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Os deuses do vinho

por Thynus, em 01.04.16
Nascido no ano de 146 em Leptis Magna, colônia romana da África do Norte situada no atual Uádi Lebda, na Líbia, o imperador Septímio Severo casa-se com uma mulher de origem síria. Depois de garantir seu poder em Roma pelo terror e de combater os partas, seu reinado (de 193 a 211) é dedicado a favorecer os cultos orientais. A deusa egípcia Ísis se torna, em torno do Mediterrâneo e para além dele, mãe dos deuses e do universo. São encontrados templos de Ísis em Atenas, Pompeia, Paris e até mesmo Londres. Osíris, seu irmão-esposo, ressuscitará dos mortos para ser identificado a Dionísio e, por fim, tomar as feições do deus Baco.
Dionísio (Baco), deus do vinho
 Ísis era a mais poderosa das deusas do Antigo Egito. É provável que seu nome signifique trono ou assento. Ísis foi adorada em todo o Império Romano, onde era representada com o adorno da deusa Hathor – chifres de vaca em forma de lira envolvendo um disco solar –, com quem a divindade suprema se confundiu.
O culto a Ísis na Gália está na origem de uma lenda segundo a qual a cidade de Paris teria recebido seu nome de um jogo de palavras: “Par-Ísis” (por Ísis). Historicamente, está provado que a tribo celta dos parisii, vinda do além-Reno no século III antes da era cristã, se instalou numa ilha do Sena e deu com isso nome à futura capital francesa. Por outro lado, é certo que o emblema da cidade de Paris e sua divisa (fluctuat nec mergitur: ele – o navio parisiense – é sacudido pelas ondas, mas não afunda) lembram as viagens de Ísis em busca de seu marido e irmão Osíris.(Alguns autores, no entanto, veem a origem histórica do navio emblemático no brasão utilizado desde o século XIII pelos “mercadores da água” de Paris, descendentes dos navegadores de Lutécia.) Já a basílica de Saint Germain des Prés e as catedrais de Notre Dame de Paris e de Chartres foram construídas no local de templos dedicados a Ísis. A grande deusa também apresenta muitos traços em comum com a Virgem Maria: Ísis dando o seio a seu filho Horus prefigura a “Virgem e o menino”, e está na origem direta da tradição popular das virgens negras na Europa. A França conta com cerca de trezentas madonas de pele escura – por exemplo, Nossa Senhora de Puy, na origem uma estátua de Ísis, ou “Nossa Senhora abaixo da Terra”, na catedral de Chartres –, a Espanha abriga aproximadamente cinquenta, dezenove estão na Alemanha, trinta na Itália e outras mais são veneradas em diversos países europeus, a Polônia em particular – Nossa Senhora de Czestochowa é a representação mais conhecida.
Depois da campanha do Egito de Napoleão Bonaparte, de 1798 a 1801, e da decodificação dos hieróglifos, realizada em 1824 pelo orientalista francês Jean-François Champollion, a França intelectual é tomada pela “egiptomania”. A franco-maçonaria incorporaria essa moda e retomaria os mistérios de Ísis em sua tradição esotérica. O mito de Ísis partindo em busca de seu irmão amado e esposo Osíris, perdido nas águas do Nilo, retalhado em quatorze pedaços para por fim voltar a ser recomposto antes de ressuscitar, inspira grande número de escritos iniciáticos.(“Iniciação” vem da palavra initium em latim, isto é, início. Iniciar um homem significa, no sentido místico, desencadear nele uma espécie de marcha inicial, ponto de partida de um itinerário interior)
A franco-maçonaria, herdeira direta das antigas fraternidades iniciáticas, ensinava ao iniciado a história de Osíris, deus do mundo subterrâneo, seu despedaçamento, sua reconstituição por Ísis, e as danças simbólicas dos iniciadores revelavam os mistérios que a palavra era incapaz de traduzir.(Papus (ou também Gérard Encausse). Ce qui doit savoir un maître maçon. Paris: Librairie générale et internationale Gustave Ficker, 1910. p. 70) Sempre se atribuiu aos deuses mortais o poder não apenas de ressuscitar, mas de garantir a imortalidade a seus seguidores. “Eu sou a ressurreição e a vida” eram palavras ouvidas no ritual do deus redentor egípcio, bem como nos funerais dos faraós. As palavras mágicas pronunciadas durante a celebração do culto a Osíris talvez tenham contribuído para o sucesso religioso do cristianismo.
