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Ele a admira. Ela é a musa que o inspira a uma criatividade
jamais conhecida. Certo dia, porém, ele descobre que a
perdeu. O amor dela desapareceu tal como Eurídice no reino
dos mortos. Ele faz de tudo para reconquistá-la. Mas alguma
coisa sai errado, alguma coisa lhe passa despercebida,
pois, no momento decisivo, ela volta a escapar-lhe – e agora
para sempre. Ele é um homem talentoso, talvez até famoso.
No entanto, no amor, de alguma maneira é inábil,
visto que algo semelhante já lhe ocorreu várias vezes. Por
que será? Talvez com Orfeu a resposta fique mais clara.

Na Antiguidade, os cultos órficos eram uma orientação religiosa que tinha sua origem no poeta Orfeu. Atualmente, Orfeu é menos o fundador de um culto em nossa memória do que parte de um casal especialmente trágico: Orfeu, o poeta mítico, que encantava pessoas, animais e plantas com seu canto, e Eurídice, sua esposa, que lhe foi arrancada pela morte e que ele – graças a seu canto – tentou trazer de volta à vida, perdendo-a no último instante. Com a leitura de antigas lendas heroicas ou com as óperas de Ch. W. Gluck e C. Monteverdi, hoje ainda encenadas, os leitores podem conhecer o desenrolar do trágico acontecimento. Não obstante, segue um breve resumo:

      
         A história de Orfeu e Eurídice

         Orfeu, filho de um rei da Trácia e da musa Calíope, é o poeta e músico mais conhecido das lendas gregas. Seu canto domava animais selvagens e encantava até mesmo as árvores e as rochas. Ao fugir de um homem que queria violentá-la, sua esposa, Eurídice, foi mordida por uma cobra e morreu. Sem suportar a perda, o audacioso Orfeu desceu ao reino dos mortos para buscá-la. Todos que encontrava pelo caminho ficavam tocados com a música de sua lira e com seu canto. Ele conseguiu sensibilizar até mesmo o furioso Hades e fazer com que ele deixasse Eurídice voltar ao mundo dos vivos. Hades lhe impôs uma única condição: Orfeu não podia olhar para trás até ambos estarem seguros à luz do sol. Eurídice seguiu Orfeu pelo caminho escuro, conduzida pelos sons de sua lira. Ao alcançar a luz do sol, Orfeu se virou para ela – e a perdeu para sempre.(1)

O mito de Eurydice e Orfeu fala sobre a força do tempo, do momento oportuno para nos conscientizarmos
 
 Alguma coisa não está certa
       O sofrimento de nosso herói mítico pode ser compreendido por todos e desperta espontaneamente nossa compaixão por ele. Contudo, sempre que encontrei essa história na literatura ou na música, embora eu tenha sentido sua tragicidade, também tive a impressão de que se trata não apenas de um acaso cruel ou de um jogo cínico que os deuses praticam com os mortais para dar-lhes esse fim. Orfeu e Eurídice se amam profundamente. No entanto, parece-me que alguma coisa em seu relacionamento não confere. A pergunta que sempre me surgia era a seguinte: Por que diabos esse Orfeu “tinha” de se virar na saída do Hades, quando estava tão perto do final feliz, e estragar tudo?

       Uma amiga me fez notar um poema de R. M. Rilke, no qual ele reconta essa história a seu modo. Quanto mais me dedico à análise desse poema, tanto mais acredito que Rilke exprime com precisão, por meio de sua linguagem insuperável, embora nem sempre de fácil compreensão, o problema desse relacionamento. Desse modo, ao que parece, quando Orfeu desobedece à condição e olha para trás, pondo com isso tudo a perder, já não se trata absolutamente de ser dominado pelo amor puro. Visto dessa óptica, para mim o casal se torna o modelo de uma constelação de conflitos, que ainda hoje pode ser encontrada com frequência e com a qual podemos aprender muitas coisas. Nem todas as passagens do poema são facilmente compreensíveis. Não obstante, eu gostaria de pedir que os leitores fizessem um esforço para lê-lo integralmente. Quem sentir dificuldade, poderá saltá-lo e voltar a ele no fim do capítulo.


