CONTINUAÇÃO
A divisão original e o nascimento da ideia de cosmos
E então Zeus finalmente se casou com Hera, que se manterá para sempre sua última e verdadeira esposa. É preciso que você saiba, porém, que ele não só teve inúmeras aventuras com outras mulheres, mortais e imortais, mas que também foi casado duas vezes antes. É importante, pois esses dois casamentos têm um sentido “cósmico”, um significado essencial na construção do mundo que nos interessa aqui. De fato, Zeus se casou primeiro com Métis e depois com Têmis, ou seja, a deusa da astúcia ou, se preferir, da inteligência, e, em seguida, com a da justiça.
Por que Métis? Métis, a astúcia, a inteligência, era filha de Tétis, uma Titânida, e de um dos primeiros Titãs, Oceano — o oceano, isto é, na visão do mundo que se lê no poema de Hesíodo, o gigantesco rio que circunda a totalidade da Terra. De Métis, Hesíodo nos diz que ela sabe mais coisas do que todos os outros deuses e, é claro, do que todos os homens mortais: é a própria inteligência, a astúcia personificada. Em seguida, ela engravida: espera uma filha de Zeus, a futura Atena, que, justamente, será ao mesmo tempo a deusa da astúcia, da inteligência, das artes e da guerra — mas, como eu disse, da guerra estratégica e tática mais do que dos conflitos brutais e violentos, que ficam reservados para Ares. Os avós de Zeus, Gaia e Urano — e lembro que eles o salvaram de ser engolido por Cronos, aconselhando Reia, sua mãe, a escondê-lo numa gigantesca gruta —, novamente o preveniram dos perigos que o aguardavam: se um dia Métis tivesse um filho, ele também destronaria o pai, como Cronos fizera com Urano... e o próprio Zeus com Cronos! Por quê? Hesíodo nada diz, mas podemos supor que o filho de Zeus e de Métis certamente reuniria as qualidades dos seus pais: ao mesmo tempo a maior força existente, a do raio, e uma inteligência semelhante à da mãe, ou seja, superior à dos demais Imortais e mortais. Todo cuidado é pouco: tal menino pode se tornar um adversário realmente temível, até mesmo para o rei dos deuses. Observe que os gregos não são tão misóginos ou “antimulheres” como às vezes dizem: com frequência a mulher encarna a inteligência sem nem por isso deixar de ter outras qualidades, inclusive aquelas relacionadas aos dotes físicos.
De qualquer maneira, para evitar ter um filho que o destrone, Zeus resolveu simplesmente engolir sua mulher (trata-se realmente de uma mania na família), a pobre Métis. Uma lenda mais tardia conta que Métis, entre suas astúcias, era capaz de mudar à vontade de forma e de aparência. Podia se transformar quando quisesse em objeto ou em animal. Zeus fez exatamente como o Gato de Botas enfrentando o ogro: você deve se lembrar que, nesse conto de fadas, o gato pede ao ogro que se transforme em leão, o que o deixa apavorado. Depois, como quem não quer nada, pede que se transforme em camundongo — para saltar sobre ele e devorá-lo. Zeus fez o mesmo: pediu a Métis que se transformasse em gota-d’água e bebeu-a! Quanto a Atena, que já estava em gestação no momento em que Métis foi bebida, como já lhe disse, acaba nascendo diretamente da cabeça do rei dos deuses. Escapole do seu crânio e se torna, à imagem do pai, a deusa ao mesmo tempo mais temível em combate e a mais inteligente.
Dito isso, não esqueça um detalhe importante nessa história toda: engolir não significa comer, mastigar, dilacerar. Quem é engolido não só se mantém vivo, como não se machuca. Assim como os filhos de Cronos permanecem vivos na barriga do pai — prova disso é que quando Cronos vomita, eles saem gozando de plena saúde —, também Métis, engolida por Zeus, permanece viva e, por assim dizer, em bom estado. A mesma ideia aparece em nossos contos; por exemplo, nos três porquinhos ou nos sete cabritinhos que, apesar de engolidos pelo lobo, saem bem vivos e nada machucados assim que se abre a barriga do malvado animal! No caso específico de Métis, ser engolida significa, simbolicamente é claro, que Zeus assume ele próprio, com o estratagema, todas as qualidades que sem dúvida iriam para o filho que nasceria daquela união. Ele tinha a força oferecida pelos Ciclopes ao lhe presentearem com o trovão, o relâmpago e o raio, mas, além disso, passou a ter, graças a Métis escondida em suas profundezas, uma inteligência superior a todas que se encontram em nosso mundo, e mesmo fora dele.
E com isso Zeus passa a ser imbatível — é o rei dos deuses, é o mais forte e o mais inteligente, o mais brutal se necessário, e também o mais sábio. E é justamente essa sabedoria que o levará a praticar, ao contrário do avô, Urano, e do pai, Cronos, a mais estrita justiça na organização do recentíssimo cosmos e na distribuição das honrarias e dos encargos que caberão a cada um dos que o ajudaram a vencer a geração dos primeiros deuses, a geração dos Titãs.
Esse ponto é absolutamente crucial na mitologia: é sempre com a justiça que se acaba vencendo, pois a justiça nada mais é, no fundo, que uma forma de se manter fiel à ordem cósmica, de se ajustar a ela. Toda vez que um ser negligencia ou vai contra a ordem, ela acaba se recuperando contra ele e o arrasa. É uma bela lição de vida que já se esboça em filigrana: apenas uma ordem justa é viável, a injustiça só pode ser provisória.
