerca de R$40.000). Mas, seguindo o exemplo de seus amigos, ela pediu um crédito adicional para financiar uma viagem ao exterior – um must para qualquer pessoa de sua idade.
Por fim, logo depois ela acordou para o fato de que seria impossível livrar-se das dívidas sozinha, de que tomar novos empréstimos não era a saída para pagar as dívidas. Afinal, com um atraso de cerca de dois anos, ela disse: “Vou ter de mudar completamente meu modo de pensar e aprender a poupar para comprar.” Contratou os serviços de um consultor financeiro pessoal e de um especialista em negociação de dívidas a fim de ajudá-la a encontrar uma saída para o sufoco em que se metera. Mas será que esses consultores a ajudariam a “mudar completamente” seu “modo de pensar”? Isso ainda não se sabe, mas é bem provável que a luta de Siobhan seja longa e árdua.
Ben Paris, porta-voz do Debt Mediators Australia (firma especializada em consolidação e negociação de dívidas) não se mostrou surpreso ou impressionado com as tentativas e atribulações de Siobhan. Comparou a história da moça a “trocar seis por meia dúzia”, mas acrescentou que os jovens costumam “tomar empréstimos acima de suas posses”. Paris declarou ainda que o caso de Siobhan Healey está longe de ser exceção: “Estamos falando de 25 mil jovens por ano com dificuldades financeiras – e esta é apenas a ponta do iceberg.”
Será que Siobhan Healey e os milhares de jovens que passam por momentos de apuro semelhantes devem ser realmente condenados e desprezados por sua conduta impulsiva e imprevidente? Há muitíssimas razões para culpá-la. Mas, antes de nos precipitarmos na denúncia de sua negligência, é preciso não esquecer que pessoas muito mais velhas, mais experientes e cuidadosas têm no mínimo uma parcela de culpa.
As empresas de crédito vivem dos lucros gerados pelos tomadores de empréstimo; aqueles que resistem a viver de crédito e se recusam a pedir dinheiro emprestado não têm para elas qualquer utilidade. Já as pessoas que se endividam pesadamente e contraem empréstimos “acima de suas posses” são recebidas com efusão – afinal, são essas as fontes constantes de lucro das empresas de crédito, porque as pessoas se mantêm como eternas pagadoras de juros.
Não admira, portanto, que administradoras de cartões de crédito, bancos e financeiras prometam tudo o que for preciso a fim de atrair as pessoas para a ciranda dos empréstimos, na expectativa de que, uma vez lá dentro, os clientes não encontrem solução mais fácil do que continuar a fazer dívidas.
Qual seria a etapa de vida mais propícia a transformar uma pessoa que pensa em “poupar para comprar” num devedor eterno? Justamente a fase em que ela está mais vulnerável, o momento de transição da infância para a idade adulta, quando os hábitos infantis ainda sobrevivem, embora estejam se tornando cada vez mais incompatíveis com as novas atrações, as demandas e os desafios da maturidade. É natural que uma criança esteja acostumada a receber as coisas de presente, sem incorrer em compromissos. O dinheiro que lhe dão não é para ser reembolsado com juros, mas fruto do amor e do cuidado dos pais – é uma prova de amor, não de avareza.
Ninguém pergunta à criança “se ela tem condições de reembolsar” o dinheiro que ganhou, ninguém lhe pede garantias de pagamento, nem se fixam datas para um possível reembolso. Se a criança pede ao pai ou à mãe algum dinheiro além da mesada, eles dirão, “Para que você quer esse dinheiro?”, e nunca “Você tem recursos suficientes para oferecer uma garantia?”. Os pais podem lhe dar ou recusar outro presente, de acordo com a urgência das necessidades ou da intensidade do desejo dos filhos – não por uma avaliação de sua capacidade de reembolsá-los. A maioria dos pais presume de imediato que seus filhos compensarão seus generosos presentes com os presentes que eles mesmos darão, no devido tempo, aos futuros netos. É assim que são as coisas, não?
Eventual e inevitavelmente, chegará um momento, porém, em que os jovens que não são mais crianças e ainda não são adultos desejarão ser independentes, cuidar de sua vida, decidir sozinhos para onde ir, o que fazer e quais suas prioridades. Também chegará um tempo em que os pais, até os mais amorosos e cuidadosos (não por egoísmo, mas por amor e cuidado), vão querer que seus filhos e filhas “sejam alguém na vida” – que arrumem um emprego e se sustentem por conta própria. E haverá um tempo em que filhos e filhas (não por ressentimento, mas por gratidão e amor aos pais) vão querer provar que são capazes de corresponder às expectativas de seus pais.
