Por meio da humildade, da introspecção e contemplação orante ganhou-se uma nova compreensão de certos dogmas . A igreja já não acredita em um inferno literal , onde as pessoas sofrem . Esta doutrina é incompatível com o amor infinito de Deus. Deus não é um juiz , mas um amigo e um amante da humanidade. Deus nos procura não para condenar, mas para abraçar . Como a história de Adão e Eva , nós vemos o inferno como um artifício literário . O inferno é só uma metáfora da alma exilada (ou isolada), que, como todas as almas em última análise, estão unidos no amor com Deus.
(Papa Francisco)
Deus com Sua infinita Sabedoria, escondeu o Inferno no meio do Paraíso para que nós sempre estivéssemos atentos.
(Papa Francisco)
Deus com Sua infinita Sabedoria, escondeu o Inferno no meio do Paraíso para que nós sempre estivéssemos atentos.
Prefiro o paraíso pelo clima, o inferno pela companhia.
Tenho juízo, mas não faço tudo certo, afinal todo paraíso precisa de um pouco de inferno!
Martha Medeiros .
A MAIORIA DOS CAPÍTULOS deste livro tem uma pergunta no título. Meu objetivo é responder a ela, ou pelo menos dar a melhor resposta possível: a da ciência. Mas quase sempre começarei com algumas explicações míticas, porque são curiosas e interessantes, e pessoas reais acreditaram nelas. Algumas ainda acreditam.
Todos os povos do mundo têm mitos sobre sua origem, para explicar de onde vêm. Muitos mitos tribais sobre isso dizem respeito apenas a uma tribo específica. Como se as outras não tivessem a menor importância! Ao mesmo tempo, muitas tribos respeitam a regra de que não se deve matar pessoas — mas “pessoas” significa apenas gente da própria tribo. Matar gente de outra tribo não tem problema.
Eis um típico mito de origem, de um grupo de aborígines tasmanianos. Um deus chamado Moinee foi derrotado por um deus rival, Dromerdeener, numa batalha nas estrelas. Moinee despencou de lá e caiu na Tasmânia para morrer. Antes de deixar este mundo, quis abençoar o local do seu derradeiro descanso e decidiu criar os humanos. Porém, apressado, com sua vida por um fio, ele se esqueceu de dar aos homens joelhos e distraidamente (sem dúvida de tanto que sofria) lhes deu uma cauda, comprida como a do canguru, que os impedia de se sentar. Em seguida, morreu. Todos detestaram ter cauda de canguru e não ter joelhos, e clamaram aos céus por ajuda.
O poderoso Dromerdeener, que gargalhava pelo céu no desfile da vitória, ouviu o clamor e desceu à Tasmânia para ver o que se passava. Ele teve pena das pessoas. Deu-lhes joelhos e cortou fora aquela incômoda cauda de canguru para que finalmente pudessem se sentar. E todos viveram felizes para sempre.
É bem frequente encontrar diferentes versões de um mesmo mito. Isso não surpreende, pois as pessoas costumam alterar detalhes quando contam histórias em volta da fogueira; com isso, as narrativas vão divergindo. Em outra versão desse mito tasmaniano, Moinee cria lá no céu o primeiro homem, chamado Parlevar. Esse homem também não podia se sentar porque tinha uma cauda como a dos cangurus e seus joelhos não se dobravam. Como no caso anterior, o deus rival, agora Dromerdeener, veio rapidamente em socorro. Deu a Parlevar joelhos e cortou sua cauda fora, curando a ferida com sebo. Parlevar desceu pela estrada do céu (a Via Láctea) e foi parar na Tasmânia.
As tribos hebraicas do Oriente Médio tinham um deus único e o consideravam superior aos deuses das tribos rivais. Ele tinha vários nomes, que todos estavam proibidos de pronunciar. Esse deus fez o primeiro homem com o pó da terra e deu-lhe o nome de Adão (que significa “homem”). Deliberadamente, fez Adão parecido consigo. Aliás, a maioria dos deuses da história é retratada como homem (alguns como mulheres), em geral de tamanho gigantesco e sempre com poderes sobrenaturais.
Esse deus pôs Adão em um lindo jardim chamado Éden, com muitas árvores cujos frutos ele era incentivado a comer — com uma exceção. Essa árvore proibida era a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, e o deus deixou bem claro a Adão que daqueles frutos ele jamais deveria comer.
