Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]



— O destino do evangelho foi decidido com a morte — foi pendurado na “cruz”... Somente a morte, essa morte inesperada, ignóbil, somente a cruz, geralmente reservada para a canaille [canalha] — somente esse horrível paradoxo pôs os discípulos ante o verdadeiro enigma: “quem foi esse? o que foi isso?”. — O sentimento abalado e profundamente ofendido, a suspeita de que tal morte poderia ser a refutação de sua causa, a terrível interrogação “por que justamente assim?” — é um estado que se compreende muito bem. Tudo aí tinha de ser necessário, ter sentido, razão, suprema razão; o amor de um discípulo não conhece acaso. Apenas então o abismo se abriu: “quem o matou? quem era seu inimigo natural?” — essa questão irrompeu como um raio. Resposta: o judaísmo dominante, sua classe mais alta. Nesse instante sentiram-se em revolta contra a ordem, entenderam Jesus, em retrospecto, como em revolta contra a ordem. Até ali faltava, em seu quadro, esse traço guerreiro, essa característica de dizer o Não, fazer o Não; mais até, ele era o contrário disso. Evidentemente, a pequena comunidade não compreendeu o principal, o que havia de exemplar nessa forma de morrer, a liberdade, a superioridade sobre todo sentimento de ressentiment [ressentimento]: — sinal de como o entendia pouco! Jesus não podia querer outra coisa, com sua morte, senão dar publicamente a mais forte demonstração, a prova de sua doutrina... Mas seus discípulos estavam longe de perdoar essa morte — o que teria sido evangélico no mais alto sentido; ou mesmo de oferecerse para uma morte igual, com meiga e suave tranqüilidade no coração... Precisamente o sentimento mais “inevangélico”, a vingança, tornou a prevalecer. A questão não podia findar com essa morte: necessitava-se de “reparação”, “julgamento” (— e o que pode ser menos evangélico do que “reparação”, “castigo”, “levar a julgamento”!). Mais uma vez a expectativa popular de um Messias apareceu em primeiro plano; enxergou-se um momento histórico: o “reino de Deus” vai julgar seus inimigos... Mas com isso está tudo mal compreendido: o “reino de Deus” como ato final, como promessa! Mas o evangelho fora justamente a presença, a realização, a realidade desse “reino de Deus”... Pela primeira vez carregava-se todo o desprezo e amargor contra fariseus e teólogos para o tipo do mestre — tornando-o assim um fariseu e teólogo! Por outro lado, a frenética veneração dessas almas totalmente saídas dos eixos não mais tolerou a evangélica identificação de cada um como filho de Deus, que Jesus havia ensinado: sua vingança foi exaltar extravagantemente Jesus, destacá-lo de si: assim como os judeus de outrora, por vingança contra os inimigos, haviam separado de si e erguido às alturas o seu Deus. O único Deus e o único filho de Deus: ambos produtos do ressentiment...
 
— A partir de então houve um problema absurdo: “como podia Deus permitir isso?”. A perturbada razão da pequena comunidade deu-lhe uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para o perdão dos pecados. De uma só vez acabou-se o evangelho! O sacrifício expiatório, e em sua forma mais bárbara e repugnante, o sacrifício do inocente pelos pecados dos culpados! Que pavoroso paganismo! — Jesus havia abolido o próprio conceito de “culpa” — ele negou todo abismo entre Deus e homem, ele viveu essa unidade de Deus e homem como sua “boa nova”... E não como prerrogativa! — A partir de então entra no tipo do Redentor, passo a passo, a doutrina do julgamento e do retorno, a doutrina da morte como uma morte sacrificial, a doutrina da ressurreição, com a qual é escamoteado o conceito de “beatitude”, a única realidade do evangelho — em prol de um estado posterior à morte!... Com a insolência rabínica que sempre o caracteriza, Paulo racionalizou esta concepção, esta obscenidade de concepção, da seguinte forma: “se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, é vã a nossa fé” [1Coríntios, 15, 14]. — E de uma só vez o evangelho se tornou a mais desprezível das promessas não realizáveis, a desavergonhada doutrina da imortalidade pessoal... O próprio Paulo ainda a ensinava como recompensa!...
 
Vê-se o que terminou com a morte na cruz: uma nova base, inteiramente original, para um movimento de paz budista, para uma real, não simplesmente prometida, felicidade na Terra. Pois é esta — como já destaquei — a diferença fundamental entre as duas religiões de décadence: o budismo não promete, mas cumpre, o cristianismo promete tudo, mas nada cumpre. — A “boa nova” foi imediatamente seguida pela pior de todas: a de Paulo. Em Paulo se incorpora o tipo contrário ao “portador da boa nova”, o gênio em matéria de ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio. O que não sacrificou ao ódio esse “disangelista”! Antes de tudo o Redentor: ele o pregou à sua cruz. A vida, o exemplo, a doutrina, a morte, o sentido e o direito de todo o evangelho — nada mais restou, quando esse falsário inspirado pelo ódio percebeu o que apenas ele podia necessitar. Não a realidade, não a verdade histórica!... E mais uma vez o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo enorme crime contra a história — simplesmente riscou o ontem, o anteontem do cristianismo, inventando para si uma história do cristianismo inicial. Mais ainda: falseou a história de Israel mais uma vez, para que ela aparecesse como pré-história do seu ato: todos os profetas falaram do seu “Redentor”... Depois a Igreja falseou até a história da humanidade, tornando-a pré-história do cristianismo... O tipo do Redentor, a doutrina, a prática, a morte, o sentido da morte, até mesmo o após a morte — nada permaneceu intacto, nada permaneceu próximo da realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade de toda aquela existência para trás dessa existência — na mentira do Jesus “ressuscitado”. No fundo, ele não tinha necessidade da vida do Redentor — precisava da morte na cruz e alguma coisa mais... Ver como honesto um Paulo que tinha seu lar no principal centro do iluminismo estóico, quando ele faz de uma alucinação a prova de que o Redentor ainda vive, ou mesmo dar crédito ao relato de que teve essa alucinação, seria uma autêntica niaiserie [tolice] por parte de um psicólogo: Paulo quis os fins, portanto quis também os meios... O que ele mesmo não acreditava, acreditavam os idiotas aos quais lançou a sua doutrina. — Sua necessidade era o poder; com Paulo o sacerdote quis novamente chegar ao poder — ele tinha utilidade apenas para conceitos, doutrinas, símbolos com que são tiranizadas as massas, são formados os rebanhos. Qual a única coisa que Maomé tomaria depois ao cristianismo? A invenção de Paulo, seu meio para a tirania sacerdotal, para a formação de rebanho: a fé na imortalidade — ou seja, a doutrina do “Juízo”...

(Friedrich Nietzsche - O Anticristo — Maldição ao cristianismo e Ditirambos de Dionisio)


E daí se fosse blasfêmia a transexual na cruz?

publicado às 23:55


Comentar:

Comentar via SAPO Blogs

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2017
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2016
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2015
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2014
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2013
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2012
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2011
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2010
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2009
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2008
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2007
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D

subscrever feeds