Este é o motivo pelo qual, tendo se casado com Métis e tendo, por assim dizer, incorporado-a — no sentido próprio, abrigada em seu próprio corpo —, Zeus se casa com uma segunda mulher, tão importante quanto a primeira no que se refere à conservação do poder no centro da nascente ordem cósmica: Têmis, a justiça. Têmis é uma das filhas de Urano e Gaia. É portanto uma Titânida. Com ela, Zeus terá filhos que também simbolizam as virtudes necessárias à construção e, em seguida, à manutenção de uma ordem cósmica harmoniosa e equilibrada — o que continua sendo, aproveito para lembrar, a meta de toda essa história, da qual você já começa a perceber com clareza que narra a passagem através do caos inicial a uma ordem cósmica viável e magnificamente bem-organizada. Dentre seus filhos, de fato, há Eunomia, que significa em grego “a boa lei”, e Diké, quer dizer a justiça entendida no sentido de justa divisão das coisas. Há também as divindades denominadas “Moiras”, isto é, as deusas do destino — são chamadas ainda “Destinos”. Têm como tarefa distribuir boa sorte e azar entre os mortais, mas também decidem qual tempo de vida cabe a cada um.17 Muitas vezes, elas se juntam para fazer essa distribuição ao acaso, ou seja, por aquilo que, para os gregos, é uma forma suprema de justiça: afinal, na loteria do acaso, estamos todos em pé de igualdade, sem haver privilegiados, fura-filas nem “pistolões”, como se diz no coloquial. E há ainda uma série de deusas com nomes que evocam a harmonia, como, por exemplo, as três Graças, Esplendor, Bom Humor e Festa...
Compreende-se facilmente, então, o significado desse segundo casamento: assim como não é possível ser rei dos deuses e senhor do mundo apenas pela força bruta, sem ajuda da inteligência simbolizada por Métis, não é possível também assumir tal tarefa sem justiça, isto é, faltando Têmis, essa segunda esposa que se torna tão útil quanto a primeira. Ao contrário de Urano e de Cronos — seu avô e seu pai —, Zeus compreende então que é preciso ser justo para reinar. Antes até do fim da guerra contra os Titãs, a promessa já fora feita a todos que a ele se juntassem no combate contra os primeiros deuses: a divisão do mundo se faria com toda justiça, de maneira harmoniosa e equilibrada. Quem já gozava de privilégios os manteria, e quem ainda não, os ganharia.
Hesíodo conta com os seguintes termos essa decisão de Zeus:
O Olímpico, senhor do raio, chamou todos os deuses imortais para as alturas do Olimpo e lhes disse que daqueles que se colocassem a seu lado no combate aos Titãs ele não retiraria os privilégios, quaisquer que fossem, e, muito pelo contrário, todos no mínimo manteriam as distinções de que já se beneficiavam como deuses imortais. E Zeus acrescentou que todos aqueles, perseguidos por Cronos, que se encontravam sem honrarias próprias e sem privilégios os obteriam, como exige a justiça (Têmis).
Ou seja, Zeus propôs a todos os deuses uma divisão igualitária dos direitos e deveres, das missões e também das honrarias que, mais tarde, os homens lhes prestariam sob a forma de culto e sacrifícios — os deuses gregos adoram ser venerados e, muito particularmente, apreciam o aroma da carne grelhada que os humanos lhes preparam em belas “hecatombes”, isto é, em belos sacrifícios. Continuando o texto, Hesíodo relata como Zeus imagina recompensar tanto os Cem-Braços quanto os Ciclopes e os Titãs, que, como Oceano, não se aliaram a Cronos. Oceano, de fato, teve o bom discernimento de fazer com que a filha, Estige, a deusa que é também o rio dos infernos (mais uma vez, uma divindade coincide com um pedaço da ordem cósmica), se aliasse ao campo de Zeus, com seus filhos Cratos e Bia, o poder e a força. Como recompensa, Estige se tornou para sempre homenageada, e seus dois filhos ganharam a insigne honra de em todas as circunstâncias estar ao lado de Zeus. Sem entrar muito em detalhes, tudo isso significa que Zeus entendeu a necessidade, para instituir uma ordem cósmica duradoura, de fundamentá-la na justiça: deve-se atribuir a cada um a sua parte justa e somente a esse preço o equilíbrio obtido será estável. Justiça e inteligência são necessárias para guardar do poder, além da força, não só os Ciclopes e os Cem-Braços, mas também Têmis e Métis.
O nascimento de Tífon e sua guerra contra Zeus: uma ameaça máxima, mas também a oportunidade de integração do tempo e da vida numa ordem finalmente equilibrada
Poderíamos achar que as guerras estavam terminadas. Infelizmente não, e um temível adversário ainda aguarda Zeus no caminho. Trata-se de Tifão ou Tífon (Hesíodo usa os dois nomes), que Gaia gerou com o terrível Tártaro. De todos os monstros, ele é o mais pavoroso: imagine que dos seus ombros brotam cem cabeças de serpente cujos olhos cospem fogo. Além disso, conta com algo ainda mais aterrorizador, se possível, pois dessas cabeças saem sons incríveis. Ele pode imitar todas as linguagens, falar aos deuses com sons inteligíveis, mas também emitir o mugido do touro, o rugir do leão ou, pior ainda, pois o contraste é horrível, os adoráveis guinchos de filhotinhos de cachorro! O monstro, enfim, tem mil facetas — o que simbolicamente significa sua familiaridade com o caos — e, como Hesíodo indicou, se vencesse o combate contra Zeus, para o qual ele se prepara, e tomasse o poder sobre o mundo, tornando-se senhor dos mortais e dos Imortais, nada nunca mais se poderia fazer contra ele. Pode-se facilmente adivinhar a catástrofe que se esboça: com Tífon, as forças caóticas triunfariam sobre as do cosmos, a desordem sobre a ordem, a violência sobre a harmonia...
Dito tudo isso, por que Tífon? Como se explica que Gaia, que sempre se mostrara favorável a Zeus, que o salvou do pai, Cronos, que avisou sobre o perigo que corria tendo um filho, o qual o destronaria por sua vez, e sugeriu que engolisse Métis, essa mesma Gaia que também aconselhara, da maneira mais judiciosa, libertar os Ciclopes e os Cem-Braços se quisesse vencer a guerra contra os Titãs, por que, então, essa querida vovó procura agora prejudicar o neto, lançando contra ele um monstro apavorante, propositadamente engendrado com o horrível Tártaro? Não é nada óbvio. Ainda mais porque Hesíodo nada nos diz, literalmente, o que motivou a terra.
