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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Uma vez por ano, aproximadamente, Job achava um jeito de vir me visitar. Só ficava em minha casa por alguns dias, apenas o suficiente para que se ajustassem ao seu tamanho algumas de minhas roupas usadas ou para que o dentista da cidade lhe arrancasse, às minhas expensas, um molar cariado.
Minhas relações com Job remontam â época em que a Previdência Social ainda não existia, quer dizer, já vêm de longa data. Naqueles tempos, os pobres eram responsáveis e sabiam, com toda a certeza, que sua velhice não conheceria pensão alguma.
Pois exatamente Job era o mais livre dos pobres que já conheci. Vê-lo tão pobre e tão livre, tão despojado de qualquer tipo de proteção do governo, tão pouco solidário com uma sociedade na qual vivia como pária voluntário e feliz, tudo isto me proporcionava uma deliciosa má consciência cada vez que ele me visitava. Má porque a mim me envergonhava sentir mais interesse pelo pitoresco e o fantástico, do ponto-de-vista social, que pelas misérias humanas; e deliciosa porque (graças a Deus!) toda vocação justiceira, socialista ou sindicalista se desvanecia em mim ante apenas a presença daquele gigante esfarrapado que só consentia em trabalhar esporadicamente, e que, no entanto, respeitava sinceramente qualquer patrão temporário e se prestava com desenvoltura ao tão tranqüilizador jogo do paternalismo.
Quando via sua barba negra como o azeviche e seu chapéu redondo e amarfanhado, gritava-lhe: "Bem-vindo, Job!". E ele esperava, de pé junto ao portão do jardim, até que eu o convidasse a entrar. Meu cachorro, que o reconhecia de um ano para o outro, recebia-o sempre com enorme alegria; farejava-o de muito longe e nunca latia para ele.
- Não queria passar por sua cidade sem vir cumprimentá-lo dizia-me Job cortezmente.
Depois dos cumprimentos de praxe, apertávamos as mãos e eu o precedia até a cozinha, onde bebíamos alguns copos de vinho. Uma vez concluído este rito, acompanhava-o cerimoniosamente ao depósito de lenha, onde ele improvisava uma cama, como da vez anterior, estendendo um monte de palha sobre a serragem. Só a partir desse momento começávamos a verdadeira conversa.
- À força de dormir ao ar livre - dizia-me Job - acabei por converter-me num animal. Pouco a pouco minha alma foi-se evaporando. Vivo seguindo meus instintos, minhas necessidades e meus hábitos. Já não tenho honra nem moral, nem ambição. E não só isto, mas tampouco penso no futuro, nem na morte. Na verdade, sou um animal...
- Doméstico ou selvagem?
- Meus costumes são domésticos, mas meus instintos são selvagens. E entre as duas tendências estabeleceu-se um meio-termo. Se vivo muitos dias seguidos numa casa, sinto que uma alma se agita dentro de mim. Mas quando fico muito tempo dormindo em meio à natureza, então minha consciência de homem se dilui, até extinguir-se.
- E como você é mais feliz, Job: com ou sem alma?
- Quando sinto que tenho uma alma, sei que sou um desgraçado. Quando não a sinto, simplesmente não sei se sou feliz.
- Você escolheu viver livre, sem vínculos, sem casa, sem trabalho... Nada o obriga a levar esta vida de vagabundo. Você é forte, inteligente, inclusive bastante instruído, e ainda jovem o bastante para reintegrar-se facilmente na sociedade dos sedentários. Que está esperando para fazê-lo?
- Espero que meu lar fique habitável...
A palavra essencial fora pronunciada; agora tinha em minhas mãos a chave do mistério; Job, privado de seu lar natal, era incapaz de ser feliz. Sem dúvida, este lar estava amaldiçoado e era tão maléfico que ninguém podia viver lá são e salvo.
(ROGER DE LAFFOREST - CASAS QUE MATAM )