O deus percebeu que Adão devia se sentir solitário, e quis fazer alguma coisa a respeito. Nesse ponto — como na história de Dromerdeener e Moinee — há duas versões do mito, ambas relatadas no livro bíblico do Gênesis. Na visão mais pitoresca, o deus fez todos os animais como ajudantes de Adão, depois decidiu que ainda faltava alguma coisa: uma mulher! Por isso, deu a ele uma anestesia geral, abriu seu corpo, retirou uma costela e tornou a fechá-lo. Em seguida, fez uma mulher com a costela, como quem obtém uma flor a partir de uma muda. O deus a chamou de Eva e a apresentou a Adão como sua esposa.
Infelizmente havia no jardim uma serpente má, que se aproximou de Eva e a convenceu a dar a Adão o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. Adão e Eva comeram o fruto e imediatamente adquiriram o conhecimento de que estavam nus.
Isso os deixou envergonhados, e eles se cobriram com folhas de figueira. Quando o deus notou, ficou furioso por terem comido o fruto e adquirido conhecimento — e por terem perdido a inocência, suponho. Expulsou-os do jardim e os condenou, com todos os seus descendentes, a uma vida de trabalhos e sofrimento. Até hoje a história da terrível desobediência de Adão e Eva é levada a sério por muita gente, sob o nome de “pecado original”. Algumas pessoas acreditam até que todos herdamos esse “pecado original” de Adão (embora muitas admitam que Adão nunca existiu realmente!) e que somos tão culpados quanto ele.
Os povos nórdicos da Escandinávia, os famosos vikings, tinham, assim como os gregos e os romanos, muitos deuses. O principal deles era Odin, também conhecido como Wotan ou Woden, de onde provém a palavra “Wednesday”, que significa quarta-feira em inglês. (“Thursday”, quinta-feira, vem de outro deus nórdico, Thor, que produzia trovões com seu martelo.)
Um dia, Odin andava pela praia com seus irmãos, também deuses, e encontrou dois troncos de árvore.
Eles transformaram um desses troncos no primeiro homem, e o chamaram de “Ask”; o outro, na primeira mulher, “Embla”. Depois de criarem os corpos do primeiro homem e da primeira mulher, os irmãos deram-lhes o sopro da vida, seguido pela consciência, pelo rosto e pelo dom da fala.
Eu me pergunto: por que troncos de árvore? Por que não pingentes de gelo ou dunas de areia? Não é fascinante tentar imaginar quem terá criado essas histórias e por quê? Presumivelmente, os inventores originais de todos esses mitos sabiam que se tratava de ficção no momento em que os estavam elaborando. Ou então, podemos pensar, muitas pessoas criaram diferentes partes da história, em momentos e em lugares distintos, e outras pessoas mais tarde juntaram tudo, talvez mudando algumas coisas, sem perceber que as várias partes haviam sido originalmente inventadas?
Todos gostam de ouvir histórias e repetidas. Mas quando encontramos uma realmente mirabolante, seja um mito antigo ou uma “lenda urbana” que se espalha pela internet, vale a pena parar e pensar se ela, ou alguma parte dela, é verdadeira.
Por isso, façamos a nós mesmos a pergunta: quem foi a primeira pessoa? Vamos ver qual é a resposta verdadeira, a resposta da ciência.
Quem foi, realmente, a primeira pessoa?
VOCÊ TALVEZ se surpreenda, mas nunca houve uma primeira pessoa — porque toda pessoa precisa ter tido pais, e esses pais têm que ser pessoas também! O mesmo vale para os coelhos. Nunca houve um primeiro coelho, nem um primeiro crocodilo, nem uma primeira libélula. Toda criatura que já nasceu pertence à mesma espécie de seus pais (talvez haja um ínfimo número de exceções, mas não tratarei delas aqui). Portanto, isso significa que toda criatura já nascida pertenceu à mesma espécie de seus avós. E de seus bisavós. E tataravós. E assim por diante, infinitamente.
Infinitamente? Bem, não é tão simples assim. Teremos de gastar algum tempo com uma explicação, e começarei com um experimento mental. Um experimento mental é uma experiência que fazemos na imaginação. O que vamos imaginar não é algo possível na vida real porque nos leva muito para trás no tempo, muito antes de termos nascido. Mas imaginar a situação nos ensina algo importante. Vamos então ao nosso experimento mental. Tudo o que você precisa fazer é imaginar que está executando as instruções a seguir.
