É curioso: quando se fala em tentações, por princípio, o que vem logo à ideia é a tentação da carne, isto é, a tentação da sexualidade...
Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder, com o domínio.
Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler: enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e coisificada.
A grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso explique até por que é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas pareceu inclusivamente, a um dado momento, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o medo de que o prazer subvertesse o poder...
Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, (...) instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder".
A tentação do poder nas igrejas é tanto mais perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino. A Inquisição, que pode sempre continuar sob formas subtis, deriva da pretensão de dominar o Mistério. Quem julga deter o saber todo sobre Deus faz-se fatalmente inquisidor, no dia em que tenha do seu lado o poder político. (Diga-se, entre parêntesis, que foi também isso que aconteceu com os regimes comunistas, por exemplo: pensavam deter a ciência da história e controlavam completamente o poder político.) O pretenso saber total torna-se poder totalitário.
A novidade do Deus cristão é que ele renuncia ao poder. Se Deus viesse em majestade, os seres humanos ficaríamos arrasados, não poderia haver lugar para nós, o nosso destino só poderia ser a escravidão. Deus, porém, esvaziou-se de si mesmo, como diz S. Paulo, e fez-nos livres, para estabelecer connosco uma aliança. Com todas as consequências...
Isto significa que, se Deus não dispõe de nós, muito menos nós podemos dispor de Deus. Deus é Mistério indisponível. Quem julga dispor de Deus, seja de que modo for, não esquece apenas que a fé termina no Mistério e não nas fórmulas do dogma e que de Deus só sabemos o que ele não é. Corre sobretudo o risco de, com toda a desfaçatez, dispor dos homens e das mulheres... De facto, quem julga dispor de Deus por que é que não há-de dispor dos homens e das mulheres?
(Anselmo Borges - Janelas do (In)Visível)