Moral aristocrática e moral meritocrática: as duas definições da virtude e a valorização moderna do trabalho
Vimos claramente por que modelo natural algum não pode mais responder à pergunta clássica “O que devo fazer?”. Não apenas a natureza não é absolutamente vista como boa em si mesma, mas, na maior parte do tempo, temos de nos opor a ela e combatê-la para conseguir algum bem. E isso é verdade tanto em nós quanto fora de nós.
Fora de nós? Pense, por exemplo, no famoso terremoto de Lisboa que, em 1755, provocou vários milhares de mortes. Na época, impressionou a todos, e a maioria dos filósofos foi interrogada sobre o sentido das catástrofes naturais: seria essa natureza hostil e perigosa, para não dizer malvada, que deveríamos tomar como modelo, como recomendavam os Antigos? Certamente que não.
E em nós, as coisas são, se possível, piores ainda: se atendo à minha natureza, é contínua e fortemente o egoísmo que fala em mim, que me ordena seguir meus interesses em detrimento do interesse dos outros. Como poderia eu por um instante imaginar conseguir alcançar o bem comum, o interesse geral, se é apenas minha natureza que me contento em ouvir? A verdade é que, para ela, os outros sempre podem esperar...
Donde a questão crucial da ética num universo moderno que abdicou das cosmologias antigas: em que realidade enraizar uma nova ordem; como refazer um mundo coerente entre os humanos, sem para isso recorrer à natureza — que não é mais um cosmos —, nem à divindade, que só vale para os crentes?
Resposta que funda o humanismo moderno tanto no plano moral quanto no político e no jurídico: exclusivamente na vontade dos homens, desde que eles aceitem se restringir a si mesmos, estabelecer seus limites, compreendendo que a liberdade de cada um deve, às vezes, terminar onde começa a liberdade do outro. É apenas dessa limitação voluntária de nossos infinitos desejos de expansão e conquista que pode nascer uma relação pacífica e respeitosa entre os homens — poderíamos dizer “um novo cosmos”, mas agora ideal e não mais natural, a ser construído pelo homem, e não fato pronto.
Essa “segunda natureza”, essa coerência inventada e produzida pela vontade livre dos seres humanos em nome de valores comuns, Kant designa “reino dos fins”. Por que essa formulação? Simplesmente porque nesse “novo mundo”, mundo da vontade e não mais da natureza, os seres humanos serão, enfim, tratados como “fins” e não mais como meios; como seres de dignidade absoluta que não poderiam ser usados para a realização de objetivos pretensamente superiores. No mundo antigo, no Todo cósmico, o humano não era senão um átomo entre outros, um fragmento de uma realidade muito superior a ele. Agora ele se torna o centro do universo, o ser por excelência digno de respeito absoluto.
Isso pode lhe parecer evidente, mas não se esqueça de que, na época, foi uma revolução extraordinária.
Se você quiser avaliar o quanto a moral de Kant é revolucionária em relação à dos Antigos, e notadamente à dos estoicos, nada é mais esclarecedor do que verificar a que ponto a definição da noção de “virtude” se inverteu, na passagem de um momento a outro.
Indo diretamente ao ponto: as sabedorias cosmológicas definiam de bom grado a virtude ou a excelência como um prolongamento da natureza, como a realização tão perfeita quanto possível para cada ser daquilo que constitui a natureza, e indica, assim, sua “função” ou sua finalidade. Era na natureza inata de cada um que se devia ler seu destino último. Essa é a razão pela qual Aristóteles, por exemplo, na Ética a Nicômaco, que muitos consideram o mais representativo livro de moral da Antiguidade grega, começa com uma reflexão sobre a finalidade específica do homem entre os outros seres: “Da mesma forma que no caso de um tocador de flauta, de um escultor ou de um artista qualquer e, em geral, para todos os que têm uma função ou atividade determinada, é na função que reside, segundo a opinião corrente, o bem, o ‘sucesso’; pode-se pensar que é assim para o homem, se é verdade que exista uma função especial para o homem” — o que não constitui, evidentemente, nenhuma dúvida, pois seria absurdo pensar “que um carpinteiro ou sapateiro tenham uma função e uma atividade a exercer, mas que o homem não tenha nenhuma, e que a natureza o tenha dispensado de qualquer obra a realizar” (1.197 b 25).