Pegue uma fotografia sua. Agora pegue uma de seu pai e ponha por cima. Sobre a do seu pai ponha uma do seu avô. E, agora, uma foto do seu bisavô, uma do seu tataravô. Provavelmente você não conheceu seus tataravós. Eu não conheci os meus, mas sei que um deles era professor primário na zona rural, outro era médico no interior, outro era guarda florestal na índia britânica e outro ainda era advogado, adorava creme e morreu praticando alpinismo em idade avançada. Mas mesmo se você não souber como era o pai do pai do pai do seu pai, pode imaginá-lo como uma espécie de figura indistinta, talvez numa fotografia desbotada num porta-retratos velho de couro. Agora faça o mesmo com o pai dele, seu pentavô. E continue empilhando as fotos, sucessivamente, voltando no tempo a cada antepassado seu. Você pode continuar a fazer isso até mesmo quando chegar a um momento em que a fotografia ainda não tinha sido inventada — afinal de contas, este é um experimento mental.
De quantos antepassados precisaremos em nosso experimento mental? Ora, meros 185 milhões já bastam!
Meros?
MEROS?
Não é fácil imaginar uma pilha com 185 milhões de fotos. Que altura ela teria? Bem, se cada foto fosse impressa numa folha com a espessura de um cartão-postal, 185 milhões de fotos dariam uma torre com quase 67 mil metros de altura. Isso é mais do que 180 arranha-céus um em cima do outro. Alto demais para escalar, mesmo se a pilha inteira não despencasse (o que certamente aconteceria). Por isso, vamos deitar a pilha e arrumar as fotos horizontalmente numa única prateleira de estante.
Qual será o comprimento dessa prateleira?
Aproximadamente 64 quilômetros.
A ponta mais próxima da prateleira contém a sua fotografia. A mais distante, a do seu 185 milionésimo avô. Como ele era? Um velhote de cabelos ralos e costeletas? Um homem das cavernas vestido com pele de leopardo? Esqueça isso. Não sabemos como ele era exatamente, mas pelos fósseis podemos ter uma boa noção. Seu 185 milésimo avô seria um peixe. É isso mesmo. O seu 185 milionésimo avô era um peixe. E também era peixe a sua 185 milionésima avó — ainda bem, do contrário não poderíam ter se reproduzido e você não estaria aqui. Agora, andemos ao longo da nossa prateleira de 64 quilômetros pegando algumas fotos e dando uma olhada nelas. Cada foto mostra uma criatura pertencente à mesma espécie que a das duas fotos contíguas. Cada uma se parece exatamente com a foto vizinha, ou pelo menos é tão parecida quanto qualquer homem se parece com seu pai e com seu filho. No entanto, se você for andando sem parar de uma ponta da prateleira à outra, verá um humano em um extremo e um peixe no outro. E uma porção de outros antepassados interessantes pelo caminho, entre os quais, como logo veremos, incluem-se alguns animais que se parecem com grandes símios, outros com macacos, outros com musaranhos etc. Cada um é parecido com o da foto vizinha, e, no entanto, se você pegar duas fotos quaisquer que estejam bem distantes uma da outra, elas serão bem diferentes — e se você retroceder na fila desde os humanos até um ponto bem remoto dará de cara com um peixe. Como pode ser isso?
Na verdade, não é tão difícil de entender. Já estamos acostumados com mudanças graduais que, devagarinho, passo a passo, produzem uma grande mudança. Você já foi um bebê. Não é mais. Quando for bem mais velho, terá uma aparência muito diferente da de hoje. No entanto, a cada dia da sua vida, quando você acorda, é a mesma pessoa que era ao ir para a cama na noite anterior. Um bebê muda, vira uma criancinha que já sabe andar, depois uma criança maior, um adolescente, um jovem adulto, um adulto de meia-idade e por fim um velho. E a mudança acontece tão gradualmente que não existe um dia em que você possa dizer “esta pessoa subitamente deixou de ser um bebê e se tornou uma criança pequena”. E nunca existirá um dia em que você poderá dizer “esta pessoa deixou subitamente de ser uma criança e se tornou um adolescente”. Nunca haverá um dia em que se possa dizer “ontem este homem era uma pessoa de meia-idade, hoje é um velho”.
Isso nos ajuda a compreender o experimento mental, que nos leva por 185 milhões de gerações de pais, avós, bisavós etc. até estarmos face a face com um peixe. E, avançando no tempo, foi o que aconteceu quando seu ancestral peixe teve um filho peixe, que teve um filho... que 185 milhões de gerações depois (gradualmente menos parecidas comum peixe) gerou você.