Podemos, mesmo assim, levantar duas hipóteses, que parecem pelo menos plausíveis: a primeira e mais evidente é que Gaia não ficou satisfeita com o destino que Zeus reservou a seus primeiros filhos, os Titãs, trancando-os no Tártaro. Apesar de ela nem sempre defendê-los, eles são, no final das contas, seus filhos, e ela não pode aceitar impassivelmente o horrível destino a eles reservado. Pode ser — mas essa forma psicológica de ver as coisas não é tão satisfatória; trata-se aqui de um assunto sério, da construção do mundo, do cosmos, e os estados d’alma, nesse estágio, não entram em consideração. A segunda hipótese é bem mais verossímil: Gaia fabricou Tífon para usá-lo contra Zeus porque o equilíbrio do cosmos não será perfeito enquanto as forças de desordem e de caos não estiverem todas canalizadas. Lançando um novo monstro, ela na verdade dá a Zeus a oportunidade de definitivamente integrar na o
rdem cósmica os elementos caóticos. O que comprova, como já foi tantas vezes dito, não se tratar nessa narrativa mitológica apenas de conquista do poder político, mas sim de cosmologia. O que Tífon encarna é também o tempo, as gerações, a história e a vida. É preciso aliar cosmos e caos, sem dúvida é o que deseja Gaia, pois a se manterem apenas as “forças da ordem”, o mundo inteiro fica paralisado e sem vida.
Em Hesíodo, a narrativa do combate que opõe Tífon aos olímpicos é, então, crucial, mesmo que rápida e pouco circunstanciada: sabe-se apenas que o combate é terrível, de incrível violência, e que a terra treme até no Tártaro, a ponto de o próprio Hades, o deus dos infernos que habita nas mais profundas trevas, ter medo, assim como acontece com os Titãs, Cronos antes de todos, trancados no inferno desde que perderam a guerra contra os olímpicos. Sabe-se ainda que, sob os efeitos do raio de Zeus e do fogo cuspido por Tífon, a terra se incendeia, se transforma em lava e derrete como metal fundido. Tudo isso, é claro, tem um sentido: trata-se, para o poeta, de sugerir ao leitor que o que está em jogo nessa terrível luta é nada menos que o próprio cosmos. Com Tífon, o universo inteiro passa a estar ameaçado em sua harmonia e na ordem. No final, porém, quem vence é Zeus, graças às armas que os Ciclopes lhe deram: o trovão, o relâmpago e o raio. Uma de cada vez, as cabeças de Tífon são fulminadas, e o monstro infernal é expedido para onde bem merece: o inferno!
Com muita razão Jean-Pierre Vernant insistiu em mostrar não ter sido à toa que a breve narrativa de Hesíodo foi enriquecida e dramatizada por mitógrafos posteriores. O que está em jogo nessa última etapa da construção do mundo é essencial — trata-se de saber quem, o caos ou a ordem, finalmente venceria, mas também compreender como a vida pode se integrar à ordem, e o tempo ao equilíbrio eterno —, sendo normal que o tema se enriquecesse no decorrer dos anos. Se Tífon ganhasse, seria o fim da edificação do cosmos harmonioso e justo. Com a vitória de Zeus, pelo contrário, a justiça passa a reinar sobre o universo. A aposta é tal que seria realmente surpreendente, e uma pena, não dar ao conflito uma versão mais volumosa, de certa maneira mais empolgante e dramática do que a de Hesíodo, que de fato é bem ligeira. Mitógrafos tardios então não fizeram cerimônia e é interessante seguir em duas obras o resultado desses sucessivos enriquecimentos. Em seu próprio gênero, cada uma se esforça em fazer uma síntese das narrativas mitológicas anteriores.
A primeira delas se chama Biblioteca, de Apolodoro. Preciso dizer uma palavra sobre esse título e também sobre o autor, pois voltaremos a encontrá-los várias vezes, e isso pode gerar uma certa confusão. Primeiramente, tenho certeza de que, para você, uma “biblioteca” não é um livro... e sim o lugar — um móvel ou aposento — em que se organizam livros. Aliás, se nos referirmos à origem da palavra, você tem toda razão: em grego, a palavra thekê designa uma “arca” ou uma “caixa” em que “se deixa” alguma coisa, no caso, livros (biblios). No entanto, nos tempos antigos, o termo “biblioteca” muitas vezes era utilizado de maneira figurada, referindo-se a um apanhado de textos que, como o móvel, reunia em si tudo que se pudesse saber, pelos livros, sobre determinado assunto. E é exatamente o que faz Biblioteca: nela se encontra uma espécie de resumo de todo o saber mitológico disponível na sua época. É então um livro que reúne em si vários outros livros e, por essa razão, era comparado a uma “biblioteca”. Segunda dificuldade: por muito tempo se acreditou que a obra, tão útil para um melhor conhecimento dos mitos gregos, tinha sido escrita no século II a.C., por um certo Apolodoro de Atenas, um erudito apaixonado por gramática e por mitologia. Sabe-se hoje que não, e Biblioteca foi sem dúvida redigido no século II, só que não antes e sim depois de Cristo, por um autor do qual, na verdade, ignoramos tudo. E como nada se sabe a seu respeito e o hábito já estava criado, continuamos hoje, na falta de melhor solução, a chamar o livro “Biblioteca de Apolodoro”... mesmo não sendo uma biblioteca e não sendo de Apolodoro! Viu? É meio complicado, mas foi a história que resolveu assim, e prefiro lhe dizer as coisas como elas são. A obra nem por isso deixa de ser muito preciosa para nós, pois seu autor, quem quer que tenha sido, teve acesso a textos hoje em dia perdidos e dos quais às vezes temos conhecimento apenas graças a ele.
Mas voltemos à nossa narrativa e à versão dada por nosso “pseudo” (falso) Apolodoro. Com ele, o suspense se mantém bem mais do que com Hesíodo. O que em teatro se chama “dramaturgia”, isto é, a encenação da ação, se torna bem mais intenso, pois, num primeiro momento, ao contrário do que se passa em Hesíodo, é Tífon quem consegue demolir Zeus. Esse infeliz — fato raro — “perdeu os nervos”, literalmente. Tífon, como você sabe, é de fato monstruoso, tão assustador que, para dizer a verdade, os próprios deuses do Olimpo ao vê-lo entram em pânico! Fogem para o Egito e, tentando passar despercebidos e escapar dos golpes de Tífon, se transformam em animais — algo, diga-se, nada glorioso para os olímpicos... mas pelo menos Zeus se mantém firme. Cheio de coragem, ele ataca Tífon com o raio, mas também à mão, tendo como arma um podão — quem sabe o mesmo com que seu pai, Cronos, cortou o sexo do pobre Urano. Mas Tífon desarma Zeus e, apoderando-se da lâmina, corta-lhe os tendões dos braços e das pernas, de modo que o rei dos deuses, é verdade, não morre — o que seria impossível, pois ele é imortal —, mas fica reduzido quase ao estado de um legume. Incapaz de se mover, fica jogado no chão como um verdadeiro trapo e ainda por cima bem guardado: Delfineia, uma assustadora mulher-serpente a serviço de Tífon, o vigia de perto.