É, portanto, a natureza que estabelece os fins do homem e à ética sua direção. Nesse sentido, Hans Jonas tem razão ao dizer que, no pensamento antigo da cosmologia, os fins “moram na natureza”, se inscrevem nela. O que não significa que, na realização de sua tarefa própria, o indivíduo não encontre dificuldades, não tenha necessidade de exercer sua vontade e suas faculdades de discernimento. Mas acontece com a ética o mesmo que com qualquer outra atividade, por exemplo, a aprendizagem de um instrumento musical: é preciso, sem dúvida, exercício para alguém se tornar o melhor, o excelente, mas acima de tudo é preciso talento.
Mesmo que o mundo aristocrático não exclua certo uso da vontade, só um dom natural pode indicar o caminho a ser seguido e eliminar as dificuldades que o cobrem. Tal é também a razão pela qual a virtude ou a excelência (essas palavras são aqui sinônimas) se define, como eu disse antes com o exemplo do olho, como uma “justa medida”, um intermediário entre os extremos. Se se trata de realizar com perfeição nossa destinação natural, é claro que ela só pode se situar numa posição mediana: assim, por exemplo, a coragem que se situa entre a covardia e a temeridade, ou a boa visão, entre a miopia e a presbiopia, de modo que, no caso, a justa medida não tem nada a ver com uma posição “centrista” ou moderada, mas, ao contrário, com a perfeição.
Pode-se dizer, nesse sentido, que um ser que realiza perfeitamente sua natureza ou sua essência situa-se num ponto equidistante em relação aos polos opostos que, por estarem no limite de sua definição, confinam com a monstruosidade. De fato, o ser monstruoso é aquele que, de tanto “extremismo”, acaba por escapar à sua própria natureza. Assim, por exemplo, um olho cego, ou um cavalo de três patas.
Como eu já disse, senti, no início de meus estudos de filosofia, a maior dificuldade em compreender em que sentido Aristóteles podia falar seriamente a respeito de um cavalo ou de um olho “virtuoso”. Este texto, entre outros, extraído também de Ética a Nicômaco, mergulhava-me num abismo de perplexidade: “Devemos observar que toda virtude, para a coisa da qual ela é virtude, tem como efeito, ao mesmo tempo, manter a coisa em bom estado e lhe permitir realizar bem sua obra própria: por exemplo: a virtude do olho torna o olho e sua função igualmente perfeitos, pois é pela virtude do olho que a visão se completa em nós como deve. Do mesmo modo, a virtude do cavalo torna um cavalo ao mesmo tempo perfeito em si mesmo e bom para a corrida, para levar seu cavaleiro e enfrentar o inimigo” (1.106 a 15). Muito naturalmente marcado pela perspectiva moderna, meritocrática, não via o que a ideia de “virtude” vinha fazer ali.
Mas, numa perspectiva aristocrática, tais palavras nada têm de misteriosas: o ser “virtuoso” não é aquele que atinge um certo nível graças a esforços livremente consentidos, mas aquele que funciona bem, e até excelentemente, segundo a natureza e as finalidades que lhe são próprias. E isso vale tanto para as coisas e animais quanto para os seres humanos cuja felicidade está associada a essa realização de si.
No seio de tal visão da ética, a questão dos limites que não devem ser ultrapassados tem assim uma solução “objetiva”: é na ordem das coisas, na realidade do cosmos, que se deve procurar seu traço, como o fisiologista que, ao perceber a finalidade dos órgãos e dos membros, também percebe em que limites eles devem exercer sua atividade. Assim como não se poderia, sem dano, trocar um fígado por um rim, cada um, no espaço social, deve encontrar seu lugar e se manter nele, sem o que o juiz deverá intervir para restabelecer a ordem harmoniosa do mundo e dar, segundo a célebre fórmula do direito romano, “a cada um o que é seu”.
Toda a dificuldade para nós, Modernos, vem de que tal leitura cósmica tornou-se impossível, simplesmente por falta de cosmos a ser escrutado e de natureza a ser decodificada. Poderíamos caracterizar assim a oposição cardeal que separa a ética cosmológica dos Antigos da ética meritocrática e individualista dos republicanos modernos, tomando como base a antropologia anunciada por Rousseau: para os Antigos, como acabo de lhe dizer por quê, a virtude, entendida como excelência num gênero, não está em oposição à natureza, mas, ao contrário, não é senão uma atualização bem-sucedida das disposições naturais de um ser, uma passagem, como diz Aristóteles, da “potência ao ato”. Para as filosofias da liberdade, ao contrário, e especialmente para Kant, a virtude aparece em exata oposição como uma luta da liberdade contra a naturalidade em nós.