Para as empresas de crédito, este é um excelente momento para a investida certeira. O lugar dos pais no mapa-múndi introjetado na cabeça de adultos jovens de repente ficou vago, e isso indica aos agiotas uma ocasião excepcional para se insinuarem in loco parentis – tal como o lobo na história de Chapeuzinho Vermelho, tentando se fazer passar pela doce vovozinha, mas apostando que, dessa vez, Chapeuzinho seja menos esperta e engenhosa, e não o desmascare a tempo; ou que ela não perceba o logro, pois hoje seus descendentes não andam mais sozinhos pelos bosques, mas em grandes grupos. E, dentro do grupo, todo mundo tende irrefletidamente a se comportar como todo mundo, em vez de aceitar os riscos e o cansativo trabalho de pensar por si mesmos.
O que torna os jovens ainda mais vulneráveis é o fato de que, em muitos países, as empresas de crédito contam com o apoio dos governos para que se ofereçam cursos – em princípio de enfoque teórico, mas com aulas práticas – sobre “a arte de viver de empréstimos” nos currículos obrigatórios de todas as faculdades e universidades, seja qual for a carreira escolhida. Por outro lado, e também com a adesão crescente dos governos, foram elaborados esquemas de empréstimo para estudantes universitários com facilidades sedutoras, mas ilusórias, de acesso e reembolso. O resultado disso é que a média dos estudantes termina o curso superior com uma dívida que muitos, cedo ou tarde, acabam descobrindo ser impossível de pagar; uma dívida que quase sempre exige fazer novos empréstimos para saldar a primeira.
Uma vez que o jovem se inicia nessa roda-viva de “viver de empréstimos”, o hábito de pedir novos financiamentos para pagar o anterior lhe parece perfeitamente normal. Na realidade, ele entrou num círculo vicioso. E esses círculos não podem ser desfeitos, somente cortados.
Esta carta começou como uma história de marinheiro e logo adquiriu a feição de uma história de camponês (se é que o leitor ainda se recorda da diferença que expliquei na primeira carta). Quantas Siobhan Healey há em seu bairro? Quem sabe em sua casa? Em sua cama? Dentro do seu pijama?
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Palm Beach é uma estreita ilha da Flórida de aproximadamente treze milhas de comprimento e pouco mais de dez mil habitantes. Liga-se ao continente por três pontes, mas seus moradores sentem e agem como se o lugar fosse um grande “condomínio fechado”.
Este é, sem dúvida, um grande condomínio fechado, mas sem muros e cercas de arame farpado. O preço das casas basta para manter a exclusividade. As poucas residências que estão à venda no momento têm valor médio estimado entre US$700 mil e US$72,5 milhões. Palm Beach é, por mútuo acordo, o local de maior densidade de riqueza dos Estados Unidos, já que ali se concentram mais milhões de dólares por quilômetro quadrado que em qualquer outro lugar do país. Corre uma piada de que chamar um residente de Palm Beach de “milionário” é um insulto. Nas boutiques que se espalham pela Worth Avenue, a rua em que os moradores da ilha compram suas roupas, um suéter custa mil dólares e um par de calças compridas sai pelo dobro disso. Para ser sócio do clube de campo local, o candidato terá de desembolsar trezentos mil dólares só de taxa de adesão.
David Segal, do The New York Times , estimou que, em sintonia com o status privilegiado de Palm Beach, as perdas sofridas por seus moradores durante a recente crise da bolsa de valores não teve paralelo em todo o país. O patrimônio líquido do morador médio da ilha, afirma Segal, “despencou, recentemente, … mais que o patrimônio líquido de qualquer outra cidade do país”. Esse dado, provavelmente mais que outras estatísticas, ilustra a posição privilegiada que Palm Beach ocupa no topo da “liga dos ricos” americanos (e, quem sabe, de todo o planeta).
Em Palm Beach não há um único cemitério, casa funerária ou hospital. Morte e doença são assuntos que os moradores da cidade afugentaram do espírito (embora não da vida, claro, apesar de não economizarem em seu devotado e sério empenho de fazê-lo), muito embora vários deles já passem dos oitenta anos.
Na Inglaterra, pesquisadores do Birmingham Hospital Trust, coordenados por Domenico Pagano, analisaram o destino de cerca de 45 mil pacientes com idade média de 65 anos que haviam passado por cirurgias cardíacas. Descobriram que o número de óbitos após a cirurgia dependia fortemente da fortuna dos pacientes, e subia depressa com a diminuição da renda. As “causas comuns” de morte, como fumo, obesidade e diabetes – que reconhecidamente afetam mais os pobres que os ricos – foram avaliadas como primeiras explicações, mas sem sucesso. Descontando-se o provável impacto desses fatores nas estatísticas de mortalidade, a nítida diferença no índice de sobrevivência após a cirurgia permaneceu. A única conclusão possível foi que, se os pacientes pobres tinham menos chance de sobreviver à cirurgia que os mais ricos, isso era por “cortesia” da pobreza.