Mas felizmente Hermes está por perto e, como você vai ver, não à toa ele é considerado também o deus dos ladrões. Egipã — sem dúvida outro nome do deus Pã, um dos filhos de Hermes, conhecido como deus dos pastores e dos rebanhos — o ajuda. Dizem ainda que esse mesmo deus inventou uma flauta feita com sete canas, por ele chamada “siringe”, nome da ninfa por quem tinha se apaixonado, mas que se transformara em cana para fugir das suas investidas. Imagine que é com a suave música tirada dessa flauta que Pã consegue distrair a atenção de Tífon. Nesse meio-tempo, Hermes aproveita para habilmente roubar os divinos tendões e corre para devolvê-los a Zeus. Novamente de pé, este último volta ao combate e parte no encalço de Tífon, com seu raio. Uma vez mais, ganha uma ajuda externa indispensável. As três Moiras — suas filhas, divindades que regulam o destino dos homens, mas às vezes também o destino dos deuses, pois, sendo ele a lei do mundo, rege inclusive os Imortais — fazem o monstruoso Tífon cair numa armadilha: dão-lhe frutas para comer, garantindo que com isso será invencível. Na verdade, são drogas que diminuem as suas forças, e Tífon, enfraquecido, finalmente é vencido por Zeus. É derrotado e preso sob um vulcão, o Etna, cujas erupções são o sinal dos últimos sobressaltos desse monstro aterrorizador!
Querendo mostrar como esses mitos eram contados na época — século II —, vou citar o próprio texto de Apolodoro. Em seguida veremos como, três séculos mais tarde, com outro mitógrafo, chamado Nono, a mesma história se enriqueceu e se desenvolveu ainda consideravelmente.
Depois de lembrar que Gaia se indigna com o tipo de tratamento que Zeus reserva a seus primeiros filhos, nosso falso/pseudo Apolodoro nos faz o seguinte relato (como sempre, ponho meus próprios comentários entre parênteses e em itálico):
Ainda mais irritada, Gaia se uniu a Tártaro e, na Cilícia, gerou Tífon, em quem se misturavam as naturezas do homem e da fera. Pelo tamanho e pela força, ele superava todos os filhos de Gaia. Tinha uma forma humana até as coxas, mas suas dimensões eram tão desmedidas que ele ultrapassava todas as montanhas, e sua cabeça muitas vezes, inclusive, encostava nos astros. Estendidos, um braço alcançava o poente e o outro o oriente, e desses braços emergiam cem cabeças de serpente. A partir das coxas, o corpo era um entrelaçamento de enormes víboras que estendiam seus anéis até a cabeça e lançavam fortes assovios. Em cima da cabeça e nas faces crescia uma juba imunda. Os olhos dardejavam fogo. Eram estes o aspecto e o tamanho de Tífon ao atacar o próprio céu, lançando rochedos inflamados, numa balbúrdia de gritos e assovios, enquanto sua boca cuspia poderosas línguas de fogo. Os deuses, vendo sua figura projetada contra o céu, se exilaram no Egito, onde, ainda perseguidos, tomaram a forma de animais. Com Tífon ainda distante, Zeus lançou-lhe raios, e quando o monstro se aproximou, ele o atacou a golpes de podão de aço, perseguindo-o em fuga até o monte Casios, que domina a Síria. Ali, vendo-o coberto de ferimentos, Zeus decidiu-se pelo corpo a corpo, mas Tífon, enrolando seus anéis a seu redor, o imobilizou, arrancou o podão e cortou seus tendões das mãos e dos pés. Tífon em seguida ergueu Zeus sobre os ombros, atravessou o mar até a Cilícia e, chegando ao antro Coriciano (a gruta em que ele morava), deixou-o ali. Foi também onde escondeu os tendões, sob uma pele de urso. Deixou de guarda um dragão-fêmea, Delfineia, que era meio besta e meio mulher. Mas Hermes e Egipã furtivamente roubaram os tendões e os recolocaram em Zeus, sem serem vistos. Assim que recuperou as forças, Zeus partiu rápido para o céu, num carro atrelado a cavalos alados e, dardejando raios, perseguiu Tífon até o monte denominado Nisa (o mesmo monte em que nasce Dioniso, cujo nome significa “o deus de Nisa”), onde as Moiras enganaram o fugitivo: persuadido de que frutas efêmeras o tornariam mais forte, ele comeu-as. Ainda perseguido, Tífon chegou à Trácia e, no combate que teve início perto do monte Hemos, pôs-se a lançar montanhas inteiras. Mas como elas voltavam contra ele rechaçadas pelo raio, uma onda de sangue logo inundou a montanha, e é por isso, dizem, que ela se chama Hemos — o “monte sangrento”. Tífon fugiu novamente, atravessando o mar da Sicília, mas Zeus lançou em cima dele o monte Etna, que fica na Sicília. É uma enorme montanha da qual ainda hoje partem erupções de fogo que vêm, ao que dizem, dos raios lançados por Zeus.18
Esse texto mostra bastante bem como as histórias míticas eram contadas na época. De fato, há suficientes detalhes “instigantes” para que os contadores — aedos, como eram chamados na Grécia — tivessem assunto para elaborar a trama básica, de forma a manter a atenção do público!
Pode-se encontrar um roteiro mais ou menos semelhante, mas infinitamente ainda mais desenvolvido e enriquecido com pequenos desvios paralelos e múltiplos diálogos em nosso segundo autor, Nono de Panópolis, numa longa obra mitográfica intitulada As Dionisíacas, cujos dois primeiros cantos abordam o combate entre Tífon e Zeus. Nono é sobretudo conhecido como autor desse poema épico dedicado, essencialmente, às aventuras de Dioniso, como aliás indica o título. A obra foi redigida em grego, no século V d.C. — ou seja, mais ou menos três séculos depois de Biblioteca de Apolodoro e 12 séculos após as obras de Hesíodo, com o que você pode, mais uma vez, ter ideia do tempo preciso para constituir o que lemos hoje em dia sob o rótulo “mitologia grega”, como se fosse uma única obra e não uma compilação de inúmeras narrativas. O texto de Nono é preciosíssimo para nós, pois constitui uma verdadeira mina de informações sobre os mitos gregos.
