“Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.”
“Querer-se livre é também querer livres os outros.”
O existencialimo também nasceu dela |
Simone de Beauvoir estabeleceu a agenda para o movimento feminista dos anos 1960 e 1970 com O segundo sexo (1949), no qual ela afirmava que “não se nasce uma mulher, torna-se uma”. Em outras palavras, uma mulher é um construto social. Ela pertence a uma classe de outros reificados, desprovidos de subjetividade e existindo, literalmente, para o prazer dos homens. Mas Beauvoir não foi somente uma cronista revolucionária do lugar da mulher no mundo. Ela foi uma filósofa por seus próprios méritos, cujas contribuições somente foram valorizadas por uma profissão dominada por homens após sua morte. (E apenas, pode-se acrescentar, por conta da influência crescente das mulheres na academia resultante da publicação de O segundo sexo.)
Em Pirro e Cíneas (1944) e A ética da ambiguidade (1947), Beauvoir desenvolveu temas existencialistas originais que foram considerados interligados aos de seu parceiro por toda a vida, Jean-Paul Sartre. Embora se credite amplamente a Sartre a disseminação das ideias de Martin Heidegger para um público amplo na Europa e nos Estados Unidos, ele reconhecia privadamente que Beauvoir tinha um conhecimento mais claro e profundo do heideggerianismo. Em seus romances, sobretudo Ela veio para ficar (1943) e Todos os homens são mortais (1946), Beauvoir explorou temas existencialistas no contexto de vidas vividas por seus colegas, amigos e amantes. Em 1945, ela cofundou , junto com Sartre e Maurice Merleau-Ponty (1908-61), a revista filosófica e literária Les temps modernes.
Beauvoir nasceu em uma sólida família burguesa de Paris que estava passando por tempos difíceis. Seu pai a encorajava a ler, e sua mãe devotamente católica enviou Simone a uma escola cristã para meninas. De fato, Beauvoir era extremamente devota e desejava, inclusive, tornar-se freira, até que, aos quatorze anos de idade, abandonou a religião e se tornou ateísta. Sua vida e obra não podem ser entendidas fora do contexto de sua existência compartilhada com Sartre, com quem ela formou uma relação para toda a vida baseada no amor “necessário” entre ambos, com a concordância de que cada um deles podia adquirir amantes “contingentes”. Como alunos da École Normale Supérieure, eles terminaram em primeiro e segundo lugar na agrégation de filosofia, em 1927 (a agrégation é um teste de serviço civil que qualifica candidatos bem-sucedidos para dar aulas em liceus como professeurs agrégés). Embora Sartre tenha terminado em primeiro, Beauvoir, aos 21 anos de idade, conquistou a distinção de tornar-se a mais nova professeur agrégé na história da França.
Sartre, Beauvoir e Heidegger
Juntos, Beauvoir e Sartre liam Søren Kierkegaard, Edmund Husserl e o Ser e tempo (1927), de Heidegger. A influência de Heidegger em Sartre é bem conhecida, e O ser e o nada (1943) é, em parte, resultado do entendimento de Sartre dos temas principais de Ser e tempo. Mas Beauvoir também leu Heidegger a fundo e explorou sua ideia de “desvelamento” em A ética da ambiguidade. Por revelação, Heidegger se referia ao momento autêntico da autorrevelação do Dasein. Dasein, que significa ‘existência’ no uso comum do alemão, é empregado por Heidegger para se referir à condição humana de ser. A autorrevelação que Dasein experimenta no desvelamento é a abertura para todas as possibilidades humanas, incluindo a morte. De fato, é a morte que dá urgência e autenticidade ao Dasein por meio do desvelamento. Em O ser e o nada, Sartre havia caracterizado o homem como uma “paixão inútil”. Beauvoir encontrou na noção heideggeriana de desvelamento um reconhecimento de um ser humano e do Outro como livres e agora abertos para experimentar a “alegria da existência”. Seu existencialismo, portanto, é mais otimista que o de Sartre, e seus pensamentos sobre esse princípio básico do existencialismo são elaborados em Pirro e Cíneas.