Orfeu. Eurídice. Hermes      

       Eram as minas ásperas das almas.

       Como veios de prata caminhavam

       silentes pela treva. Das raízes

       brotava o sangue que parece aos vivos,

       na treva, duro como pórfiro. Depois

       nada mais foi vermelho.


       Somente rochas,

       bosques imateriais. Pontes sobre o vazio

       e o lago imenso, cinza, cego,

       que sobre o fundo jaz, distante, como

       um céu de chuva sobre uma paisagem.

       Por entre os prados, suave, em plena calma,

       deitado, como longa veia branca,

       via-se o risco pálido da estrada.

       
       Desta única via vinham eles.

       À frente o homem com o manto azul,

       esguio, olhar em alvo, mudo, inquieto.

       Sem mastigar, seu passo devorava a estrada

       em grandes tragos; suas mãos pendiam

       rígidas, graves, das dobras das vestes

       e não sabiam mais da leve lira

       que brotava do lado esquerdo como um feixe

       de rosas dentre ramos de oliveira.

       
       Seus sentidos estavam em discórdia:

       o olhar corria adiante como um cão,

       voltava, presto, e logo andava longe,

       parando, alerta, na primeira curva,

       mas o ouvido estacava como um faro.

       Às vezes parecia-lhe sentir

       a lenta caminhada dos dois outros 

       que o acompanhavam pela mesma senda.

       Mas só restava o eco dos seus passos

       a subir e do vento no seu manto.

       A si mesmo dizia que eles vinham.

       Gritava, ouvindo a voz esmorecer.

       Eles vinham, os dois, vinham atrás,

       em tardo caminhar. Se ele pudesse

       voltar-se uma só vez (se contemplá-los

       não fosse o fim de todo o empreendimento

       nunca antes intentado) então veria

       as duas sombras a seguir, silentes:

       

       o deus das longas rotas e mensagens,

       o capacete sobre os olhos claros,

       o fino caduceu diante do corpo,

       um palpitar de asas junto aos pés,

       e, confiada à mão esquerda: ela.

       A mais amada, essa por quem a lira

       chorou mais que o chorar das carpideiras,

       por quem se ergueu um mundo de chorar,

       um mundo com florestas e com vales,

       estradas, povos, campos, rios, feras;

       um mundo-pranto tendo como o outro

       um sol e um céu calado com seus astros,

       um céu-pranto com estrelas desconformes –

       a mais amada.

       

       Ia guiada pela mão do deus,

       o andar tolhido pelas longas vestes,

       incerto, tímido, sem pressa.

       Ia dentro de si, como esperança,

       e não pensava no homem que ia à frente,

       nem no caminho que subia aos vivos.

       Ia dentro de si. E o dom da morte 


       dava-lhe plenitude.

       Como um fruto em doçura e escuridão,

       estava plena em sua grande morte,

       tão nova que não tinha entendimento.

       

       Entrara em uma nova adolescência

       inviolada. Seu sexo se fechava

       como flor em botão no entardecer

       e suas mãos estavam tão distantes

       de enlaçar o outro ser que mesmo o toque

       levíssimo do guia, o deus ligeiro,

       a magoava por nímia intimidade.

       

       Não era mais a jovem resplendente

       que ecoava nos cantos do poeta,

       nem o aroma do leito do casal

       nem ilha e propriedade de um só homem.

       Estava solta como os seus cabelos,

       liberta como a chuva quando cai,

       exposta como farta provisão.

      

       Agora era raiz.

       

       E quando enfim o deus

       a deteve e, com voz cheia de dor,

       disse as palavras: “Ele se voltou” –

       ela não compreendeu e disse: “Quem?”