Até pouco tempo atrás, a ideia de que a prosperidade da elite social acabaria beneficiando o conjunto da sociedade graças a um “efeito de capilaridade” fazia parte do senso comum cultivado com entusiasmo por lideranças de todas ou quase todas as correntes políticas. Mas essa teoria não está mais em uso em lugar algum, se é que um dia esteve; o elo entre uma elite cada vez mais rica e o aumento da segurança e da saúde do conjunto da comunidade não passa de um produto da imaginação – e, para não comer gato por lebre, um item de propaganda política.
De volta ao nosso argumento principal, Richard Wilkinson e Kate Pickett divulgaram extensa documentação para comprovar, no livro The Spirit Level,1 que a riqueza média de uma nação, medida pelo produto interno bruto, tem pouco impacto sobre uma longa lista de males sociais, enquanto a forma como essa riqueza é distribuída, em outras palavras, o nível de desigualdade social, influi profundamente na dispersão e intensidade dos males.
Por exemplo, Japão e Suécia são países administrados de maneira muito diferente; a Suécia é um grande Estado de bem-estar social, enquanto o Japão oferece pouquíssimos programas de previdência social. O que os une, todavia, é uma distribuição relativamente equitativa da renda, e, portanto, uma defasagem pequena entre o padrão de vida dos 20% mais ricos e dos 20% mais pobres da população. Mais importante ainda é que nesses países há menos “problemas sociais” que em outras sociedades altamente industrializadas, com uma divisão menos igualitária da renda e da riqueza social. Outro exemplo nos é oferecido por dois países vizinhos, Espanha e Portugal, este com índices de desigualdade social duas vezes maiores que o primeiro: em números e intensidade de “problemas sociais”, Portugal ganha de lavada da Espanha!
Na maioria das sociedades desiguais do planeta, como os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha, a incidência de doenças mentais é três vezes maior que nos países menos desiguais; suas populações carcerárias são muito mais numerosas, assim como os problemas de obesidade, gravidez de adolescentes e (apesar de toda a riqueza nacional!) os índices de mortalidade de todas as classes sociais, inclusive os mais ricos. Se o nível geral de saúde é mais elevado nos países mais prósperos, naqueles de distribuição mais igualitária da riqueza, as taxas de mortalidade caem proporcionalmente ao aumento da igualdade social.
Descoberta notável e preocupante é que o acréscimo dos níveis de investimento na área de saúde quase não tem impacto na expectativa de vida média, mas o crescimento do nível de desigualdade tem forte impacto, e extremamente negativo.
Quais as razões disso, perguntam os pesquisadores. E sugerem que, numa sociedade não igualitária, o medo de perder posição social, de ser rebaixado, socialmente excluído, de lhe negarem dignidade e de ser humilhado é mais forte – e acima de tudo muito mais angustiante e aterrador, dada a altura da queda prevista. Esses medos geram grande ansiedade e tornam as pessoas mais vulneráveis a distúrbios psicológicos, inclusive a depressões, fator que, ademais, tem consequências negativas sobre a expectativa de vida, em especial nas classes médias reconhecidamente inseguras quanto à estabilidade de suas conquistas e à solidez de seus privilégios.
A lista de “males sociais” que atormenta as “sociedades desenvolvidas” é longa e, apesar de todos os esforços genuínos ou hipotéticos, vem crescendo. Além das aflições já mencionadas, a lista inclui homicídio, mortalidade infantil e falta de confiança mútua, sem a qual a coesão social e a cooperação são inconcebíveis. Em cada um desses casos, os índices se tornam mais favoráveis à medida que passamos das sociedades menos igualitárias para as mais igualitárias, e as diferenças às vezes são muito espantosas.
Os Estados Unidos estão no alto da lista da desigualdade social, o Japão, no ponto mais baixo. No primeiro país, quase quinhentas pessoas em cem mil estão presas, enquanto no Japão esse número é de menos de cinquenta em cem mil. Nos Estados Unidos, um terço da população sofre de obesidade; no Japão, menos de 10%. Nos Estados Unidos, de cada mil mulheres entre quinze a dezessete anos, mais de cinquenta estão grávidas; no Japão, a proporção é de somente três. Nos Estados Unidos, mais de um quarto da população sofre de doenças mentais; no Japão, Espanha, Itália e Alemanha, sociedades com distribuição da riqueza relativamente mais igualitária, apenas uma em cada dez pessoas informa ter problema mental, comparado com uma em cinco em países mais desiguais, como Grã-Bretanha, Austrália, Nova Zelândia ou Canadá.