Na verdade, a história agora se passa de maneira um pouco diferente da que é apresentada por Apolodoro. Principalmente é mais rica, mais intensa e mais dramática, como você vai poder constatar por si mesmo. Pois Nono o tempo todo sublinha as disputas “cósmicas” do conflito, com um luxo de detalhes que muito utilmente nos informa hoje em dia sobre a maneira como esses mitos eram entendidos na sua época. Fica bastante claro ser pura e simplesmente a sobrevivência do cosmos que está em jogo na batalha: com a vitória de Tífon, todos os deuses do Olimpo estariam definitivamente submetidos a ele, que tomaria o lugar de Zeus, inclusive junto de sua mulher, Hera, que Tífon cobiça e quer tomar do então senhor do Olimpo.
Vejamos mais de perto como, segundo ele, as coisas aconteceram.
Do mesmo modo que em Apolodoro, os deuses do Olimpo inicialmente se assustam com a chegada de Tífon e, ainda como em Biblioteca, eles fogem, literalmente apavorados. Zeus, igualmente, “perde os nervos”: seus tendões são arrancados e escondidos por Tífon num lugar secreto. Mas não é mais Hermes quem vai ter o papel principal na vitória de Zeus. Ele próprio concebe um plano de batalha e, para colocá-lo em prática, convoca Eros, o confidente de Afrodite, e Cadmos, o rei astucioso, fundador da legendária cidade de Tebas e irmão da bela Europa, a quem Zeus raptara se metamorfoseando em touro. Para recompensar Cadmos pelos serviços prestados, Zeus promete-lhe em casamento a encantadora Harmonia, que é, simplesmente, filha de Ares, o deus da guerra, e Afrodite. Promete também a honrosa homenagem da presença de todos os deuses do Olimpo no casório (note, de passagem, como todas essas histórias se costuram entre si: uma das filhas de Cadmos com Harmonia, Semelê, se apaixonará por Zeus, se tornando mãe de seu filho Dioniso).
O estratagema imaginado por Zeus merece toda atenção; é bastante significativo do que está em jogo, do ponto de vista cósmico, em sua luta contra Tífon. De fato, Zeus pede a Cadmos que se disfarce de pastor. Usando a siringe de Pã, a maravilhosa flauta que emite sons melífluos, e ajudado por Eros, ele deve tocar uma música tão suave e envolvente que faça Tífon cair sob o seu encanto. Tífon então promete mundos e fundos a Cadmos — entre os quais a mão de Atena — para que ele continue a tocar e que seja também o músico das suas futuras núpcias com Hera, a mulher de Zeus, com quem ele espera se casar, assim que liquidar seu ilustre marido. Achando estar ganha a partida, Tífon cai na armadilha e adormece, ninado pelos sons da siringe. Cadmos então procura e acha os tendões de Zeus, que os coloca em seus devidos lugares e está pronto para conquistar a vitória. Essa versão, como eu disse, é repleta de significados; sobretudo chama a atenção que seja pela música que o cosmos se salve, isto é, pela mais cósmica das artes, fundada na organização dos sons que devem, por assim dizer, “rimar” uns com os outros. E o fato da recompensa de Cadmos ser, justamente, a mão da própria Harmonia sublinha muito bem esse ponto.
Novamente prefiro citar o texto original para que você entenda por si próprio os termos utilizados por Zeus para pedir a Cadmos e a Eros que montem a armadilha para Tífon:
Querido Cadmos, toque a siringe e o céu voltará a estar tranquilo. Se demorar, o céu vai gemer sob o açoite, pois Tífon tem a arma dos meus dardos celestes (além dos tendões de Zeus, Tífon de fato lhe roubou o raio, o relâmpago e o trovão. Zeus, como você pode imaginar, quer recuperá-los o mais rapidamente possível)[...] Torne-se boiadeiro por uma só aurora e, com a música enfeitiçante da flauta pastoril, salve o pastor do cosmos (isto é, Zeus, o senhor do Olimpo, que fala na terceira pessoa)[...] Pela melodia da siringe sedutora, encante o espírito de Tífon. Como justo pagamento para tal risco, lhe darei uma dupla recompensa: ao mesmo tempo farei de você o salvador da harmonia universal e o marido de Harmonia. Quanto a você, Eros, semente primeira e princípio das uniões fecundas, distenda seu arco e o cosmos não ficará mais à deriva (pois Tífon, encantado não só pela música, mas também pelas flechas de Eros, cairá na armadilha dos dois comparsas, assim permitindo a salvação do cosmos).
É literalmente o cosmos inteiro então que parece estar ameaçado de destruição por Tífon, e é ao cosmos que se quer salvar, por intermédio de Zeus, com a harmonia da música que a deusa Harmonia consagraria se casando com Cadmos. Desse modo Cadmos se serve da flauta, e Tífon, a besta mais brutal, cai sob o seu charme como se fosse uma mocinha romântica. Como já disse, o monstro faz mil promessas a Cadmos para que ele cante a sua vitória no dia das suas núpcias com a mulher do inimigo. E Cadmos usa a esperteza: diz que com outro instrumento musical, a lira, um instrumento de cordas, poderia fazer algo ainda melhor do que com a flauta de Pã. Conseguiria inclusive superar Apolo, o deus dos músicos. Mas simplesmente precisa de cordas adequadas, cordas feitas, se possível, com tendões divinos, resistentes o bastante para a execução daquilo que realmente se chama tocar! A lira, de fato, é um instrumento harmônico: com ela, ao contrário do que se passa com uma simples flauta, várias cordas podem ser tocadas ao mesmo tempo e, consequentemente, assim realizar acordes que “põem juntos” vários sons diferentes. A lira se mostra um instrumento mais harmonioso e, nesse sentido, mais “cósmico” do que a flauta, quaisquer que sejam os méritos desta última (você vai ver que vamos encontrar a mesma oposição entre os instrumentos melódicos e os instrumentos harmônicos no mito de Midas). É claro, o ardil de Cadmos tem como meta a obtenção dos nervos de Zeus:
E com um sinal das suas terríveis sobrancelhas, Tífon concorda;
sacode o cacheado da sua cabeleira de víboras e elas cospem veneno, fazendo-o cair como chuva sobre as montanhas. Ele corre até o seu antro, busca os nervos que tinham ficado no chão durante o combate travado contra Zeus e os entrega ao astucioso Cadmos, como presente de hospitalidade. O falso pastor agradece a divina oferta. Tateia com todo cuidado os nervos e, a pretexto de usá-los mais tarde como cordas para a sua lira, esconde no buraco de uma rocha o material a ser guardado para Zeus, o matador do Gigante. Depois, com um tom moderado, de lábios fechados, apoiando nos tubos que formam a sua flauta, põe em surdina as suas vozes, tornando a música ainda mais suave. E Tifão ouve com todas as suas inúmeras orelhas. Ouve a harmonia sem compreendê-la. O Gigante está sob encanto: o falso pastor o enfeitiça com a siringe. Ela aparentemente fala da fuga dos deuses, mas é a futura vitória de Zeus, bem próxima, que se celebra. A Tífon, sentado a seu lado, Cadmos canta a morte de Tífon.