       

        Mas pouco além, sombrio, frente à clara

       saída, se postava alguém, o rosto

       já não reconhecível. Esse viu

       em meio ao risco branco do caminho

       o deus das rotas, com olhar tristonho,

       volver-se, mudo, e acompanhar o vulto


       que retornava pela mesma via,

       o andar tolhido pelas longas vestes,

       incerto, tímido, sem pressa.(2)



Duas pessoas que se tornaram estranhas uma para a outra
       Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de que, na versão poética que Rilke fez da história, além de Orfeu e Eurídice, o deus Hermes também desempenha um papel, que é o de conduzir Eurídice pela mão ao longo do caminho que leva para fora do reino dos mortos. Possivelmente, Rilke quer marcar com clareza uma importante diferença entre esse deus e Orfeu, pois seu Hermes comporta-se de maneira bastante reservada e cautelosa com Eurídice (“toque levíssimo do guia”), e essa delicadeza cuidadosa está em forte oposição à impaciência e à agitação interna de Orfeu. É como se dois mundos, que nada mais têm em comum, fossem se encontrar e, por isso, a união de um com o outro não pode dar certo.

       De Orfeu, o poema diz que ele está “inquieto” e tem o “olhar em alvo”; que seu passo “devorava a estrada em grandes tragos”; que suas mãos “não sabiam mais” da lira, seu instrumento musical; que seus sentidos estavam “em discórdia”. Nesse “ruído interno”, ele já não consegue distinguir se o que ouve atrás de si são os passos de Eurídice e de Hermes ou se é apenas o eco de seus próprios passos. Em contrapartida, Eurídice, inteiramente “dentro de si”, tem o andar “incerto, tímido e sem pressa”. Envolto por um grande silêncio, seu andar ainda é “tolhido pelas longas vestes”. Ela entra “em uma nova adolescência inviolada”, como se nunca tivesse sido casada com Orfeu. Está tão recolhida dentro de si que até o toque infinitamente cuidadoso de Hermes já lhe parece quase íntimo demais.

       Tal como Rilke a apresenta, tem-se a impressão de que Eurídice – após seu casamento com Orfeu – passa a viver em um novo modo de existência: em uma “nova adolescência”. Por conseguinte, poderíamos entender sua morte também de maneira simbólica: como passagem de uma fase da vida antiga para essa nova. “E o dom da morte dava-lhe plenitude. Como um fruto em doçura e escuridão, estava plena em sua grande morte, tão nova que não tinha entendimento.” Sem compreender direito, ela entrou em uma nova fase de desenvolvimento. Nessa nova fase, surge um forte estranhamento em relação a Orfeu: ela já não é a “jovem resplendente”, anteriormente cantada pelo poeta, e, acima de tudo, já não é “ilha e propriedade de um só homem”! Será então que antes ela se via como sua propriedade e assim permitiu que fosse vista? E será que o termo “morta”, em referência a Eurídice, significa que, para ela, aquele tempo em que ele a cantava como seu ideal de mulher e a possuía como “sua propriedade” finalmente acabara? Alguma coisa acontecera na vida dela para que tenha se desvencilhado de Orfeu e até mesmo adquirido uma distância enorme em relação a ele, que, insistente e impacientemente, a quer de volta.

       Um modelo narcisista de relacionamento

       Aqui me ocorrem muitos casais que tiveram um desenvolvimento muito parecido com esse modelo. O rapaz fez de tudo para conquistar a mulher, transformando-se em um verdadeiro Orfeu para ela, a qual lhe inspirou uma incrível capacidade de expressão e o deixou radiante. Além disso, ela própria aproveitou e desfrutou desse esplendor de ser tão adorada. Por isso, disse “sim”. Contudo, ao mesmo tempo, não percebeu que o homem-Orfeu não estava pensando exatamente nela. Por uma profunda necessidade própria, ele precisava dela para si mesmo. Por isso ornou-se com ela, “incorporou” sua beleza e seu modo amável de ser para se valorizar, transformou-a “em sua propriedade”. Ela tinha de estar integralmente disponível para ele: tinha de corresponder a seu ideal (“a jovem resplendente”), ser seu refúgio (“o aroma do leito do casal”). Ela não se esforçou muito para ser assim e corresponder a esse ideal, e, se não deu certo – pensou –, foi porque não se dedicou o suficiente.