Trata-se de dados estatísticos, contagens, médias e suas correlações. Dizem pouco sobre as conexões causais que estão por trás dessas correlações. Mas os números estimulam a imaginação e fazem soar um alerta (no pior dos casos, nos deixam alarmados, e isso é bom). Eles apelam para a consciência e também para nosso instinto de sobrevivência. Lançam um desafio (e minam) à nossa indiferença moral e ao nosso letárgico senso ético, mas revelam, sem deixar qualquer margem de dúvida, que a ideia de buscar a felicidade e uma vida confortável tomando como referência unicamente o próprio indivíduo é um equívoco e uma ilusão; que a esperança de “chegar lá sozinho” é um erro fatal que vai de encontro aos próprios interesses da pessoa – como ilustra o feito do Barão de Münchausen, de tentar sair do pântano puxando-se pela peruca.
É impossível nos aproximarmos desse objetivo afastando-nos dos infortúnios dos outros .Somente juntos poderemos travar essa luta contra os “males sociais” – ou a perderemos.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Não tenho como saber se, ao ler essas palavras, o leitor ainda está assustado com o fantasma do vírus da “gripe suína” que cruzou o Atlântico vindo do México e chegou às nossas portas. Também não posso saber se o leitor se sente tão assustado com tal perspectiva quanto as pessoas que me cercam (ou se sentem pressionadas a estar) no momento em que escrevo esta carta. Não tenho ao menos certeza se você ainda se lembra do motivo de todo aquele pânico. Afinal, uma importante tarefa das manchetes dos jornais diários é apagar da memória as manchetes da semana passada, abrindo espaço na atenção do público para os títulos das primeiras páginas da próxima semana.
No que se refere ao pânico, quanto mais intensos e terríveis forem, mais depressa exaurem nossas reservas emocionais e sua própria capacidade de nos aterrorizar e enervar. De modo que é preciso descobrir novas manchetes suculentas e assustadoras a fim de conter o decréscimo de circulação dos jornais e a queda dos índices de audiência da televisão. Por esses e outros motivos, não posso saber com certeza que fatos provocam pânico no leitor no momento em que lê esta carta. Desconfio que você, leitor, talvez ache que minhas palavras contam uma história antiga, uma situação encerrada faz tempo (se é que alguma vez começou), nada com que valha a pena perder tempo, prestar atenção. É possível que você tenha agora outros motivos para estar assustado, e por isso não disponha de tempo ou espaço na cabeça para medos antigos.
Sem dúvida, no instante em que escrevo estas palavras, as primeiras páginas dos jornais já estão coalhadas de manchetes que alertam para outras razões de pânico. As notícias sobre o avanço da gripe suína mudaram para páginas menos importantes, reaparecendo apenas esporadicamente impressas em tipos de menor tamanho e espessura. Quando publicadas, as notícias tendem a ser acompanhadas (ao contrário do que acontecia poucos dias antes) de um misto de espanto, ceticismo e ironia.
Por exemplo, Bart Laws, médico sanitarista do Tufts Medical Centre de Boston, observa com tristeza que as autoridades públicas que emitiram um alerta de pandemia “fizeram exatamente o que se esperava. É possível, mas pouco provável, que esse vírus venha a causar uma quantidade incomum de problemas”. Mas logo acrescenta que “é muito mais provável que [o pânico] se dissipe em algumas semanas, porque a estação propícia aos casos de gripe está chegando ao fim, e não há indícios da existência de algo fora do comum no comportamento do vírus”. Uma síntese dos últimos acontecimentos publicada por Simon Jenkins, no jornal The Guardian, revela-se ainda mais cética e sarcástica, e vai ao cerne do problema: “A mutação do [vírus] mostrava realmente aspectos preocupantes. Mas nada justifica a barafunda criada pelas autoridades públicas e pela mídia britânica.”
Agora já se sabe que o número de mortes ocorridas no México por causa da nova cepa mutante do vírus da influenza não foi maior que o número médio anual de óbitos em decorrência da gripe comum; e que foi muitas vezes menor que o número de pessoas que morrem todos os anos em acidentes de trânsito nas estradas (cerca de doze mil pessoas morrem todos os anos no mundo, vitimadas pela gripe; nos Estados Unidos, mais de 150 crianças morrem de gripe anualmente, em comparação com as 7.677 crianças vitimadas por acidentes de carro, somente em 2003, enquanto 3.001 foram assassinadas). Um número maior de pessoas que visitaram o México na época, nas quais se identificou a mutação do vírus e que foram objeto de suspeita e horror, depois de voltarem para casa, por serem possíveis portadores da pandemia planetária, na verdade, foi vítima de envenenamento alimentar.