Ao longo de sua vida compartilhada, Beauvoir prestaria auxílio a Sartre, tendo mais de uma vez escrito artigos que foram publicados com o nome dele quando ele era incapaz de cumprir um prazo devido ao álcool ou às drogas. Durante a ocupação nazista de Paris, era Beauvoir quem encontrava comida, cozinhava e alimentava a família estendida de amantes mútuos e amigos que viviam desconfortavelmente no Hôtel Mistral, em Montparnasse. Apesar de sua rejeição inicial do catolicismo romano e dos valores burgueses, do entendimento de Beauvoir de que a mulher não nascia, mas era construída como um construto social, e de sua crença radical na ideia de que se podia fazer o próprio mundo por escolha – apesar de tudo isso –, ela ainda se encontrava em um estado de Alteridade que não se aplicava aos homens poderosos a quem era ligada. Esse estado reduzido se aplicava a ela e a todas as mulheres.
O segundo sexo e sua influência
Em O segundo sexo, Beauvoir combinou seu domínio do método fenomenológico de Husserl com a compreensão de Heidegger de Dasein para criar um relato histórico e filosófico da mulher. Ela foi atraída pela declaração do seu amigo Maurice Merleau-Ponty, em seu Fenomenologia da percepção (1945), de que “o homem é uma ideia histórica”. Entre as ferramentas teóricas que ela utilizou, estavam o conceito de dialética mestre/escravo desenvolvido por Hegel e uma análise baseada em suas leituras do primeiro Karl Marx, que a levou a concluir que, em virtude de sua capacidade reprodutiva e de sua exclusão da produção e economia, e por conta de seu papel como mães e esposas, as mulheres estavam reduzidas a um estado de absoluta Alteridade.
Na França, O segundo sexo foi recebido com repulsa, e Beauvoir foi castigada como uma destruidora do tecido social, porque ela rejeitava o casamento e a maternidade e defendia que as mulheres eram livres para escolher suas vidas (incluindo o direito ao aborto). Ela foi alvo de mensagens de ódio e ameaças, cuja violência a surpreendeu. Mas quando foi traduzido para o inglês, em 1963, O segundo sexo se tornou o texto inspirador da segunda onda de feminismo, sobretudo nos Estados Unidos, onde A mística feminina (1963), de Betty Friedan (1921-2006), miraria a situação da dona de casa suburbana, cuja posição Beauvoir considerou tão terrível em sua primeira viagem aos Estados Unidos, em 1947.
Dois outros textos importantes da segunda onda do feminismo que deveram muito a O segundo sexo foram Política sexual (1970), de Kate Millett (1934-), e A mulher eunuco (1970), de Germaine Greer (1939-). Política Sexual examina a história do patriarcado e o papel das mulheres segundo retratado na literatura, particularmente na obra de D. H. Lawrence (1885-1930), Henry Miller (1891-1980) e Norman Mailer (1923-2007). Em A mulher eunuco, Greer, como Friedan, foca na família nuclear suburbana. Ela conclui que sua organização é repressiva, transformando as mulheres em “eunucos”. Mais tarde, feministas da terceira onda, como Bell Hooks (1952-) e Maxine Hong Kingston (1940-), argumentariam que a perspectiva de classe média alta das feministas de segunda onda ignorou mulheres negras e questões de diversidade.
O feminismo europeu, depois de Beauvoir, tendeu a ter um aspecto marxista que não esteve presente no movimento americano. Na França, Beauvoir é reverenciada por feministas contemporâneas, mesmo que o existencialismo do qual ela era uma expoente central, junto com Sartre e Merleau-Ponty, tenha dado o lugar de discurso dominante da vida intelectual, depois de 1970, ao estruturalismo e pós-estruturalismo. Ainda assim, feministas pós-estruturalistas como Julia Kristeva, Luce Irigaray e Hélène Cixous reconhecem sua dívida com Beauvoir.