       Do ponto de vista psicológico, trata-se aqui de um modelo “narcisista” de relacionamento, a saber, aquele em que o homem ocupa uma posição narcisista, e a mulher, uma posição que o complementa. Isso significa que o homem tem problemas para ver e respeitar a mulher realmente como um oposto. Ele a vê, antes, como parte de seu próprio eu. Vê nela seu “eu ideal”, com o qual quer se unir e se tornar um único ser. Quando crianças, esses homens foram emocionalmente explorados pelos pais, ou – no jargão especializado – “ocupados de maneira narcisista”. Deviam representar o self ideal da mãe e/ou do pai, no qual estes viam seus desejos e suas esperanças personificados. Não se sentiram valorizados nem amados naquilo que eles próprios eram. Externamente, muitas vezes de fato se desenvolveram até se transformarem nessas pessoas “ideais” que os pais queriam ver neles, tornando-se especialistas brilhantes, artistas e heróis, verdadeiros “Orfeus” de sua espécie. No entanto, internamente, sentem-se pobres e carentes, pois nunca puderam ser eles próprios de verdade, mas sempre tiveram de desempenhar um papel para os pais. Por isso, “ocupam”, por sua vez, sua parceira de maneira “narcisista”. Ou seja, recuperam o “brilho” que internamente lhes falta, por exemplo, na beleza da “jovem resplendente”, com a qual, por meio da fusão, querem tornar seu eu belo e digno de ser amado. Isso significa que eles relacionam a parceira a si mesmos, mas não se relacionam com ela. Não são capazes de se entregar com amor ao outro, mas buscam no amor sempre a salvação de seu eu por meio do outro.

       De modo geral, as parceiras escolhidas por eles são mulheres que aprenderam em sua família de origem a sempre se adaptar bem, a ser filhas carinhosas e brilhantes para seus pais e a dar pouca atenção a si mesmas e à sua necessidade de independência. Repetem, então, o mesmo padrão com seu parceiro. No período da paixão, tudo corre bem, porque se sentem muito importantes para o outro. Porém, com o passar do tempo, percebem que o foco da atenção nunca está nelas, mas sempre “nele”, em todas as circunstâncias. Sentem-se cada vez mais exploradas, expropriadas, e percebem então que têm de se distanciar para não se perderem por completo. Essa “percepção” altera a situação. De repente, têm um estalo e tudo lhes aparece sob outra luz: é a “morte” de Eurídice, a entrada em seu “reino dos mortos”. A mulher já não quer ser apenas “bela” para ele; ela “morre” como a parceira idealizada, que se dedica totalmente a “ele”, e busca outra forma de viver, mesmo que ainda se sinta “insegura” e que ainda não tenha “entendido” direito o que aconteceu.


A crise

       No mito, isso se dá por meio de um evento radical. Não no poema, mas na tradição mítica, relata-se que alguém teria tentado violentar Eurídice. Na fuga, ela pisa em uma cobra e morre por causa de seu veneno. Traduzido na vida real: Teria ela reconhecido subitamente a opressão que estava sofrendo nesse relacionamento? Teria a mordida da cobra sido fatal a ponto de ela reconhecer que já não pode continuar vivendo dessa forma?

       Em todo caso, em situações de relacionamento como as descritas, é comum que a mulher – independentemente dos acontecimentos externos ou das evoluções internas por que passe – reconheça que o modo como ela vivia até então não é mais possível. A parceira que ela fora até aquele momento está morta, por assim dizer. Então ela se retira do relacionamento e vai para o “reino dos mortos”. De repente, já não consegue dormir com ele, fecha-se “como flor em botão no entardecer”, torna-se “inviolada”, como “em uma nova adolescência”, e volta-se inteiramente para dentro de si. Uma fase de individuação, de desenvolvimento da autonomia se estabelece, precipitando o relacionamento do casal em uma profunda crise e subvertendo-o por completo. Concretamente, isso significa que, nesse momento do desenvolvimento, ela realiza uma separação de fato e até externa ou, em todo caso, uma “separação psicológica”, rescindindo o contrato original de parceria, o “contrato de propriedade”.