Mas também sabe-se que o governo britânico encomendou 32 milhões de máscaras (que ficaram estocadas, e depois descobriu-se serem inúteis; em breve serão retiradas dos depósitos para abrir espaço a suprimentos para uma “emergência adversa”), ciente de que o ditado “seguro morreu de velho” é condição indispensável a todo governo que deseja sobreviver às próximas eleições; e que, nas atuais circunstâncias, é uma condição absolutamente necessária à sobrevivência de qualquer governo mostrar-se diante de milhares de câmeras de televisão, em milhões de telas de TV, intensamente envolvido na ação e lutando de forma valente contra as ameaças.
Outros milhões de libras foram gastos para formar estoques nos hospitais e clínicas médicas da substância oseltamivir, droga produzida e comercializada pela empresa-gigante do setor farmacêutico Hoffman-La Roche com o nome de Tamiflu. Em 6 de setembro de 2009, Robin McKie, editor de ciência do jornal The Guardian, informou que o projeto “de estocar bilhões de doses de medicamentos essenciais para combater a epidemia de gripe suína” custou dez milhões de libras pagos às empresas produtoras, garantindo estoques de penicilina, morfina, diazepam e insulina caso um grande surto de influenza ameaçasse fechar a indústria farmacêutica nacional e as redes de distribuição. A decisão de estocar medicamentos foi tomada a despeito do anúncio, por parte das autoridades médicas, de que a segunda onda esperada da gripe não seria tão grande assim.
Gastou-se dinheiro público, dinheiro coletado por meio de impostos, sob ameaça de sanções punitivas, tanto dos que se sentiam apavorados quanto dos que resistiram ao alarmismo. Haveria um conflito entre políticos e empresários? Talvez, embora não necessariamente por vontade dos políticos. Afinal, os governos precisam demonstrar a seus eleitores que se ocupam com a proteção de seu bem-estar e de suas vidas contra desastres inenarráveis, numa longa lista de várias ameaças e formas de perdição.
Por isso, sir Liam Donaldson, principal autoridade da área de saúde pública da Grã-Bretanha, advertiu a nação de que o otimismo era prematuro e que a gripe suína “poderia voltar” no próximo inverno; também por essa razão, autoridades sanitárias de muitos estados norte-americanos declararam “situação de emergência” na saúde pública do país. Ainda pelo mesmo motivo, o vicepresidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez um apelo à nação para evitar o uso do metrô ou de aviões, pintando um quadro de iminente desastre com as tintas mais sombrias e assustadoras.
De um modo ou de outro, o alarmismo é hoje, na opinião de Jenkins, “fonte de grande satisfação para os florescentes impérios do contraterrorismo, da ‘saúde e segurança’. Lançar alarmes falsos sobre moléstias globalizadas é agora uma parte tão importante do complexo industrial-médico que nenhuma pessoa lúcida consegue distinguir o que é verdadeiro do que é moeda de troca política”. Na verdade, são eles que nos fazem ficar amedrontados. Contra o coro dos tonitruantes profetas da morte, quem teria sido ousado, insolente, tolo ou distraído o bastante para botar a boca no trombone, tirar-lhes as máscaras e declarar que o risco foi inventado, grosseiramente exagerado ou ampliado em proporções absurdas – e que poderia ser ignorado?
No que diz respeito a calar a oposição e as vozes da razão, o vírus tem a grande vantagem de ser invisível. Por isso, os óculos mais possantes não nos podem assegurar que o ar que respiramos está livre dele. Nós, os destinatários dos alertas, as pessoas conclamadas e incitadas (e suscetíveis) ao pânico, não temos direito de entrar nos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento de onde partem as notícias da mutação viral. Que escolha nos resta: confiar nos especialistas, nas pessoas que estão por dentro do assunto, ou… o quê?
Simon Jenkins conclui seu resumo expressando a certeza de que, “quando a atual onda de medo acabar e nos apresentarem a conta, o fiasco será investigado”. Ele não acredita, porém, que uma investigação previna o surgimento de outros motivos de pânico também caríssimos, e sugere ouvirmos de vez em quando o conselho de Voltaire, de matar um virologista de tempos em tempos para desencorajar os outros. À parte a absurda desumanidade do conselho, tenho dúvidas sobre a sabedoria de segui-lo. Afinal, os pobres virologistas estão fazendo seu trabalho. É obra de outras pessoas, arrogantes e poderosas, nos assustar com suas descobertas. Ou com o que elas dizem que descobriram. E tudo para obter ganhos políticos ou comerciais nesse processo. Marcar preciosos pontos na opinião pública e obter muitos lucros…
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
É comum louvar ou acusar as inovações tecnológicas por estarem na origem das revoluções culturais; na verdade, as inovações conseguem no máximo desencadeá-las, oferecendo o elo que faltava numa cadeia completa de elementos necessários para deslocar a transformação nos costumes e estilos de vida existentes, da esfera das possibilidades para a esfera da realidade; transformação que já estava pronta há tempos e lutava para acontecer. Uma dessas inovações tecnológicas é o telefone celular.
