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Uma das coisas mais difíceis que se pode perguntar a um cientista é o que é a ciência e como é possível distingui-la do que não é ciência. Um recurso muito rigoroso para procurar uma resposta, do ponto de vista metodológico, é buscar a evolução histórica do fazer científico. Isso nos remete à Grécia antiga e ao surgimento da filosofia, conhecida como a mãe da ciência moderna.

No entanto, não será muito estimulante perceber que uma das coisas mais difíceis que se pode perguntar a um filósofo é justamente o que é a filosofia. Existem pelo menos três respostas diferentes a essa pergunta, o que bastaria, segundo alguns filósofos, mesmo sem saber quais são elas, para afirmar com segurança que não sabemos o que é a filosofia. Mas esse aparente paradoxo nos ajuda a perceber a complexidade do assunto que queremos desenvolver na escola, com jovens que iniciam a adolescência.

Vamos às respostas. Uma das mais tradicionais, segundo alguns filósofos, diz que a filosofia se distingue por seu objeto, pois se ocupa de três questões fundamentais: o que existe no mundo, como sabemos o que existe no mundo e o que vamos fazer a respeito disso. Ao buscar a resposta a cada uma dessas perguntas, vamos nos envolver com três áreas do saber filosófico. Ao procurar saber o que existe no mundo, vamos estudar a natureza da realidade, no campo do conhecimento chamado pelos filósofos de “metafísica”. Ao tentar compreender como podemos saber o que existe no mundo, vamos estudar as condições necessárias para se conhecer algo, no campo do conhecimento chamado de “epistemologia”. Por fim, ao estudar o que se pode e o que não se pode fazer diante dos fatos do mundo e das formas de conhecê-los, vamos lidar com o que os filósofos chamam de “ética”. Todos nós certamente já dedicamos um bom tempo a essas três questões, mas os que procuram sistematizar, registrar e comunicar o resultado de seus pensamentos são os filósofos que se tornaram mais famosos.

Essa resposta que confere relevo ao objeto da filosofia foi profundamente questionada a partir de Nicolau Maquiavel (1469-1527), que percebeu a necessidade de buscar incessantemente novas perguntas, para além da metafísica, da epistemologia e da ética, afirmando que a questão central a enfrentar será sempre a manutenção do poder, a política.1

Essa primeira resposta para a pergunta sobre o que é a filosofia nos ajuda a entender a segunda: pode-se filosofar sobre qualquer coisa – ou seja, não é o objeto da reflexão que distingue o filosofar –, mas o que importa é o método que se utiliza nessa sistematização cuidadosa do pensamento. O apoio na razão, de maneira explícita e justificada, seria a característica distintiva da filosofia, independentemente do objeto sobre o qual ela se debruça.

A defesa do método e da razão como parte essencial da filosofia encontrou oponentes intelectualmente robustos, desde Immanuel Kant (1724-1804) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) até o contemporâneo Paul Karl Feyerabend (1924-1994). Tais filósofos, cada qual a seu modo, questionaram a objetividade de qualquer método e expuseram a validade relativa não apenas da reflexão filosófica, mas também das teorias científicas, convidando-nos a criticar a forma de raciocínio que utilizamos a qualquer tempo.
Finalmente, a terceira resposta, talvez a mais antiga. Para alguns filósofos, a filosofia é uma atitude em relação à vida, ou seja, essencialmente um modo de viver. Ela nos leva a posições críticas em relação à forma de conceber coisas, fenômenos e comportamentos, uma recusa inicial em aceitar passivamente o que todas as pessoas aceitam sem refletir mais profundamente a respeito. Talvez o maior exemplo dessa posição seja Sócrates, que levou ao extremo seu “amor pela sabedoria”, o significado da palavra “filosofia” em grego. Ele insistia em comunicar o resultado da sistematização de seus pensamentos críticos (que não cuidou de registrar) e acabou condenado à morte por isso. Por coerência com seu “modo de vida”, com sua crença de que uma vida sem reflexão profunda não vale a pena ser vivida, enfrentou dignamente seu fim trágico e não fugiu ao castigo capital.

A visão socrática de filosofia foi questionada por outros filósofos, sendo um dos mais famosos Francis Bacon (1561-1626), que defendeu o primado do método e da razão, pois a vida humana tem a influência de “ídolos”, que ofuscam nossa visão. Como vimos, a defesa do método, por sua vez, não esteve imune a críticas.

Assim, apontando honestamente as incertezas de base em nosso tema central, admito que, em lugar de buscar resolver a questão de definir o que é a ciência, o que seria algo pretensioso, optei por trilhar um caminho mais suave, trocando a investigação da essência de nosso objeto de estudo pela descrição do que ele tem sido, deixando ao leitor a tarefa de formular seu próprio conceito de ciência. Assim, convido o leitor a iniciar aqui uma jornada muito particular e modesta junto ao pensamento científico que integra a cultura ocidental e que é, portanto, essencial aos currículos do ensino fundamental. Portanto, do ponto de vista metodológico, justifica-se o recurso da exposição histórica diante da impossibilidade de definir simplesmente o que é ciência; cabe mostrar como o pensamento científico se transformou no decorrer dos tempos. No entanto, tampouco poderia enfrentar a tarefa de produzir um compêndio de história da ciência, por isso escolhi três ícones para discutir partes importantes de seus trabalhos nos próximos capítulos. Assim como três pontos definem um plano, três pensadores poderão nos dar uma ideia do vasto horizonte que delineia o panorama científico moderno. Mas antes será necessário entender o lugar onde se inicia essa jornada.

 

(Nélio Bizzo - Pensamento Científico, A natureza da ciência no ensino fundamental)

publicado às 01:02



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