       E Orfeu? Fica profundamente desesperado e não consegue compreender. Como ela se tornou uma parte dele, acha que não conseguirá viver sem ela. Para reconquistá-la, exige de si coisas quase desumanas. Chega a ir atrás dela no reino dos mortos; ela, a “mais amada”, por quem ele, no poema de Rilke, chora “mais que o chorar das carpideiras”. Em seu pranto, ele faz com que novamente se erga o mundo em que viveram juntos – “estradas, povos, campos, rios, feras”. No que se refere à situação do casal descrita, ocorrem-me de imediato os homens que não conseguem entender que a mulher rescindiu o “contrato de propriedade” (porque, de sua parte, não o percebiam absolutamente como tal). Como Orfeu, tentam de tudo, fazem de tudo, querem tornar possível o impossível. Estão prontos até mesmo a entrar no “reino dos mortos” da terapia de casal, que antes evitavam como a peste. Nesse momento, tal como Orfeu, entoam o comovente canto de lamento e prometem fazer tudo diferente assim que voltarem para “cima”, assim que ela estiver pronta para tentar viver de novo com ele. Ao distanciamento da mulher, os homens reagem quase com pânico e, de repente, se “dispõem a tudo”.

       Tentativa de superação

       Como o Orfeu do mito se dedica com tanta intensidade a ir buscar Eurídice, Hades, senhor do reino dos mortos, permite que ele a leve consigo. Na visão de Rilke, porém, o problema decisivo reside nesse ponto, razão pela qual, no fim, essa busca não dá certo: Eurídice ainda não está muito longe, “ia dentro de si, como esperança”, “e o dom da morte dava-lhe plenitude”. Por acaso isso não significaria que ela ainda se encontra inteiramente em seu próprio processo, que ainda não se desenvolveu a ponto de poder envolver-se novamente com Orfeu e sua vida? Ela “não pensava no homem que ia à frente, nem no caminho que subia aos vivos”, formula Rilke. Novamente em relação a nosso casal, não raro as mulheres acabam aceitando o convite para voltar com o parceiro, embora de algum modo sintam que ainda não estão prontas. No entanto, também querem voltar, também gostariam de acreditar no parceiro e também se sentem com a consciência pesada por causa de sua “viagem rumo à autonomia”; além disso, levam os filhos em conta e assim por diante. Há tantos argumentos “razoáveis” para que voltem, e o homem parece mesmo estar sendo sincero...

       Entretanto, o problema parece ser o seguinte: apesar de todo o esforço sincero, de toda a disposição a sacrificar-se, existe uma coisa que Orfeu ainda não entendeu direito nesse novo modo de ser de Eurídice. Ele ficou abalado com o que aconteceu, quer reconquistá-la com a melhor das intenções, mas não percebe que está querendo reproduzir o antigo estilo de vida. Não sabendo exatamente o que aconteceu com ela, irrita-se com sua insegurança, sua sensibilidade, sua reserva. Ele “já não a ouve atrás de si” e por isso se volta. O ato de “voltar-se para ela” significa que ele “não consegue ser diferente”, que “sente necessidade” de recuperar o controle sobre a situação. De fato se esforça por ela, mas não consegue perceber que, agora que ela se redescobriu, precisa urgentemente se sentir livre e segui-lo do jeito que lhe convém. Em vez disso, ele “sente necessidade” de se voltar, de submetê-la novamente a seu controle.

       No entanto, isso já não é possível. Ela se volta e desaparece para sempre. A dor é muito grande. Na ópera, esse é o momento em que Orfeu canta o comovente lamento: “Ah, eu a perdi, toda a minha felicidade se foi...” Mais emocionante ainda é a representação concisa de Rilke: “Mas pouco além, sombrio, frente à clara saída, se postava alguém, o rosto já não reconhecível. Esse viu [...]”. Uma grande dor “sem rosto”, “sem nome”, portanto, inefável, o imobiliza. Muitas vezes, a dor que o homem-Orfeu sente é mesmo grande, e não é menor a dor também sentida pela mulher-Eurídice. Ela percebe que o desenvolvimento pelo qual passou já não pode ser repelido; o novo, que começa a desabrochar, ainda está fechado “como flor em botão no entardecer”, mas quer abrir a todo custo e viver; ela já não pode renunciar a isso. E sente que o homem-Orfeu não consegue aceitar essa nova situação; percebe que ele permanece alheio a ela e que nada compreende. Isso é muito doloroso, mas ela não pode mudá-lo. Seu caminho a conduz para outra direção – sem ele.