Portanto, tudo foi muito gradual, tão gradual que você não notaria mudança alguma se voltasse mil anos no tempo, ou mesmo 10 mil anos, o que o levaria aproximadamente ao seu 400? bisavô. Ou melhor, você notaria muitas mudanças minúsculas pelo caminho, já que ninguém é igualzinho ao pai. Mas não notaria nenhuma tendência geral. Dez mil anos antes dos humanos atuais não é suficientemente distante no tempo para evidenciar uma tendência. O retrato do seu ancestral de 10 mil anos atrás não seria diferente dos retratos de pessoas de hoje, se deixarmos de lado variações superficiais no modo de vestir e nos cabelos e nas costeletas. Não veriamos diferenças maiores do que aquelas que notamos entre um grupo de pessoas do nosso tempo.
E se fossem 100 mil anos, onde poderiamos encontrar nosso 4 milésimo avô? Bem, agora poderíamos encontrar uma mudança observável. Talvez um ligeiro engrossamento do crânio, especialmente embaixo das sobrancelhas. Mas ainda seria discreto. Agora voltemos mais no tempo. Se você andasse pela prateleira até 1 milhão de anos atrás, a foto do seu 50 milésimo avô seria suficientemente diferente para indicar outra espécie, aquela que chamamos de Homo erectus. Hoje, como você sabe, somos Homo sapiens. O Homo erectus e o Homo sapiens provavelmente não teriam sido capazes de cruzar entre si e ter filhos. Mesmo se fossem, o bebê resultante provavelmente não seria capaz de procriar, do mesmo modo que quase todas as mulas, que são animais nascidos do cruzamento de um jumento com uma égua, são incapazes de se reproduzir. (Veremos o porquê no próximo capítulo.)
Novamente, porém, tudo é gradual. Você é Homo sapiens e seu 50 milésimo avô foi Homo erectus. Mas nunca houve uma Homo erectus que subitamente gerasse um bebê Homo sapiens.
Assim, a questão de quem foi a primeira pessoa e quando ela viveu não tem uma resposta precisa. É uma coisa vaga, como a resposta à pergunta “Quando é que você deixou de ser bebê e se tornou uma criança pequena?” Em algum ponto, provavelmente há menos de 1 milhão de anos porém há mais de 100 mil anos, nossos ancestrais diferiam de nós o bastante para impossibilitar que uma pessoa dos dias de hoje tivesse filhos com eles caso pudessem se encontrar.
Se devemos ou não considerar o Homo erectus uma pessoa é outra conversa. É uma questão semântica, ou seja, de como escolhemos usar as palavras. Algumas pessoas podem dizer que a zebra é um cavalo listrado, enquanto outras preferem manter a palavra “cavalo” só para a espécie que cavalgamos. É outra questão semântica. Você pode preferir reservar as palavras “pessoa”, “homem” e “mulher” para o Homo sapiens. É escolha sua. Mas ninguém chamaria de homem seu 185 milésimo avô peixe. Seria bobagem, embora haja uma cadeia contínua que liga vocês, na qual cada elo é membro da mesma espécie que seus vizinhos.
Impresso em pedra
Como sabemos que aparência tiveram nossos ancestrais e quando eles viveram? Graças aos fósseis, principalmente. Todas as ilustrações de ancestrais nossos neste capítulo são reconstituições baseadas em fósseis, coloridas segundo uma comparação com animais modernos.
Fósseis são feitos de pedras que gravaram a forma de animais e plantas mortos. A grande maioria dos animais morre sem esperança de se tornar fóssil. O truque, se você quiser ser um, é ser enterrado no tipo certo de lama ou lodo, aquele que endurecerá formando rocha sedimentar.
O que isso significa? As rochas podem ser de três tipos: ígneas, sedimentares e metamórficas. Deixarei de lado as metamórficas, pois foram originalmente um dos dois outros tipos e se modificaram por pressão e/ou calor. As rochas ígneas (do latim ignis, “fogo”) já foram derretidas, como a lava quente que sai de vulcões em erupção, e se solidificaram em rocha dura depois de resfriadas. As rochas duras de qualquer tipo se desgastam (são erodidas) pelo vento ou pela água, formando rochas menores, pedregulhos, areia e pó. A areia e o pó ficam em suspensão na água, depois podem se assentar em camadas de sedimentos ou lama no fundo de um mar, rio ou lago. Muito tempo depois, os sedimentos podem endurecer formando camadas (estratos) de rocha sedimentar. Embora todos os estratos sejam inicialmente planos e horizontais, milhões de anos mais tarde, quando os vemos, muitos foram inclinados, revirados ou deformados (veja o capítulo 10 sobre terremotos).
