Que nós nascemos com a capacidade de sentir culpa, é certo. Até cães vêm com esse programa. É velha a expressão “cara de cachorro que quebrou a panela”. De fato, depois de um óbvio “malfeito”, lá vem ele com a cabeça baixa e as orelhas murchas a tentar nos lamber, a nos pedir perdão.
O sentimento de culpa mistura vergonha com arrependimento e supõe certa integridade moral de quem o tem. É sabido que os psicopatas passam-lhe ao largo, apesar de a ele não serem indiferentes. Ao contrário, desafiam-no.
Mas é principalmente uma crença cultivada por culturas controladoras, que vai sendo absorvida pelo programa superego (aquele crítico que carregamos no cérebro) até se tornar parte de nossa identidade. É um caso de “identificação por imposição”.
Lembro-me bem que as regras da Igreja católica para categorizar algo como pecado incluíam pleno conhecimento da transgressão, livre-arbítrio para fazê-la e um momento de “dane-se, vou fazer”.
Se nós fôssemos bem atentos ao catecismo (e soubéssemos nossa taxa de livre-arbítrio), não seríamos tão assíduos ao confessionário. Mas à instituição, não interessava nem um pouco a discussão dos meios, pois ela lucrava e prosperava com a culpa: o bobalhão acreditava no seu livre-arbítrio, desconsiderava sua explosão hormonal da adolescência e considerava-se criminoso por ter se masturbado ou mesmo por pensamentos contra a castidade. Confessava seu crime. O padre, pelo ato da absolvição e pela penitência imposta, endossava que havia crime de fato, e lá ia o jovem, livre para pecar outra vez.
Ouvi dizer que a Igreja não considera mais a masturbação como pecado mortal. Numa festa do colégio Santo Inácio em que me formei, apresentei esta questão ao nosso antigo padre prefeito: “E aqueles que morreram em pecado antes da mudança da lei? Queimam no inferno assim mesmo?” Ele, que não tinha cacife intelectual para uma resposta teológica, e pressionado pela gargalhada dos colegas, disse-me que eu já havia bebido vinho o bastante.
Fato é que, como instrumento de dominação, a nossa espécie não inventou arma melhor. A Igreja usa e abusa dela, e se mantém por dois mil anos. Você pode fazer com que uma pessoa se ajoelhe, submissa, sob a mira de um revólver. Mas, se ela tiver oportunidade, revidará. Uma vez sentindo-se culpada, a pessoa implora para se ajoelhar diante de você. Imbatível!
A coisa ficou séria quando a esquerda descobriu que podia fazer os trabalhadores prósperos se sentirem culpados por sua riqueza. Em nome desse grave pecado (a prosperidade, que vem de “explorar humildes”), jogam sobre quem ganha seu dinheiro honestamente impostos escorchantes, camuflados ou não (os camuflados tiram dos humildes, que ironia). São penitências atuais.
É secundário se os impostos forem para perpetuar seu esquema de poder, em vez de reverterem para segurança, saúde e educação. O importante é dominar. O mesmo vale para as compensações exigidas pelas minorias massacradas por nossos ancestrais, sejam elas quilombolas ou índios.
Você viu, a grande defesa do mensalão foi que ele não era em proveito próprio, mas na busca de uma sociedade mais igualitária, para ressarcir os coitadinhos. E o pior: há multidões que acreditam nessa culpa, pois, coitadas, têm “certa integridade a defender”.
Mesmo que o sentimento de culpa seja uma capacidade da natureza humana, se ele for cultivado pela sua família, ou por sociedades (civis, políticas ou religiosas), fique sabendo que estão usando dele para te controlar.
(Daudt, Francisco - A natureza humana existe: e como manda na gente)