       Um fato chama a atenção: Eurídice permanece calada o tempo todo. Temos de nos perguntar: Por que ela não esclarece espontaneamente a Orfeu o que está acontecendo? Por que não lhe diz que ele tem de ser cauteloso, que para ela alguma coisa claramente terminou e que outra coisa, irrenunciável, se tornou viva? Por que ela não o convida, não o exorta a prestar atenção nisso, a se abrir para isso ou, pelo menos, a levá-lo em conta? Vejo isso acontecer frequentemente com mulheres que se encontram nesse tipo de situação: elas aprenderam a se adaptar, a ser a “jovem resplendente para ele”. Contudo, embora sintam que é inevitável que se tornem independentes, que tenham seu próprio desenvolvimento e que se tornem autônomas, não têm força para demonstrar tudo isso ao parceiro de modo consciente, formulando, argumentando em seu favor, reclamando e impondo limites. Assim, permanecem caladas e, quando já não suportam, se separam... Por certo, o que realmente as impressiona é que nem sempre é fácil opor alguma coisa aos homens-Orfeus, que são eloquentes e cheios de ideias. Com frequência, as “artes” dessas mulheres fizeram com que esses homens construíssem um muro ao redor de si; como em Orfeu, um impenetrável muro das “lamentações”. Às vezes, calar-se é a única possibilidade de que dispõem para escapar do Orfeu que está sempre se voltando. Porém talvez os relacionamentos muitas vezes pudessem ser salvos se as mulheres se valorizassem antes de maneira clara e decisiva.

       Não quero duvidar da capacidade de mudança desses homens, mas vejo com frequência que somente por meio dessa amarga separação é que homens-Orfeus aprendem de fato a não se voltarem mais, ou seja, a desistirem de tentar manter a parceira sob controle e transformá-la novamente em “sua propriedade”. Com frequência, eles precisam dessa dor da separação. Somente essa dor faz com que aceitem a própria fraqueza e deixem o controle de lado. Somente quando isso se torna possível é que se abrem as portas para o amor.

       Portanto, a dor da separação pode curar. No caso do Orfeu mítico, contudo, até onde sabemos, ela não funcionou. Conforme sugerem as narrativas míticas, após perder Eurídice pela segunda vez, ele se teria finalmente resignado, se imobilizado nessa resignação e perecido, uma vez que Orfeu não inicia nenhum novo relacionamento com outra mulher, passando a se dedicar a um culto ascético e hostil ao corpo e a difundi-lo. Os defensores do culto orgíaco a Dioniso sentem o culto de Orfeu como concorrência e ameaça, e, assim, Orfeu é despedaçado pelas Mênades, as selvagens acompanhantes de Dioniso. É como se o mito de Orfeu quisesse chamar a atenção para um grande perigo: pode-se ser um grande artista, um cantor que arrebata corações, um grande perito e herói e, mesmo assim, fracassar no amor. 



 (Jellouschek, Hans.- Espelho, espelho nosso)

NOTAS:
(1) A esse respeito, cf. Robert von Ranke-Graves, Griechische Mythologie. Quellen und Deutung. Reinbek: Rowohlt Verlag, 1984, pp. 98-101, Rowohlts Enzyklopädie 404.
 

(2)  Augusto de Campos, Rilke: poesia-coisa. Introd., sel. e trad. Augusto de Campos. Rio de Janeiro: Imago, 1994, pp. 41-47. (N. da T.) 


RELACIONADOS:
* A OUTRA EURÍDICE
Orfeu nos infernos, ou por que a morte é mais forte do que o amor
* ORFEU E EURÍDICE - Lidando com o luto

publicado às 18:25


1 comentário

De maria sou a 15.06.2017

De modo egoísta, esquecemos frequentemente as promessas feitas.

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