Assim que Zeus novamente se põe de pé, a guerra retoma seu curso, que mais do que nunca ameaça a ordem cósmica inteira:
Sob os projéteis do Gigante, a terra se fende, e seus flancos, desnudados, libertam uma veia líquida: do abismo entreaberto se derrama o fluxo dos canais subterrâneos que lançam a água retida no seio do solo. E os rochedos lançados caem como torrentes de pedra do alto dos ares. E afundam no mar[...] Esses projéteis terrestres geram novas ilhas, cujas bases se fixam espontaneamente no mar para ali criar raiz[...] A essa altura, os imutáveis alicerces do cosmos já vacilavam sob os braços de Tífon[...] Dissolviam-se os laços da indissolúvel harmonia.
Dando-nos uma preciosa ajuda para a compreensão do sentido de toda essa narrativa, a deusa Vitória, que acompanha Zeus, apesar de ser uma descendente direta dos Titãs, assustada declara ao senhor do Olimpo:
Apesar de me darem o nome de Titânida (isto é, filha de Titã), não quero ver os Titãs reinando no Olimpo, que sejam você e seus filhos.
Isso de novo indica claramente a meta do conflito: se Tifão ganhar, são as forças do caos, aquelas dos primeiros deuses, que vencem, e o cosmos vai estar definitivamente aniquilado! E Tífon, lançando-se na batalha, não esconde isto, como se pode ver pela maneira como mobiliza “suas tropas”, isto é, no caso, os inúmeros membros que formam o seu corpo. Ele não hesita em mandar que destruam a ordem e, inclusive, em alto e bom som, declara que no final do conflito há de libertar os deuses do caos aprisionados por Zeus no Tártaro, a começar por Atlas, um dos filhos do Titã Jápeto, obrigado a sustentar o cosmos inteiro em suas costas, e Cronos:
Ó braços meus, ataquem a morada de Zeus, sacudam os alicerces do cosmos e os Bem-aventurados, arrebentem o divino ferrolho do Olimpo que se move por si só. Derrubem o pilar do Éter e que Atlas, com essa reviravolta, fuja e deixe cair o orbe constelado do Olimpo, sem mais se preocupar com seu curso circular[...] E Cronos, o comedor de carnes cruas (não esqueça que ele devorou os próprios filhos[...]), é também do meu sangue (todos, na verdade, são descendentes de Gaia e das divindades “caóticas”); para fazer dele um aliado, vou trazê-lo dos abismos subterrâneos novamente para a luz, libertando-o das cadeias que o oprimem (exatamente como fizera Zeus com relação aos Ciclopes e Hecatonquiros: Tifão compreendeu que também precisava de aliados!). Farei com que os Titãs voltem ao Éter (isto é, o céu luminoso em contraste com as trevas do Tártaro); e levarei para debaixo do meu telhado, no céu, os Ciclopes, esses filhos da terra, e os farei fabricar outros dardos de fogo, pois preciso de muitos raios, já que tenho duzentas mãos para combater e não apenas duas, como o Cronida (refere-se a Zeus, pois a palavra significa simplesmente “filho de Cronos”).
Observe como a história se transformou desde Apolodoro, mas também como as transformações são, por assim dizer, “lógicas” e totalmente significativas. Por exemplo, o personagem-chave não é mais Pã, e sim Cadmos. No entanto, pode-se notar que se parecem como dois irmãos: Pã é o deus dos pastores e inventor da siringe, e Cadmos se disfarça de pastor e graças à siringe ele triunfa sobre Tífon! Podemos facilmente imaginar como, ao fio das narrações que eram transmitidas mais pela via oral do que pela escrita, tais transformações se fizeram.
No final, é claro, como em Hesíodo e no nosso falso Apolodoro, Zeus acaba vencendo. Mantendo o mesmo espírito dos seus antecessores, Nono contudo insiste na volta da harmonia e na restauração da ordem cósmica, que ficara bem abalada no decorrer do conflito. Pedaços inteiros de terra, assim como os astros do céu, recuperam seus lugares, e a natureza os reúne de novo harmoniosamente, para formar um verdadeiro cosmos:
No final, a gestão do cosmos, regenerada a natureza primordial, volta a cicatrizar os flancos abertos da terra violentada. Fixa novamente os cimos das ilhas despregadas das suas bases, amarrando-as com laços indissolúveis. A desordem deixa de reinar entre os astros: o Sol restabelece, perto da Virgem com sua Espiga, o Leão de espessa juba, que tinha deixado a trilha do zodíaco. A Lua faz recuar o Câncer, que tinha dado um salto adiante do Leão celeste, e o fixa nos antípodas do gélido Capricórnio.
Ou seja, se traduzirmos essa linguagem figurada, isso quer dizer que tudo volta à ordem, com os astros recuperando suas posições originais, de forma que Zeus pode cumprir suas promessas e celebrar o casamento de Cadmos e Harmonia.