O romance como filosofia
Beauvoir foi uma romancista prolífica, mas pode-se argumentar que seus romances são ao mesmo tempo obras de literatura e trabalhos filosóficos preenchidos por personagens. Em seu primeiro romance, Ela veio para ficar, ela criou personagens velados para explorar um evento real: o efeito que teve sobre a relação entre Beauvoir e Sartre a experiência de um ménage à trois (na verdade, um ménage à quatre), quando se juntaram a eles a jovem aluna de Beauvoir, Olga Kosakiewicz, e, depois, a irmã de Olga, Wanda. Nesse romance, Beauvoir desenvolveu os conceitos do “Olhar” e do “Outro” para definir o sujeito em relação com outros sujeitos: dois temas que seriam cruciais em O ser e o nada, de Sartre. Beauvoir venceu o Prix Goncourt em 1954 por outro roman à clef, Os mandarins. Foi dedicado ao romancista americano Nelson Algren, com quem ela tinha um caso.
Questões de autenticidade
Beauvoir publicou cinco volumes de autobiografia, começando com Memórias de uma moça bem comportada (1958), assim como uma memória de Sartre, A cerimônia do adeus (1981), ambos saudados como obras de honesto autoexame. Após sua morte, no entanto, começaram a surgir evidências de que o comprometimento público de Beauvoir com a autenticidade mascarava ações e comportamentos privados que poderiam ser considerados inautênticos. Ela foi criticada por ter cedido à exigência do governo de Vichy de que todos os professores escolares assinassem um certificado declarando não serem judeus nem maçons e por ter aceitado trabalho na Radiodiffusion Nationale, controlada pelos nazistas, como produtora de programas de rádio (um cargo que Sartre conseguiu para ela por meio da intervenção do colaboracionista René Delange, que editava o Comedia, um jornal para o qual Sartre escrevia e que era publicado com o apoio do Instituto Alemão em Paris).
Com o dinheiro que ganharam, Beauvoir e Sartre puderam se mudar para quartos maiores no Hôtel La Louisiane, em Saint-Germain-des-Prés. É difícil, de uma distância de 70 anos – e sem uma experiência pessoal de ocupação inimiga –, julgar os limites obscuros entre colaboração e resistência, ou entender completamente a realidade da sobrevivência sob tais circunstâncias. A questão que se levanta é a seguinte: como escritores, Beauvoir e Sartre deveriam ter se mantido em silêncio? Ou suas ações se justificavam porque eles “usavam” os organismos de publicação controlados por nazistas (editoras de jornais e livros), assim como o teatro e o rádio, para seus próprios propósitos “autênticos”?
Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, uma questão que leitores contemporâneos acham difícil aceitar é a revelação de que Beauvoir mantinha relações sexuais com várias de suas alunas adolescentes. Uma garota, Nathalie Sorokine, foi seduzida por Beauvoir e depois por Sartre e seu amigo Jacques-Laurent Bost (que era também um dos amantes de Beauvoir). A mãe de Sorokine processou Beauvoir, mas o caso foi encerrado depois de uma audiência em que Bost e Sartre negaram seus casos com Sorokine e também que Beauvoir mantivesse relações sexuais com mulheres. Em um contexto mais amplo, Beauvoir é criticada por se unir a Sartre em seu contínuo apoio à União Soviética, mesmo quando ambos sabiam dos assassinatos e gulags de Stálin.
Um homem nunca se colocaria a escrever um livro a respeito da situação peculiar do humano masculino. Mas, se eu desejo me definir, preciso dizer em primeiro lugar: “Sou uma mulher”; sobre esta verdade deve estar baseada toda discussão que se seguir.Simone de Beauvoir, O segundo sexo (1949)
Houve um sucesso indiscutível em minha vida: minha relação com Sartre. Em mais de trinta anos, apenas uma noite fomos dormir separados.Simone de Beauvoir, Hard Times [Tempos difíceis] (1963)
A força de sua [de Beauvoir] teoria da alienação como elemento da diferença sexual não vem apenas do fato de que consegue sugerir – embora de modo ligeiramente imperfeito – que estruturas de poder patriarcal funcionam na própria construção da subjetividade feminina, mas também da sua tentativa de mostrar exatamente como esse processo acontece. Há um esforço admirável aqui de desenvolver um entendimento inteiramente social da subjetividade. A principal falha da sua análise continua sendo a ausência de qualquer discussão real sobre a relação entre o anatômico e o social.Toril Moi, Simone de Beauvoir: The Making of an Intellectual Woman [Simone de Beauvoir: a criação de uma intelectual] (2008)
(Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)