— O destino do evangelho foi decidido com a morte — foi pendurado na “cruz”... Somente a morte, essa morte inesperada, ignóbil, somente a cruz, geralmente reservada para a canaille [canalha] — somente esse horrível paradoxo pôs os discípulos ante o verdadeiro enigma: “quem foi esse? o que foi isso?”. — O sentimento abalado e profundamente ofendido, a suspeita de que tal morte poderia ser a refutação de sua causa, a terrível interrogação “por que justamente assim?” — é um estado que se compreende muito bem. Tudo aí tinha de ser necessário, ter sentido, razão, suprema razão; o amor de um discípulo não conhece acaso. Apenas então o abismo se abriu: “quem o matou? quem era seu inimigo natural?” — essa questão irrompeu como um raio. Resposta: o judaísmo dominante, sua classe mais alta. Nesse instante sentiram-se em revolta contra a ordem, entenderam Jesus, em retrospecto, como em revolta contra a ordem. Até ali faltava, em seu quadro, esse traço guerreiro, essa característica de dizer o Não, fazer o Não; mais até, ele era o contrário disso. Evidentemente, a pequena comunidade não compreendeu o principal, o que havia de exemplar nessa forma de morrer, a liberdade, a superioridade sobre todo sentimento de ressentiment [ressentimento]: — sinal de como o entendia pouco! Jesus não podia querer outra coisa, com sua morte, senão dar publicamente a mais forte demonstração, a prova de sua doutrina... Mas seus discípulos estavam longe de perdoar essa morte — o que teria sido evangélico no mais alto sentido; ou mesmo de oferecerse para uma morte igual, com meiga e suave tranqüilidade no coração... Precisamente o sentimento mais “inevangélico”, a vingança, tornou a prevalecer. A questão não podia findar com essa morte: necessitava-se de “reparação”, “julgamento” (— e o que pode ser menos evangélico do que “reparação”, “castigo”, “levar a julgamento”!). Mais uma vez a expectativa popular de um Messias apareceu em primeiro plano; enxergou-se um momento histórico: o “reino de Deus” vai julgar seus inimigos... Mas com isso está tudo mal compreendido: o “reino de Deus” como ato final, como promessa! Mas o evangelho fora justamente a presença, a realização, a realidade desse “reino de Deus”... Pela primeira vez carregava-se todo o desprezo e amargor contra fariseus e teólogos para o tipo do mestre — tornando-o assim um fariseu e teólogo! Por outro lado, a frenética veneração dessas almas totalmente saídas dos eixos não mais tolerou a evangélica identificação de cada um como filho de Deus, que Jesus havia ensinado: sua vingança foi exaltar extravagantemente Jesus, destacá-lo de si: assim como os judeus de outrora, por vingança contra os inimigos, haviam separado de si e erguido às alturas o seu Deus. O único Deus e o único filho de Deus: ambos produtos do ressentiment...
— A partir de então houve um problema absurdo: “como podia Deus permitir isso?”. A perturbada razão da pequena comunidade deu-lhe uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para o perdão dos pecados. De uma só vez acabou-se o evangelho! O sacrifício expiatório, e em sua forma mais bárbara e repugnante, o sacrifício do inocente pelos pecados dos culpados! Que pavoroso paganismo! — Jesus havia abolido o próprio conceito de “culpa” — ele negou todo abismo entre Deus e homem, ele viveu essa unidade de Deus e homem como sua “boa nova”... E não como prerrogativa! — A partir de então entra no tipo do Redentor, passo a passo, a doutrina do julgamento e do retorno, a doutrina da morte como uma morte sacrificial, a doutrina da ressurreição, com a qual é escamoteado o conceito de “beatitude”, a única realidade do evangelho — em prol de um estado posterior à morte!... Com a insolência rabínica que sempre o caracteriza, Paulo racionalizou esta concepção, esta obscenidade de concepção, da seguinte forma: “se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, é vã a nossa fé” [1Coríntios, 15, 14]. — E de uma só vez o evangelho se tornou a mais desprezível das promessas não realizáveis, a desavergonhada doutrina da imortalidade pessoal... O próprio Paulo ainda a ensinava como recompensa!...
Vê-se o que terminou com a morte na cruz: uma nova base, inteiramente original, para um movimento de paz budista, para uma real, não simplesmente prometida, felicidade na Terra. Pois é esta — como já destaquei — a diferença fundamental entre as duas religiões de décadence: o budismo não promete, mas cumpre, o cristianismo promete tudo, mas nada cumpre. — A “boa nova” foi imediatamente seguida pela pior de todas: a de Paulo. Em Paulo se incorpora o tipo contrário ao “portador da boa nova”, o gênio em matéria de ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio. O que não sacrificou ao ódio esse “disangelista”! Antes de tudo o Redentor: ele o pregou à sua cruz. A vida, o exemplo, a doutrina, a morte, o sentido e o direito de todo o evangelho — nada mais restou, quando esse falsário inspirado pelo ódio percebeu o que apenas ele podia necessitar. Não a realidade, não a verdade histórica!... E mais uma vez o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo enorme crime contra a história — simplesmente riscou o ontem, o anteontem do cristianismo, inventando para si uma história do cristianismo inicial. Mais ainda: falseou a história de Israel mais uma vez, para que ela aparecesse como pré-história do seu ato: todos os profetas falaram do seu “Redentor”... Depois a Igreja falseou até a história da humanidade, tornando-a pré-história do cristianismo... O tipo do Redentor, a doutrina, a prática, a morte, o sentido da morte, até mesmo o após a morte — nada permaneceu intacto, nada permaneceu próximo da realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade de toda aquela existência para trás dessa existência — na mentira do Jesus “ressuscitado”. No fundo, ele não tinha necessidade da vida do Redentor — precisava da morte na cruz e alguma coisa mais... Ver como honesto um Paulo que tinha seu lar no principal centro do iluminismo estóico, quando ele faz de uma alucinação a prova de que o Redentor ainda vive, ou mesmo dar crédito ao relato de que teve essa alucinação, seria uma autêntica niaiserie [tolice] por parte de um psicólogo: Paulo quis os fins, portanto quis também os meios... O que ele mesmo não acreditava, acreditavam os idiotas aos quais lançou a sua doutrina. — Sua necessidade era o poder; com Paulo o sacerdote quis novamente chegar ao poder — ele tinha utilidade apenas para conceitos, doutrinas, símbolos com que são tiranizadas as massas, são formados os rebanhos. Qual a única coisa que Maomé tomaria depois ao cristianismo? A invenção de Paulo, seu meio para a tirania sacerdotal, para a formação de rebanho: a fé na imortalidade — ou seja, a doutrina do “Juízo”...
(Friedrich Nietzsche - O Anticristo — Maldição ao cristianismo e Ditirambos de Dionisio)