O advento do celular tornou possível a situação de alguém estar sempre à inteira disposição do outro; na verdade, trata-se de uma expectativa e de um postulado realista, uma demanda difícil de recusar, porque se supôs que sua satisfação, por fortes razões objetivas, era impossível. Pelas mesmas razões, a entrada da telefonia móvel na vida social eliminou, para todos os fins práticos, a linha divisória entre tempo público e tempo privado; entre espaço público e espaço privado; casa e local de trabalho; tempo de trabalho e tempo de lazer; “aqui” e “lá”. O proprietário de um telefone celular está sempre e em toda parte ao alcance dos outros, está sempre “aqui”, sempre ao alcance da mão.
A telefonia móvel no mínimo estraçalhou todas as linhas divisórias da capacidade de parar e deter, tornando fácil e plausível a eliminação ou violação dessas fronteiras – pelo menos do ponto de vista técnico. “Estar ausente” não é, não pode e não deve mais ser equivalente a “estar fora do alcance”. Claro que sempre se pode esquecer o celular em cima da mesa antes de sair, perdê-lo ou não achá-lo a tempo. Mas todas essas explicações para não atender ao chamado do telefone são agora vistas como sinais de negligência, insubordinação, indiferença condenável e ofensiva, afronta e outras falhas subjetivas, ou demonstrações de má vontade.
Os telefones celulares são o fundamento técnico da suposição de constante acessibilidade e disponibilidade. A suposição de que a condição humana em geral da modernidade líquida, a condição de “lobos solitários sempre em contato”, já foi viabilizada e se converteu em “norma”, tanto no segundo quanto no primeiro aspecto.
Aplicada de modo seletivo, “a disponibilidade constante” é amplamente usada hoje para organizar o espaço público: dividi-lo em áreas de “conectividade” e de “não conectividade”. Agora todo mundo pode estar sempre à disposição para qualquer contato telefônico, mas ainda é preciso se tornar disponível – e fazemos isso somente para um grupo selecionado de pessoas. Tornar-se disponível é uma ferramenta da construção de redes: de unificação e separação, de “entrar em contato” e “ficar fora de contato”. Integrar-se à rede pela troca de números telefônicos presume uma promessa recíproca de que alguém “sempre estará lá para você”, uma obrigação de sempre recorrer a essa presença interessada e pronta a atender (embora, como acontece em todos os padrões e estratagemas de reciprocidade, este também possa se opor, e com frequência o faz, a suposições explícitas, exploradas de modo unilateral, para desapontamento e irritação do parceiro suposto ou presumido).
Os telefones móveis são peças básicas da construção de pequenos postos avançados públicos, espaços em que é possível disputar e fazer experiências com uma miniversão do status de celebridade, ser conhecido e visto numa área realmente “pública”.
Os números de telefones celulares (isto é, o endereço do “aqui” mediado pelo aparelho móvel, onde a pessoa pode ser sempre encontrada, está pronta a responder e a interagir) não constam de listas telefônicas, portanto, não são acessíveis a qualquer pessoa. Dar o número do celular é conceder ou solicitar esse privilégio: é um ato de aceitação e ao mesmo tempo de consentimento, e/ou um pedido para ser aceito. Atualmente, essa prática modela nossa imagem da “rede” – o sentimento de “estar junto” que substituiu o conceito de “grupo” e sobretudo o de “comunidade de pertença”. Tornou-se, na prática, o arquétipo da versão atual da eterna questão do público versus privado.
Entre as imagens das formas de união que a prática da telefonia celular substituiu ou eliminou, o conceito de “rede” sobressai principalmente por sua flexibilidade e pela ilusória adaptabilidade ao rígido manejo e monitoramento, bem como pelo rápido e indolor ajuste e pela reformulação. Caracteriza-se ainda pela portabilidade: ao contrário de outros grupos de pessoas, as “redes” registradas nos aparelhos de seus donos os acompanham a todo momento, como a concha de um caracol, onde quer que eles vão ou parem. As redes lhes dão a ilusão de que “estão no controle” de modo permanente e contínuo.
Uma rede de comunicação, ainda que em forma miniaturizada, possui todos os elementos que marcam um espaço público; porém, seu tamanho e conteúdo são construídos de acordo com as preferências e predileções do proprietário individual, são fáceis de “limpar”, bastando para isso pressionar o botão de “deletar”, apagando assim as partes que não correspondem mais aos interesses ou expectativas do dono. Por isso, dão a impressão de ser docilmente submissas e responsivas às mudanças de humor e de desejos do proprietário. A fragilidade das conexões, a existência de meios instantâneos de desconexão, enfim, a combinação de facilidades para “conectar-se” com a possibilidade de interromper de modo indolor e igualmente instantâneo a situação de “estar conectado” no momento em que nos parecer inconveniente – tudo isso parece se adaptar de modo especial à dialética das relações tortuosas entre o público e o privado.