No final, o que sobrou de Tífon? Dois flagelos para os seres humanos, e Nono, nesse ponto, se mantém totalmente fiel a Hesíodo. No mar, os furacões, as tempestades que chamamos “tufões”, ou seja, os ventos nefastos contra os quais os infelizes mortais nada podem — senão, justamente, morrer. E na terra, as terríveis tempestades que destroem de maneira irremediável áreas cultivadas em que os homens investiram todo o seu amor. O que significa, e isso é um ponto importante, essencialmente para os deuses, mais do que para os homens, que o cosmos atingiu uma forma de perfeição. Todas as forças do caos passam a estar sob controle, e os pequenos contratempos que porventura ainda subsistem recaem exclusivamente sobre os humanos. Como sublinhou Jean-Pierre Vernant, a vitória sobre Tífon, com os restos dos seus poderes nocivos afetando apenas a terra, significa que o tempo, a desordem e a morte foram expedidos para o mundo dos mortais, ficando o dos deuses ao abrigo de todas as intempéries. Para ele, pode-se dizer, as imperfeições remanescentes são menores, não essenciais. Na verdade, se pensar bem, isso nem significa que sejam imperfeições reais: sem o tempo, sem a história, e com isso uma certa desordem, alguma desarmonia e desequilíbrio, nada mais aconteceria! O cosmos perfeitamente harmonioso e equilibrado seria imóvel. Nada se mexeria, ele estaria confinado na mais total imobilidade, tornando-se um tédio mortal. Nesse sentido, felizmente se manteve algum caos, com o derrotado Tífon fazendo ainda ouvir de vez em quando a sua voz; talvez seja o significado último desses lançamentos de fumaça e sopro intempestivos que subsistem no final desse último episódio da cosmogonia.
Seguindo Hesíodo, fizemos o giro pelas etapas por que passaram os deuses do Olimpo para criar o cosmos. Porém, segundo algumas tradições mais tardias, que Apolodoro como sempre menciona, houve ainda uma ocorrência intermediária entre a titanomaquia e a guerra contra Tífon — a “gigantomaquia”, isto é, o “combate contra os Gigantes”. De fato, segundo essa versão, Gaia, antes de “fabricar” Tífon com Tártaro, teria defendido os Gigantes revoltados contra os deuses e foi, aliás, pelo fato de esses seus filhos terem sido aniquilados pelos olímpicos que ela criou Tífon, em represália.
Insisto, porém, que não se veem traços dessa “gigantomaquia” nos tempos mais recuados, nem com Hesíodo, nem com Homero. A hipótese, no entanto, não é absurda: ela se encaixa bem com o episódio de Tífon, quer dizer, com a ideia da necessidade de progressivamente se dominarem todas as forças do caos — inclusive esta representada pelos Gigantes — para o perfeito equilíbrio do cosmos.
Por isso, pode ser útil que eu fale um pouco dessa famosa disputa.
A gigantomaquia: o combate entre os deuses e os Gigantes
Você certamente se lembra da origem dos Gigantes (se não, dê uma olhada no quadro-resumo que fiz ainda há pouco): eles nasceram do sangue de Urano, espalhado pela terra por seu filho, Cronos. Pertencem então, como Tífon e os Titãs, ao círculo das mais arcaicas divindades, ainda próximas de Caos e que incessantemente ameaçam a construção da ordem cósmica harmoniosa, equilibrada e justa que Zeus almeja. Para Hesíodo, a edificação desse belo universo manifestamente se conclui com a vitória de Zeus sobre Tífon. Como acabo de dizer, porém, alguns autores mais tardios consideraram que ele precisou anteriormente dar cabo dos Gigantes para conseguir um cosmos perfeito. Dominados pela arrogância propriamente desmedida e louca que os gregos chamam
hybris, os Gigantes simplesmente tentam se apoderar do Olimpo. O poeta Píndaro faz alusão a isso em várias ocasiões.
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Mas, como já é de praxe, foi preciso esperar Apolodoro para uma narrativa mais detalhada dessa guerra. Esse último episódio, no entanto, já se encontrava em Ovídio, um grande poeta latino do século I, cuja obra, intitulada Metamorfoses, foi uma das primeiras a nos dar uma versão coerente disso tudo. Os dois autores situam a gigantomaquia em época anterior à do combate contra Tífon. Em Apolodoro, como acabo de dizer, é por estar furiosa com Zeus, que tinha exterminado os Gigantes, que Gaia concebe Tífon — para que as forças caóticas e titânicas, de que também é mãe, não desapareçam totalmente diante da ordem imutável e imóvel.
É sob essa perspectiva que devem ser lidas as duas narrativas, igualmente interessantes e significativas quanto ao problema que surge da necessidade de integrar todas as forças anticósmicas, sem exceção alguma.
Comecemos por Ovídio: o combate se desenvolve numa época em que a terra é povoada por uma certa raça humana, a raça de ferro, particularmente corrupta, desonesta e violenta. Ovídio acrescenta, porém, que as alturas superiores do Éter — isto é, os píncaros do Olimpo, onde vivem os deuses — não se comportam melhor do que as regiões inferiores. Nem representam um asilo seguro, pois os Gigantes resolvem invadi-las. Como de fato são gigantescos e têm uma força prodigiosa, eles pura e simplesmente juntam montanhas, uma em cima das outras, fazendo uma espécie de escada para poder subir até o Olimpo e desafiar os deuses! Ovídio não nos diz grande coisa sobre a guerra propriamente, a não ser que Zeus apela para a sua arma favorita, o raio, e derruba as montanhas sobre os Gigantes, que ficam soterrados sob uma massa colossal de terra. Feridos, eles perdem rios de sangue, e Gaia, querendo evitar que sua raça desapareça totalmente — apesar de tudo, são seus filhos —, fabrica, com a mistura de sangue e de terra que escapa desses restos, uma nova espécie viva, com “face humana”, mas vivendo na violência e no gosto pela carnificina, tendo em vista as suas origens.
