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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Não há criança "inocente". Em particular, reconhecemos de bom grado, com os freudianos, as inumeráveis relações que certas matérias e formas que cercam as crianças mantêm com a sexualidade. Mas, com isso, não entendemos que um instinto sexual já constituído tenham-nas carregado de significação sexual. Ao contrário, parece-nos que essas matérias e formas são captadas de per si e revelam à criança modos de ser e relações do Para-si com o ser que irão esclarecer e moldar sua sexualidade. Para citar apenas um exemplo, muitos psicanalistas ficaram impressionados com a atração que todas as espécies de buracos exercem sobre a criança (buracos na areia, na terra, grutas, cavernas, anfractuosidades ), e explicaram esta atração seja pelo caráter anal da sexualidade infantil, seja pelo choque pré-natal, seja inclusive por um pressentimento do ato sexual propriamente dito. Não poderíamos aceitar nenhuma dessas explicações: a do "trauma do nascimento" é altamente fantasiosa. A que compara o buraco ao órgão sexual feminino pressupõe na criança uma experiência que não poderia ter ou um pressentimento injustificável. Quanto à sexualidade "anal" da criança, não pensamos em negá-la, mas, para que pudesse iluminar e carregar de simbolismo os buracos que ela encontra no campo perceptivo, seria necessário que a criança captasse seu ânus como um buraco; ou melhor, seria preciso que a apreensão da essência do buraco, do orifício, correspondesse à sensação que seu ânus lhe provoca. Mas demonstramos o bastante o caráter subjetivo do "corpo para mim" para compreendermos a impossibilidade de que a criança venha a captar uma parte qualquer de seu corpo como estrutura objetiva do universo. É para o outro que o ânus aparece como orifício. Não poderia ser vivido como tal; sequer os cuidados íntimos que a mãe presta à criança poderiam revelá-lo por este aspecto, pois o ânus, zona erógena, zona de dor, não está provido de terminações nervosas táteis. Ao contrário, é por meio do outro - pelas palavras que a mãe emprega para designar o corpo da criança - que esta aprende que seu ânus é um buraco. Portanto, é a natureza objetiva do buraco percebido no mundo que irá iluminar para a criança a estrutura objetiva e o sentido da zona anal e irá atribuir um sentido transcendente às sensações erógenas que, até então, a criança se limitava a "existir". Em si mesmo, o buraco é o símbolo de um modo de ser que a psicanálise existencial deve esclarecer. Não podemos insistir aqui nesse ponto. Todavia, podemos ver logo que o buraco se apresenta originariamente como um nada "a preencher" com minha própria carne: a criança não pode abster-se de pôr seu dedo ou o braço inteiro no buraco. Este me apresenta, pois, a imagem vazia de mim mesmo; não me cabe senão enfiar-me nele a fim de me fazer existir no mundo que me espera. O ideal do buraco, portanto, é a escavação que se modelará cuidadosamente sobre minha carne, de maneira que, comprimindo-me e adaptando-me estreitamente nela, contribuirei para fazer existir a plenitude de ser no mundo. Assim, tapar o buraco é originariamente fazer o sacrifício de meu corpo para que a plenitude de ser exista, ou seja, sofrer a paixão do Para-si para modelar, aperfeiçoar e preservar a totalidade do Em-si (Seria preciso observar também a importância da tendência inversa, a de cavar buracos, que exigiria de per si uma análise existencial.). Captamos aqui, em sua origem, uma das tendências mais fundamentais da realidade humana: a tendência a preencher. Iremos encontrar esta tendência no adolescente e no adulto; passamos boa parte de nossa vida a tapar buracos, preencher vazios, realizar e fundamentar simbolicamente o pleno. A partir de suas primeiras experiências, a criança reconhece que ela mesma tem orifícios. Quando põe o dedo na boca, tenta fechar os buracos do seu rosto, espera que o dedo se funda com os lábios e o palato e tape o orifício bucal, assim como se tapa com cimento a fenda de uma parede; ela busca a densidade, a plenitude uniforme e esférica do ser de Parmênides; e, se chupa o dedo, é precisamente para diluí-lo, transformá-lo em uma pasta grudenta que irá obturar o buraco de sua boca. Esta tendência é certamente uma das mais fundamentais entre aquelas que servem de base ao ato de comer: 0 alimento é a "massa" que obturará a boca; comer, entre outras coisas, é se "encher". É somente a partir daí que podemos passar à sexualidade: a obscenidade do sexo feminino é a de qualquer coisa que seja escancarada; é um chamado de ser, como o são, aliás, todos os buracos; em si, a mulher chama uma carne estranha que deve transformá-la em plenitude de ser por penetração e diluição. E, inversamente, a mulher sente sua condição como um chamado, precisamente porque é "esburacada". É a verdadeira origem do complexo adleriano. Sem dúvida alguma, o sexo é boca, e boca voraz que engole o pênis - o que bem pode levar à idéia de castração: o ato amoroso é castração do homem; mas, antes de tudo, o sexo é buraco. Portanto, trata-se aqui de uma contribuição pré-sexual que se converterá em um dos componentes da sexualidade como atitude humana empírica e complexa, mas que, longe de extrair sua origem do ser-sexuado, nada tem em comum com a sexualidade fundamental cuja natureza explicamos na terceira parte. Nem por isso a experiência do buraco, quando a criança vê a realidade, deixa de incluir o pressentimento ontológico da experiência sexual em geral; é com sua carne que a criança tapa o buraco, e o buraco, antes de toda especificação sexual, é uma espera obscena, um apelo à carne. Captamos a importância que a elucidação dessas categorias existenciais, imediatas e concretas, irá assumir para a psicanálise existencial.
(Sartre - O Ser e o Nada)