José Saramago escreveu sobre isso, em seu inimitável estilo agudo e ferino, em O homem duplicado:
O que de todo não compreende … é que, ao se desenvolverem as tecnologias decomunicação em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, a outra comunicação, aquela propriamente dita, a verdadeira, de mim para ti, de nós para eles, continue a ser essa confusão cruzada de becos sem saída, tão decepcionante com suas avenidas ilusórias, tão dissimulada no que expressa quanto no que dissimula.
A “perplexidade diante dos autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas”, conclui e sugere Saramago, é “incurável”. A perplexidade veio para ficar, mesmo que as tecnologias da comunicação continuem a se desenvolver em progressão geométrica ou exponencial.
A essas observações de Saramago acrescento que, na realidade, a perplexidade tende a aumentar. Afinal, a maior conquista das tecnologias de comunicação não foi simplificar a prática complexa da coabitação humana, mas comprimi-la numa cômoda camada fina e rasa – ao contrário do original, abrigado em múltiplas camadas grossas e densas –, graças à sua capacidade de ser manejada sem esforço e sem problemas. O efeito colateral da eliminação da “comunicação propriamente dita, a verdadeira” (como Saramago preferiu chamar a versão original, não comprimida) da pauta de tarefas urgentes, aquelas que não se deve deixar de lado, é outra das habilidades – que definham, esmaecem e desaparecem – que a “comunicação verdadeira” exige.
O resultado final de tudo isso é que os desafios da comunicação “de mim para ti, de nós para eles” parecem ainda mais desencorajadores e confusos; e a arte de lidar com eles parece ainda mais nebulosa e difícil de dominar do que na fase anterior, antes que começasse essa “grande revolução na conectividade humana” (como foram batizadas a invenção e as trincheiras dos telefones celulares).
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")
Emily Dubberley, autora de Brief Encounters: The Women’s Guide to Casual Sex , escreveu que, em nossos dias, obter sexo “é como encomendar uma pizza. … Agora você pode conectar-se à internet e encomendar genitália”. Não há mais necessidade de flertar ou fazer a corte, não é preciso empenhar todas as energias para obter a aprovação do parceiro(a), nem mover mundos e fundos para merecer e conquistar o consentimento do outro; é dispensável insinuar-se aos olhos dela ou dele e esperar um longo tempo, quiçá uma eternidade, para que todos esses esforços deem resultados.
Isso significa, porém, que acabaram todas aquelas coisas que costumavam fazer do encontrosexual um acontecimento tão estimulante, embora incerto, uma busca de aventura romântica, arriscada e cheia de armadilhas. Não há ganhos sem perdas. O sexo pela internet, entusiasticamente recebido por tanta gente, não é exceção a essa regra melancólica. Alguma coisa se perdeu – se bem que é comum ouvir muitos homens e quase igual número de mulheres dizerem que os ganhos valeram sacrifício. Os ganhos são conveniência – redução do esforço a um mínimo; velocidade – encurtamento da distância entre o desejo e sua satisfação; e garantia contra as consequências – que, como é próprio das consequências, nem sempre seguem o roteiro estabelecido e desejado. Consequências raramente são antecipadas, cobiçadas e bem-recebidas. Elas tanto podem se revelar desagradáveis e problemáticas quanto alegres e auspiciosamente agradáveis.
A publicidade de um website que vende sexo rápido e seguro (“sexo sem compromisso”), e se vangloria de ter 2,5 milhões de assinantes, diz o seguinte: “Encontre parceiros sexuais de verdade esta noite mesmo” (grifos meus). Outro site, que conta com milhões de associados espalhados pelo mundo afora, especializado em satisfazer o espírito aventureiro de parte do público gay, escolheu um slogan diferente: “O que você quiser, quando quiser” (grifo meu).
Os dois slogans mal conseguem esconder a mesma mensagem: os produtos ambicionados estão prontos para o consumo instantâneo, imediato; o desejo e sua satisfação fazem parte do mesmo pacote; você é que manda, mensagem que soa doce e apaziguadora a ouvidos treinados por milhões de comerciais (cada um de nós é obrigado/manipulado a assistir a mais comerciais por ano que nossos avós durante a vida inteira). Hoje, ao contrário do que ocorria no tempo de nossos avós, esses anúncios prometem prazeres sexuais tão instantâneos quanto café ou sopa em pó (“basta adicionar água quente”). Eles degradam, condenam e ridicularizam os prazeres espacial ou temporalmente remotos, que só podem ser obtidos com paciência, abnegação e muita boa-vontade, longo e árduo aprendizado, esforços desajeitados, complicados e às vezes extremamente difíceis – e que fazem pressentir tantos erros quanto as tentativas necessárias.
