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O mais livre dos pobres

por Thynus, em 26.09.14

Uma vez por ano, aproximadamente, Job achava um jeito de vir me visitar. Só ficava em minha casa por alguns dias, apenas o suficiente para que se ajustassem ao seu tamanho algumas de minhas roupas usadas ou para que o dentista da cidade lhe arrancasse, às minhas expensas, um molar cariado.
Minhas relações com Job remontam â época em que a Previdência Social ainda não existia, quer dizer, já vêm de longa data. Naqueles tempos, os pobres eram responsáveis e sabiam, com toda a certeza, que sua velhice não conheceria pensão alguma.
Pois exatamente Job era o mais livre dos pobres que já conheci. Vê-lo tão pobre e tão livre, tão despojado de qualquer tipo de proteção do governo, tão pouco solidário com uma sociedade na qual vivia como pária voluntário e feliz, tudo isto me proporcionava uma deliciosa má consciência cada vez que ele me visitava. Má porque a mim me envergonhava sentir mais interesse pelo pitoresco e o fantástico, do ponto-de-vista social, que pelas misérias humanas; e deliciosa porque (graças a Deus!) toda vocação justiceira, socialista ou sindicalista se desvanecia em mim ante apenas a presença daquele gigante esfarrapado que só consentia em trabalhar esporadicamente, e que, no entanto, respeitava sinceramente qualquer patrão temporário e se prestava com desenvoltura ao tão tranqüilizador jogo do paternalismo.
Quando via sua barba negra como o azeviche e seu chapéu redondo e amarfanhado, gritava-lhe: "Bem-vindo, Job!". E ele esperava, de pé junto ao portão do jardim, até que eu o convidasse a entrar. Meu cachorro, que o reconhecia de um ano para o outro, recebia-o sempre com enorme alegria; farejava-o de muito longe e nunca latia para ele.
- Não queria passar por sua cidade sem vir cumprimentá-lo dizia-me Job cortezmente.
Depois dos cumprimentos de praxe, apertávamos as mãos e eu o precedia até a cozinha, onde bebíamos alguns copos de vinho. Uma vez concluído este rito, acompanhava-o cerimoniosamente ao depósito de lenha, onde ele improvisava uma cama, como da vez anterior, estendendo um monte de palha sobre a serragem. Só a partir desse momento começávamos a verdadeira conversa.
- À força de dormir ao ar livre - dizia-me Job - acabei por converter-me num animal. Pouco a pouco minha alma foi-se evaporando. Vivo seguindo meus instintos, minhas necessidades e meus hábitos. Já não tenho honra nem moral, nem ambição. E não só isto, mas tampouco penso no futuro, nem na morte. Na verdade, sou um animal...
- Doméstico ou selvagem?
- Meus costumes são domésticos, mas meus instintos são selvagens. E entre as duas tendências estabeleceu-se um meio-termo. Se vivo muitos dias seguidos numa casa, sinto que uma alma se agita dentro de mim. Mas quando fico muito tempo dormindo em meio à natureza, então minha consciência de homem se dilui, até extinguir-se.
- E como você é mais feliz, Job: com ou sem alma?
- Quando sinto que tenho uma alma, sei que sou um desgraçado. Quando não a sinto, simplesmente não sei se sou feliz.
- Você escolheu viver livre, sem vínculos, sem casa, sem trabalho... Nada o obriga a levar esta vida de vagabundo. Você é forte, inteligente, inclusive bastante instruído, e ainda jovem o bastante para reintegrar-se facilmente na sociedade dos sedentários. Que está esperando para fazê-lo?
- Espero que meu lar fique habitável...
A palavra essencial fora pronunciada; agora tinha em minhas mãos a chave do mistério; Job, privado de seu lar natal, era incapaz de ser feliz. Sem dúvida, este lar estava amaldiçoado e era tão maléfico que ninguém podia viver lá são e salvo.

(ROGER DE LAFFOREST - CASAS QUE MATAM )

publicado às 15:57



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