Suponha que um animal morto seja arrastado para a lama, em um estuário, por exemplo. Se essa lama endurecer e se transformar em rocha sedimentar, o corpo do animal, ao se decompor, pode ir deixando sua forma afundada na rocha conforme ela endurece: a forma que um dia finalmente encontramos. Esse é um tipo de fóssil — uma espécie de “negativo” da imagem do animal. A forma que ficou impressa na depressão da rocha pode funcionar como um molde no qual novos sedimentos se depositam e mais tarde endurecem, formando uma réplica “positiva” dos contornos do corpo do animal. Esse é um segundo tipo de fóssil. Existe um terceiro tipo, no qual átomos e moléculas do corpo do animal são substituídos, um por um, por átomos e moléculas de minerais da água, que depois se cristalizam formando rocha. É o melhor tipo de fóssil, porque, com sorte, minúsculos detalhes do interior do corpo do animal são reproduzidos permanentemente, inclusive nas partes centrais do fóssil.
Podemos até determinar a idade dos fósseis medindo os isótopos radioativos nas rochas. (Veremos isótopos e átomos no capítulo 4.) Em poucas palavras, um isótopo radioativo é um tipo de átomo que se desintegra, formando outro tipo de átomo; por exemplo, urânio-238 se transforma em chumbo-206. Como sabemos quanto tempo isso leva para ocorrer, podemos conceber o isótopo como um relógio radioativo. Relógios radioativos são bem parecidos com os relógios de água ou de vela que eram usados antes da invenção dos de pêndulo. Um tanque com um orifício no fundo escoa água a uma taxa mensurável. Se você encher o tanque ao amanhecer, poderá saber quanto do dia já se passou medindo o nível da água. O mesmo se dá com o relógio de vela. A vela queima a uma taxa fixa, por isso podemos dizer quanto tempo se passou medindo quanto resta dela. No caso de um relógio de urânio-238, sabemos que é preciso 4,5 bilhões de anos para que metade do urânio-238 se desintegre e se torne chumbo-206. É a chamada “meia-vida” do urânio-238. Se medirmos quanto chumbo-206 existe em uma rocha e compararmos com a quantidade de urânio-238, podemos calcular quanto tempo passou desde quando não havia chumbo-206; ou seja, há quanto tempo o relógio estava “zerado”.
E quando o relógio está zerado? Isso acontece somente com rochas ígneas, no momento em que a rocha derretida se solidifica. Não funciona com rochas sedimentares. Elas não têm esse “momento zero”, o que é uma pena, pois os fósseis só são encontrados em rochas sedimentares. Por isso, temos de encontrar rochas ígneas próximas de camadas sedimentares e usá-las como relógio. Por exemplo, se um fóssil se encontra num sedimento que tem acima dele rochas ígneas de 120 milhões de anos e abaixo dele de 130 milhões de anos, sabemos que o fóssil tem entre 120 milhões e 130 milhões de anos. As datas que menciono neste capítulo foram calculadas assim. Portanto, são apenas aproximações, inexatas.
O urânio-238 não é o único isótopo radioativo que podemos usar como relógio. Existem muitos outros, com uma esplêndida variedade de meias-vidas. Por exemplo, o carbono-14 tem meia-vida de 5730 anos, sendo assim útil para os arqueólogos que investigam a história humana. Muitos relógios radioativos têm escalas de tempo que coincidem parcialmente, por isso podemos confrontar uns com os outros. E eles sempre mostram os mesmos resultados.
O relógio de carbono-14 funciona de modo diferente dos outros. Não depende de rochas ígneas e usa restos de corpos vivos, como madeira antiga. É um dos relógios radioativos mais rápidos de que dispomos, mas ainda assim 5730 anos é muito mais que o tempo que dura uma vida humana. Por isso, você poderia perguntar como sabemos qual é a meia-vida do carbono-14, sem falar na meia-vida do urânio-238, que é de 4,5 bilhões de anos! A resposta é fácil. Não precisamos esperar que metade dos átomos se desintegre. Podemos medir a taxa de desintegração de uma minúscula fração dos átomos e calcular a meia-vida (um quarto de vida, um centésimo de vida etc.) a partir disso.