Algumas décadas atrás, esse tipo de “complexo de impaciência” foi sintetizado na famosa reclamação de Margareth Thatcher contra o Sistema Nacional de Saúde britânico e as razões que apontou para explicar por que era melhor deixar ao mercado a prestação de serviços médicos: “Quero um médico de minha escolha no momento que eu quiser.” Pouco tempo depois, inventaram-se os meios – varinhas mágicas no formato de cartão de crédito; mesmo que não realizasse integralmente o sonho da sra. Thatcher, o cartão pelo menos contribuiu para torná-lo plausível e crível. Esses instrumentos puseram a filosofia consumista ao alcance de um número crescente de indivíduos que bancos e financeiras consideravam merecedores de atenção e benevolência.
A sabedoria popular antiga e atemporal adverte-nos que “não se deve contar com os ovos antes de serem postos”. Acontece que agora os ovos da nova estratégia do prazer instantâneo já foram postos em profusão, toda uma geração deles, e temos todo o direito de começar a contar com eles. O psicoterapeuta Phillip Hodson já os contou, e suas conclusões mostram o resultado da fase eletrônica virtual da revolução sexual em curso como uma faca de dois gumes.
Hodson identificou o paradoxo do que qualifica como “cultura da gratificação instantânea, descartável” (que ainda não é universal, mas está em rápida expansão): pessoas que, numa só noite, podem namorar (eletronicamente) mais gente que seus pais – para não falar nos pais deles – teriam encontrado durante toda a vida, mais cedo ou mais tarde descobriam que, como acontece com todos os vícios, a satisfação obtida diminui a cada nova dose da droga. Tivessem elas a possibilidade de examinar com atenção o que suas experiências propiciam, descobririam, para sua surpresa e frustração (embora tarde demais), que o romantismo, o lento e complicado processo de sedução que hoje só lhes é dado ler nos velhos livros, não significava obstáculos desnecessários, redundantes, cansativos e irritantes a bloquear o caminho para a “coisa em si” (como os fizeram crer); estes são ingredientes importantes e até cruciais da própria “coisa”, aliás, de todas as coisas eróticas e “sensuais”, partes de seu charme e atrativo.
Em suma, ganhou-se em quantidade o que se perdeu em qualidade. O “novo sexo melhorado” via internet na verdade não é a “coisa” que fascinara e encantara nossos ancestrais e os inspirara a escrever inúmeros volumes de poesia para louvar sua glória e esplendor, para confundir o êxtase conjugal com o céu. Hodson, a exemplo de muitos outros pesquisadores, também descobriu que, mais que ajudar a criar vínculos e diminuir a tragédia dos sonhos não realizados, o sexo pela internet ajuda a enfraquecer e tornar mais superficiais as relações laboriosamente construídas na vida real off-line; por isso mesmo, é menos satisfatório e cobiçado, menos “valioso” e valorizado.
Georg Simmel observou muito tempo atrás que a medida do valor das coisas é o sacrifício necessário para obtê-las. Um número maior de pessoas pode “fazer sexo” com maior frequência. Porém, paralelamente a isso, cresce o número dos que vivem sozinhos, se sentem solitários e sofrem de agudos sentimentos de abandono. Essas pessoas que buscam com desespero fugir à dor desses sentimentos são assediadas pelas promessas de mais “sexo on-line”. E acabam compreendendo que, em vez de lhes saciar a fome de companhia humana, o sexo proporcionado pela internet só aumenta a sensação de perda e o sentimento de humilhação, solidão e privação da experiência do calor humano.
Cabe lembrar outra questão que vem à tona quando se avalia o saldo de perdas e ganhos. Os sites de relacionamento pela internet (e mais, os sites que oferecem sexo instantâneo) tendem a apresentar parceiros para transas de uma só noite em catálogos nos quais os “produtos disponíveis” são classificados de acordo com marcas selecionadas – altura, tipo de corpo, origem étnica, pelos corporais etc. (os critérios variam de acordo com o público-alvo e com o que se considera “relevante”). Desse modo, os clientes podem ajustar o(a) parceiro(a) escolhido(a) a partir de pedaços ou partes que parecem determinar a qualidade do “conjunto” e os prazeres sexuais desejados. Nesse processo, de algum modo, o “ser humano” se desintegra e desaparece: não se vê mais a floresta para além das árvores.
Escolher seu parceiro sexual num catálogo de traços peculiares e usos desejáveis, como se faz com mercadorias selecionadas em catálogos on-line de empresas comerciais, perpetua o mito que o ato origina; e insinua por si mesmo que cada um de nós, seres humanos, somos menos pessoas ou personalidades cujas qualidades não repetíveis estão todas contidas em nossa singularidade ou peculiaridade, mas uma coleção desordenada de atributos vendáveis ou difíceis de vender.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")