A narrativa de Apolodoro é mais circunstanciada. Descreve em detalhe como cada um dos deuses do Olimpo assume sua tarefa para, juntos, dar conta dos Gigantes: Zeus, é claro, mas também Apolo, Hera, Dioniso, Poseidon, Hermes, Ártemis, as Moiras etc. O combate é de extrema violência, terrivelmente sangrento. Para que se tenha uma ideia, Atena não se contenta, por exemplo, de matar o Gigante chamado Palas, mas o esfola vivo para fazer com sua pele uma espécie de escudo que ela cola a seu próprio corpo! Quanto a Apolo, o deus literalmente acerta uma das suas flechas no olho direito de um dos adversários, enquanto Héracles, por sua vez, envia-lhe outra no olho esquerdo! Resumindo, não há trégua. Principalmente, como dissera Píndaro, é preciso, para real e definitivamente dar cabo dos Gigantes, que um semideus ajude os olímpicos no combate: trata-se de Héracles, que, toda vez que um Gigante é derrubado por um deus, ajuda na conclusão. Como sempre, entretanto, apenas a força não basta. Com seu habitual jogo duplo, Gaia — ela quer a construção do cosmos equilibrado, mas, ao mesmo tempo, não admite que as forças primordiais do caos sejam totalmente eliminadas — planeja ajudar os Gigantes, dando-lhes uma erva que os tornaria imortais. Afinal de contas, os Gigantes são seus filhos e é normal que ela os proteja. Como é sempre o caso, porém, uma razão mais forte a estimula: sem as forças caóticas, o mundo morre e nada mais acontece. O equilíbrio e a ordem são, sem dúvida alguma, coisas necessárias, mas se houver somente isto, o universo se paralisa. Ela precisa, então, preservar também essa sua descendência que encarna, mesmo que às custas da violência, o movimento indispensável à vida.
Zeus, no entanto, que tudo sabe e vê, toma a dianteira — é uma prova da sua inteligência astuciosa, de sua métis —, indo pessoalmente cortar todas as ervas da imortalidade que Gaia faz crescer, e assim os Gigantes perdem todas as chances de ganhar o combate.
Com essa última peripécia se conclui toda a cosmogonia. Essa guerra, de fato, é o último episódio a marcar a história da construção do mundo. Após a morte dos Gigantes e a vitória de Zeus sobre Tífon, as forças caóticas que vimos em ação ao longo desse relato primordial são enfim definitivamente silenciadas ou, melhor dizendo, integradas ao conjunto e, na concepção forte do termo, “postas em seu lugar”, sob a terra. O cosmos está, enfim, solidamente estabelecido. Sem dúvida restam ainda, para os humanos, alguns ventos ruins, alguns terremotos acompanhados eventualmente de erupções vulcânicas. Mas, grosso modo, o cosmos está edificado, finalmente sobre bases sólidas.Resta saber qual lugar vão poder nele ocupar os mortais que somos. Resta ver também como e por que eles nascem.
(Luc Ferry - A sabedoria dos mitos gregos)
NOTAS:
12 Exceto duas outras divindades, filhas de Caos, que vamos por enquanto deixar de lado: Érebo, as trevas, e Nyx, a noite. Elas designam duas diferentes escuridões. Érebo é antes de tudo o escuro reinante no subsolo, por exemplo, no Tártaro. Noite é a obscuridade de fora, não a que se encontra sob a terra, mas acima dela, sob o céu. Ela, então, não é absoluta, mas relativa ao dia que a sucede, todos os dias, justamente! Érebo e Noite fazem amor e dão origem a duas outras criaturas divinas. Uma delas é Éter, a bruma luminosa que envolve o alto das montanhas, lugar sempre deslumbrante de brilho, situado acima das nuvens. É a luz que ilumina a morada dos deuses, o Olimpo, e, de certa maneira, constitui o contrário absoluto de Érebo, a escuridão das profundezas. Ao lado de Éter nasce também Hemera, que é justamente o dia que toda manhã sucede a noite.
13 Cito os seus nomes — mas saiba desde já que é principalmente o do caçula, Cronos, que se deve guardar, pois vai ter um dos principais papéis na história que vem a seguir. Temos então por ordem de nascimento: Oceano, o rio-oceano que a mitologia descreve dando a volta completa na Terra, depois Ceo, Crio, Hipériom, Jápeto e, volto a insistir, Cronos “de curvo pensar”, como sempre diz Hesíodo, logo veremos por quê. Do lado das moças, houve Teia — o que em grego quer dizer “a divina” —, Reia, Têmis (a justiça), Mnemósine (a memória), Febe (a luminosa) e Tétis, que inspira amor.
14 Hesíodo não nos diz quantas são nem cita nomes. Será preciso esperar seis séculos para saber um pouco mais, graças ao grande poeta latino Virgílio, que viveu no século I a.C. — dou tal precisão para que você tenha uma ideia do tempo que foi necessário para a constituição dessas famosas narrativas mitológicas. Não nasceram de uma só vez, nem vieram de um único autor, mas foram incessantemente completadas por poetas e filósofos, no decorrer dos séculos!
15 A história foi contada sobretudo por um certo Apolodoro, um escritor — um mitógrafo — do século II d.C.
16 Listo a seguir, para ser mais completo, a linhagem dos filhos que Caos “fabrica” sozinho e a dos filhos que Gaia igualmente concebe sozinha. Pelo lado de Caos, temos Érebo, as trevas que reinam sob a terra, e Nyx, a noite que reina acima. Depois, dos amores de Érebo e Nyx, nascem os primeiros netos de Caos, Éter, a bruma luminosa que vai dominar a futura morada dos deuses no alto do Olimpo, e Hemera, o dia que sucede a noite. Ninguém de toda essa linhagem terá qualquer papel particular na próxima guerra dos deuses. Você pode então deixá-la de lado por enquanto, e eu a menciono apenas para que a tenha na memória.
17 Segundo a lenda, as Moiras são três irmãs, Átropos, Cloto e Láquesis, que regulam a duração da vida de cada mortal através de um fio que a primeira delas tece, a segunda enrola e a terceira corta, no momento da morte. Em latim, as Moiras foram chamadas “Parcas”.
18 Cito a bela tradução francesa de dois professores pesquisadores da Universidade de Besançon, Jean-Claude Carrière e Bertrand Massonie, que tiveram a feliz ideia de traduzir Biblioteca e publicá-la nos anais literários da universidade (distribuição Belles Lettres). Encontra-se facilmente na internet o texto grego.
19 Sobretudo na primeira Nemeia, em que Gaia previne os deuses de que não ganhariam a guerra sem a ajuda de dois semideuses, Dioniso e Héracles.