Uma viagem ao passado
Façamos outro experimento mental. Chame alguns amigos e entrem numa máquina do tempo. Ligue a máquina e viaje 10 mil anos para o passado. Abra a porta e dê uma olhada nas pessoas que encontrar. Se por acaso você tiver ido parar na região que hoje é o Iraque, elas estarão inventando a agricultura. Mas, na maioria dos outros lugares, os humanos serão caçadores-coletores que não têm morada fixa e levam a vida se deslocando atrás de animais para caçar e de frutas silvestres, nozes e raízes para colher e extrair. Você não conseguirá entender o que os outros humanos dizem, e eles estarão vestidos de um jeito muito diferente (se é que estarão vestidos). Ainda assim, se você der a eles roupas atuais e um corte de cabelo na moda no nosso século, esses humanos serão indistinguíveis dos humanos dos dias de hoje (as diferenças não serão maiores do que as que vemos atualmente entre as pessoas). Eles também serão totalmente capazes de procriar com as pessoas que viajaram com você a bordo da máquina do tempo.
Agora pegue um voluntário entre essas pessoas do passado (talvez seu 400º avô, pois esse é aproximadamente o tempo em que ele deve ter vivido) e prossiga viagem com ele na máquina do tempo, voltando mais 10 mil anos. Você está agora 20 mil anos no passado, onde terá a chance de encontrar seus 800- avós. Agora os humanos que verá serão todos caçadores-coletores, mas ainda terão o corpo igual ao dos humanos da atualidade e serão capazes de cruzar com pessoas modernas e ter filhos férteis. Ponha uma dessas pessoas na máquina do tempo e avance mais 10 mil anos no passado. Continue a fazer paradas a cada 10 mil anos, pegando um novo passageiro e transportando-o para o passado.
Depois de muitas paradas de 10 mil anos, talvez quando tiver voltado 1 milhão de anos, você notará que os indivíduos que encontra ao sair da máquina do tempo são indiscutivelmente diferentes de nós e não podem produzir filhos com as pessoas que iniciaram a jornada com você, mas podem fazê-lo com aqueles que embarcaram nas últimas paradas, quase tão antigos quanto eles.
Como eu disse, as mudanças graduais são imperceptíveis, tal qual o movimento do ponteiro das horas no relógio. Só que agora recorro a esse outro experimento mental. Vale explicar de dois modos distintos, pois essa questão é muito importante e, no entanto, compreensivelmente, algumas pessoas têm grande dificuldade em entendê-la.
Retomemos nossa viagem ao passado e vejamos algumas das estações no caminho para aquele simpático peixe. Suponha que chegamos, em nossa máquina do tempo, à estação 6 Milhões de Anos Atrás. O que encontraremos lá? Enquanto permanecermos na África, veremos nossos 250 milésimos avós (talvez algumas gerações a mais ou a menos). Eles são grandes primatas, e talvez se pareçam um pouco com chimpanzés. Mas não são chimpanzés. São os ancestrais que temos em comum com os chimpanzés. Serão diferentes demais de nós para se acasalar conosco e procriar, e diferentes demais dos chimpanzés para fazer o mesmo com eles. Mas serão capazes de ter filhos com os passageiros que pegamos na estação 5,99 Milhões de Anos Atrás. E provavelmente também com os da estação 5,9 Milhões de Anos Atrás. Mas provavelmente não com os que subiram a bordo na estação 4 Milhões de Anos Atrás.
Reiniciemos nossas paradas de 10 mil anos, voltando no passado até a estação 25 Milhões de Anos Atrás. Lá encontraremos os seus (e meus) 1,5 milionésimo avós — numa estimativa aproximada. Eles não serão grandes primatas, pois terão cauda. Poderiamos chamá-los de macacos se os víssemos hoje, embora não sejam parentes mais próximos dos macacos modernos do que de nós. Apesar de muito diferentes de nós e de serem incapazes de gerar filhos conosco ou com macacos da atualidade, eles poderão ter filhos sem problema nenhum com os passageiros quase idênticos que subiram a bordo na estação 24,99 Milhões de Anos Atrás. A mudança é muito, muito gradual por todo o caminho.
E lá vamos nós, voltando, voltando, 10 mil anos por vez, sem encontrar mudanças notáveis a cada escala. Paremos para ver quem vem ao nosso encontro na estação 73 Milhões de Anos Atrás. Aqui podemos apertar a mão (ou pata?) dos nossos 7 milionésimos avós. Eles se parecem com lêmures ou gálagos e são, como seria de esperar, os ancestrais de todos os lêmures e gálagos modernos. Mas também são os ancestrais de todos os macacos e grandes primatas modernos, inclusive o homem.
