Em sensu proprio, o dogma torna-se revoltante. Pois, em virtude das penas eternas do inferno, não apenas faz expiar com infindáveis martírios os erros ou até mesmo a falta de fé de uma vida que, na maioria das vezes, não chega aos vinte anos, mas também faz com que essa condenação quase universal constitua na verdade o efeito de um pecado original e, portanto, o resultado inevitável da primeira transgressão do homem. No entanto, de todo modo essa transgressão deveria ter sido prevista por aquele que, em primeiro lugar, não criou os homens melhores do que são, e depois lhes preparou uma armadilha, mesmo sabendo que nela cairiam, uma vez que tudo era obra sua e nada permanecia escondido às suas vistas. Sendo assim, ele teria evocado do nada para a existência um gênero humano fraco e sujeito ao pecado, para depois condená-lo ao martírio infindável. Por fim, há que se acrescentar que Deus, que prescreve a indulgência e o perdão a toda culpa até chegar ao amor pelo inimigo, não manifesta nenhum sentimento semelhante, mas cai em sentimentos opostos; isso porque uma pena, que sucede ao fim das coisas, quando tudo já passou e se concluiu, não pode ter como objetivo nem a melhora, nem a intimidação e, portanto, não passa de uma vingança. Visto por esse ângulo, chega a parecer que, na prática, todo o gênero humano tenha sido destinado e criado expressamente para a tortura e a condenação eternas — a não ser por aquelas poucas exceções que, não se sabe por quê, foram salvas pela escolha divina. Sem levar em conta tais casos, o querido Deus parece ter criado o mundo para que o diabo o carregasse; sendo assim, ele teria feito muito melhor se tivesse deixado de criá-lo.
Sobre o inferno e os seus horrores, escreveu S. Tomás de Aquino, o doutor angélico: "Aos bem-aventurados não se lhes deve tirar nada que pertença à perfeição. Mas cada coisa conhece-se melhor pela sua comparação com a contrária, uma vez que 'os contrários contrapostos entre si brilham mais'. E por isso, a fim de que a bem-aventurança dos santos os satisfaça mais e dêem por ela abundantes graças a Deus, concede-se-lhes que contemplem com toda a nitidez, perfeitamente, as penas dos ímpios." Quando se lê este texto e outros semelhantes, somos assaltados pela pergunta: como é que é possível esta barbaridade sádica? O inferno foi o maior polícia do mundo. Mas, por paradoxal que pareça, há nele também uma das expressões maiores da dignidade humana, na medida em que afirma até ao limite a liberdade e a exigência de justiça.
Na sua dramaticidade, o chamado dogma do inferno, que - note-se - não se encontra no Credo, quer dizer: és livre, não tens a salvação assegurada automaticamente, esta existência terrestre é séria, podes falhar radicalmente o sentido da tua vida. Pergunta-se, porém: será que alguém está de facto condenado no inferno ou virá a sê-lo?
Cada vez mais a teologia faz notar que não há "simetria" entre o céu e o inferno, pois enquanto a salvação é a consumação definitiva da existência humana pela graça de Deus, a condenação seria a consumação definitiva na negatividade operada pelo homem. Ora, o que é que pode querer dizer uma consumação definitiva na própria negatividade, um não a Deus, escolhido livremente, e que Deus levaria a uma espécie de plenitude e definitividade?
Por isso, o inferno só pode querer dizer a própria aniquilação. No caso-limite de haver realmente alguém que se fechasse radical, obstinada e definitivamente a todo o amor a Deus e às criaturas, excluindo Deus, então, não podendo, na morte, ser encontrado por Deus, porque O não aceita, anular-se-ia definitivamente: não participaria na vida eterna, mas também não seria eternamente torturado, pois, pela morte, simplesmente deixaria de existir, desaparecendo no nada.
Por um lado, como é que uma liberdade frágil e limitada no tempo pode merecer um castigo eterno? Por outro, quando se olha para a crueldade bruta da história e todos os infernos que os humanos causaram e causamos a outros humanos, sobretudo quando se trata de vítimas inocentes, entende-se que bem e mal não se identificam e, desde a raiz de nós, exigimos justiça. Mas o juízo final sobre o mundo pertence exclusivamente a Deus, e já foi pronunciado na morte e ressurreição de Jesus Cristo, tendo, por isso, o cristão a esperança fundada de que o juízo sobre cada homem e cada mulher e sobre a história é um juízo de misericórdia infinita. No fim, Deus virá ao nosso encontro para entregar-se plenamente a todos, embora segundo a capacidade de cada um, aquela medida para a qual, de qualquer modo, esta nossa existência histórico-mundana não será indiferente.
(Anselmo Borges - Janelas do (In)Visível)