A ópera A flauta mágica, escrita por Mozart em 1791, também é uma iniciação aos mistérios de Ísis. Em sua obra, o compositor austríaco põe em evidência a busca da unidade perdida e as provações que levam ao conhecimento.
Esse caráter iniciático está muito presente na Grécia na cidade de Elêusis, a noroeste de Atenas, onde eram celebradas as grandes cerimônias em louvor a Deméter, deusa do trigo. Nas civilizações antigas, essencialmente agrárias, o ciclo do grão de trigo era visto como o símbolo do destino do homem.
Para o grego antigo, nada havia de mais misterioso do que a terra como celeiro da humanidade e, ao mesmo tempo, túmulo natural dos homens. As divindades que a habitavam deveriam conhecer o segredo da vida. É por isso que os homens livres e os escravos, cidadãos gregos e bárbaros(O termo “bárbaro” hoje em dia é injurioso. Para os gregos, bárbaro significava simplesmente “estrangeiro”), compareciam na primavera e no outono ao santuário de Elêusis para obter a revelação desses mistérios. Os candidatos à iniciação usavam um baco, espécie de bastão formado por varetas reunidas num feixe e presas por anéis de folhagem, que não deixava de lembrar o tirso de Dionísio. Uma das cerimônias dos mistérios de Elêusis ilustra bem a simbologia do trigo: na cena do epoptismo, o participante contempla em silêncio um grão de trigo. Através do trigo, louvava-se a Deméter e ao destino paralelo da alma e do grão, “submetidos à mesma permanência nas trevas antes de aceder à luz”.(LACARRIÈRE, J. En suivant les dieux. Paris: Philippe Lebaud, 1984. p. 186) O epoptismo é muitas vezes comparado à evocação do deus morto e ressuscitado que caracterizava os cultos dos mistérios de Osíris e de Dionísio. A iniciação, em todas as épocas, sempre quis atingir o mesmo objetivo: o de instruir o homem e, com isso, tornar o Destino impotente em seus ataques. Encontramos o deus do vinho sob os traços do Liber Pater, uma velha divindade rústica da Itália central. Tomando seu nome lídio Bakkos e também o termo pelo qual os romanos designavam a uva (baca), Liber Pater presidia a cultura da vinha e a fertilidade dos campos. O deus itálico não possuía uma mitologia própria e foi por isso assimilado a Baco, enquanto sua consorte, Líbera, foi identificada a Ceres, deusa do trigo. Essa mutação é patente naquilo que se chamou “o escândalo dos bacanais” e que Tito Lívio (v. 64 ou v. 59 – v. 10) relata com detalhes em sua História de Roma (Ab urbe condita), texto que vai da fundação da cidade, em 753 a.C., ao ano IX a.C.
Os bacanais ou mênades (do grego, “louca”) eram festas noturnas nas quais mulheres, levadas pela exaltação e pelo delírio místico, se entregavam ao excesso e aos desregramentos sexuais, em cenas orgíacas que excitaram a imaginação dos artistas (especialmente os gregos, como Eurípides na tragédia As bacantes e o escultor Escopas, que em sua Mênade petrifica uma dessas possuídas), e não deixaram de evocar as descrições da histeria feitas, em 1880, pelo médico francês Jean Martin Charcot.
Depois de um discurso virulento de Catão, censor incansável do luxo e da luxúria em Roma, bem como do testemunho acusador do jovem romano Aebutius e de sua amante Hispala, o cônsul Postumius convocou uma reunião extraordinária do Senado no ano 186 a.C. No final da sessão, um senatus consulto (De Bacchanalibus) proibiu, tanto em Roma como no resto da Itália, a celebração dos bacanais “como atentados à segurança do Estado e contrários à moral e à religião”. O texto senatorial, que foi encontrado na Calábria gravado numa placa de bronze, também prescreve “que nenhum homem frequente as bacantes”. A ordem romana cai com força sobre os “conjurados” (a repressão teria feito milhares de vítimas). Os bacanais renascerão, no entanto, na época do Império com o nome de Liberalia.
Como as orgias, foram por muito tempo desacreditados, apesar de os dois termos designarem, na origem, cerimônias religiosas lícitas.
A bebida dos deuses inspirará de maneira marcante a arte funerária dos cristãos. Cenas dionisíacas em que o deus pagão é substituído pelo Bom Pastor enfeitam os primeiros sarcófagos cristãos. O uso de temas do deus do vinho mostra que a bebida também era considerada um símbolo de imortalidade: o vinho dos cristãos é, em essência, uma bebida mística.

(Jean-François Gautier - Vinho)

publicado às 15:33



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