O grau de parentesco deles com os humanos modernos é o mesmo que têm com os macacos modernos, e não é mais próximo dos lêmures ou gálagos modernos. Eles não seriam capazes de ter ilhos com nenhum animal hoje. Mas provavelmente poderiam ter filhos com os passageiros que pegamos na estação 62,99 Milhões de Anos Atrás. Vamos lhes dar as boas-vindas a bordo da máquina do tempo e seguir viagem para o passado.
Na estação 105 Milhões de Anos Atrás, encontraremos nosso 45 milionésimo avô. Ele também é o mais antigo ancestral de todos os mamíferos modernos exceto os marsupiais (hoje encontrados principalmente na Austrália e alguns na América) e os monotremados (ornitorrincos e equidnas, vistos hoje apenas na Austrália e na Nova Guiné). A ilustração mostra-o com sua comida favorita na boca, um inseto. Ele tem parentesco no mesmo grau com todos os mamíferos modernos, apesar de ser mais parecido com alguns do que com outros.
A estação 310 Milhões de Anos Atrás nos mostra nosso 170 milionésimo avô. Ele é o mais antigo ancestral de todos os mamíferos modernos, de todos os répteis modernos (cobras, lagartos, tartarugas, crocodilos) e de todos os dinossauros (e das aves, pois as aves evoluíram de dinossauros). Esse nosso ancestral tem o mesmo grau de parentesco com todos os animais atuais, apesar de se parecer mais com o lagarto. O que isso significa é que desde essa época os lagartos Na estação 105 Milhões de Anos Atrás, mudaram menos do que, digamos, os mamíferos. Agora que ja somos viajantes experientes, não parecerá longe seguir viagem até en-contrar aquele peixe que mencio-nei no início. Vamos fa-zer so mais uma parada antes: na estação 340 Milhões de Anos Atrás, onde veremos nosso 175 milionésimo avô. Ele se parece um pouco com uma salamandra, e é o mais antigo ancestral de todos os anfíbios modernos (salamandras e rãs) assim como de todos os demais vertebrados terrestres.
E seguimos então para a estação 417 Milhões de Anos Atrás, encontrando nosso 185 milionésimo avô, o peixe. Poderiamos continuar retrocedendo no tempo, encontrando ancestrais cada vez mais distantes, entre eles vários peixes com mandíbula, depois peixes sem mandíbula, depois... bem, aí nossos conhecimentos se tornam nebulosos, incertos, pois desses tempos antiquíssimos começam a nos faltar fósseis.
DNA mostra: somos todos primos
Apesar de não termos fósseis para nos dizer exatamente como eram nossos ancestrais mais remotos, não temos dúvida de que todos os seres vivos são nossos parentes e parentes uns dos outros. Também sabemos quais animais modernos são parentes próximos uns dos outros (como o homem e o chimpanzé, o rato e o camundongo) e quais são parentes distantes (como o homem e o cuco, o camundongo e o jacaré). E como sabemos isso? Fazendo uma comparação sistemática entre eles. Atualmente, as evidências mais convincentes provêm da comparação do DNA dos animais.
DNA é a informação genética que todos os seres vivos possuem em cada uma de suas células. O DNA é soletrado ao longo de fitas de dados densamente espiraladas chamadas ciomossomos. Eles são muito parecidos com aquelas fitas de dados que eram inseridas nos computadores mais antigos, porque a informação que contêm é digital e se distribui de forma ordenada ao longo deles. São longas cadeias de letras codificadas que podemos contar: cada letra está ou não lá; não há meio-termo. É isso que faz o DNA ser digital, e é por isso que digo que o DNA é soletrado.
Todos os genes, em cada animal, planta e bactéria que já foi examinado, são mensagens codificadas, escritas em um alfabeto que vale para todos os seres, com instruções sobre como formar essa criatura. Esse alfabeto contém apenas quatro letras (em contraste com as 26 do alfabeto português), e as representamos como A, T, C e G. Os genes aparecem em muitos seres distintos, com algumas diferenças reveladoras. Por exemplo, existe um gene chamado FoxP2 que aparece em todos os mamíferos e em muitos outros seres. O gene é uma cadeia de mais de 2 mil letras. Podemos ver que o FoxP2 é o mesmo gene em todos os mamíferos porque a imensa maioria das letras codificadas coincide, e isso vale para toda a extensão do gene, e não só para esse trecho de 80 letras. Nem todas as letras do chimpanzé são as mesmas que as nossas, e com os camundongos temos ainda menos letras em comum. As diferenças estão destacadas em vermelho. Do total de 2076 letras no FoxP2, o chimpanzé possui nove diferentes das nossas, enquanto o camundongo tem 139. E esse padrão vale também para outros genes. Isso explica por que os chimpanzés são bem parecidos conosco, e os camundongos, menos.
Os chimpanzés são nossos parentes próximos; os camundongos também são nossos parentes, só que mais distantes. Isso significa que o ancestral mais recente que temos em comum viveu muito tempo atrás. Os macacos são mais próximos de nós que os camundongos, porém mais distantes que os chimpanzés. Os babuínos e os resos são macacos, parentes próximos uns dos outros, com genes FoxP2 quase idênticos. Seu parentesco com os chimpanzés é exatamente do mesmo grau que seu parentesco conosco; e o número de letras do DNA no FoxP2 que separam os babuínos dos chimpanzés é quase o mesmo (24) que o número de letras que separam os babuínos de nós (23). Tudo se encaixa.
As rãs são parentes muito mais distantes dos mamíferos. Todos os mamíferos têm aproximadamente a mesma diferença no número de letras em relação a uma rã, pela simples razão de que o grau de parentesco entre eles é exatamente igual: todos os mamíferos têm um ancestral em comum entre si (de aproximadamente 180 milhões de anos atrás) que é mais recente do que o ancestral que têm em comum com as rãs (de aproximadamente 340 milhões de anos atrás).
É claro que os humanos não são todos idênticos, nem os babuínos e os camundongos. Poderiamos comparar os genes do leitor com os meus, letra por letra. O resultado? Teríamos mais letras em comum que qualquer um de nós dois teria com um chimpanzé. Mas ainda assim encontraría-mos letras diferentes. Não muitas, e não há razão para destacar o gene FoxP2. Mas, se você contar o número de letras que todos os humanos têm em comum nos nossos genes, seria mais do que qualquer um de nós tem em comum com um chimpanzé. E você tem mais letras em comum com seu primo do que comigo. E ainda mais letras em comum com sua mãe, seu pai, sua irmã ou seu irmão. A propósito, podemos deduzir o grau de parentesco entre duas pessoas contando o número de letras de d n a que elas têm em comum. É interessante fazer essa contagem, e esse provavelmente é um assunto de que ouviremos falar mais no futuro. Por exemplo, a polícia será capaz de identificar uma pessoa com base na “impressão digital” do d n a do irmão dela.
Alguns genes são os mesmos (com diferenças insignificantes) em todos os mamíferos. Contar o número de letras diferentes nesses genes ajuda a determinar o grau de parentesco entre diferentes espécies de mamíferos. Outros são úteis para determinar parentescos mais distantes, como entre vertebrados e vermes. Outros ainda nos ajudam a determinar parentescos dentro de uma mesma espécie — digamos, se você e eu somos parentes muito ou pouco próximos. Se por acaso você for inglês, nosso ancestral comum mais recente provavelmente viveu apenas alguns séculos atrás. Se você for um nativo tasmaniano ou americano, teríamos de voltar algumas dezenas de milhares de anos para encontrar um ancestral em comum. Se você for da tribo Kung San do deserto do Kalahari, talvez tenhamos de retroceder ainda mais.
Um fato que vai além de qualquer dúvida: temos um ancestral em comum com cada uma das espécies de animais e plantas do planeta. Sabemos disso porque alguns genes são reconhecivelmente os mesmos em todos os seres vivos, sejam eles animais, plantas ou bactérias. Acima de tudo, o próprio código genético — o dicionário com base no qual todos os genes são traduzidos — é o mesmo em todos os seres vivos que já examinamos. Somos todos parentes. Nossa árvore filogenética inclui primos óbvios como chimpanzés e macacos, mas também camundongos, búfalos, iguanas, cangurus, lesmas, dentes-de-leão, águias, cogumelos, baleias, vombates e bactérias. Todos são nossos parentes. Sem exceção. Isso não é muito mais incrível que qualquer mito? E o mais incrível de tudo é que temos certeza de que é verdade.
(Dawkins, Richard - A magia da realidade : como sabemos o que é verdade)