Nossa natureza, volto a insistir, é naturalmente inclinada ao egoísmo, e se quero dar espaço para os outros, se quero limitar minha liberdade às condições de sua integração com a de outrem, então é preciso que eu faça um esforço, é preciso mesmo que eu me violente. E é somente com essa condição que uma nova ordem de coexistência pacífica dos seres humanos é possível. Aí está a virtude, e não mais, de modo algum, como você vê, na realização de uma natureza bem-dotada. É por ela, e apenas por ela, que um novo cosmos, uma nova ordem do mundo, fundada no homem e não mais no cosmos ou num Deus, se torna possível.
No plano político, esse novo espaço de vida comum terá três marcas características, diretamente opostas ao mundo aristocrático dos Antigos: a igualdade formal, o individualismo e a valorização da ideia de trabalho.
Sobre a igualdade serei breve, pois já lhe disse o essencial. Caso se identifique a virtude aos talentos naturais, então, com efeito, nem todos os seres se equivalem. Nessa perspectiva, é normal que se construa um mundo aristocrático, quer dizer, um universo fundamentalmente não igualitário, que postula não apenas uma hierarquia natural dos seres, mas que também insiste em fazer com que os melhores fiquem “no alto”, e os menos bons, “embaixo”. Se, ao contrário, situa-se a virtude não mais na natureza, mas na liberdade, então todos os seres se equivalem, e a democracia se impõe.
O individualismo é consequência desse raciocínio. Para os Antigos, o Todo, o cosmos, é infinitamente mais importante do que suas partes, do que os indivíduos que o compõem. É o que se chama de “holismo” — que vem do grego holos, que quer dizer “tudo”. Para os Modernos, a relação se inverte: o Todo não tem mais nada de sagrado, já que para eles não existe cosmos divino e harmonioso no seio do qual seria necessário encontrar um lugar a se inserir. Apenas o indivíduo conta, de tal modo que, a rigor, uma desordem é melhor do que uma injustiça. Não se tem mais o direito de sacrificar os indivíduos para proteger o Todo, pois o Todo não é nada mais do que a soma dos indivíduos, uma construção ideal na qual cada ser humano, porque é “um fim em si”, não pode mais ser tratado como um simples meio.
Você vê que o termo individualismo não designa, como se pensa habitualmente, o egoísmo, mas quase o oposto, o nascimento de um mundo moral no seio do qual indivíduos, pessoas, são valorizados na medida de suas capacidades de se desprenderem da lógica do egoísmo natural para construir um universo ético artificial.
Enfim, na mesma perspectiva, o trabalho se torna o próprio do homem, até o ponto em que um ser humano que não trabalhe não é apenas um homem pobre, porque não tem salário, mas um pobre homem, no sentido em que não pode se realizar e realizar sua missão na Terra: construir-se, construindo o mundo, transformando-o para torná-lo melhor apenas pela força de sua boa vontade. No universo aristocrático, o trabalho era considerado defeito, uma atividade, no sentido próprio do termo, servil, reservada aos escravos. No mundo moderno, ao contrário, ele se torna um veículo essencial da realização de si, um meio não apenas de se educar — não há educação moderna sem trabalho —, mas também para se desabrochar e se cultivar.
Como você vê, estamos agora nos antípodas do mundo antigo que lhe descrevi.
Façamos um resumo para que você não perca o fio: vimos até agora como as morais modernas deixaram de se basear na imitação do cosmos — a ciência moderna fez com que ele explodisse — ou na obediência aos mandamentos divinos — também eles fragilizados pelas conquistas cada vez mais críveis das ciências positivas. Você compreendeu também que as morais estavam em grande dificuldade. Vimos ainda como, a partir da nova definição do homem proposta pelo humanismo moderno — notadamente por Rousseau —, novas morais iam se construir, começando pela de Kant e a dos republicanos franceses.
É, pois, o ser humano, ou, como se diz no jargão filosófico, o “sujeito”, que desde então assumiu o lugar das entidades antigas, cosmos ou divindade, para se tornar progressivamente o fundamento último de todos os valores morais. É ele, de fato, que aparece como objeto de todas as atenções, como o único ser, afinal, verdadeiramente digno de respeito no sentido moral do termo.
Mas isso tudo ainda está mal situado historicamente. Com efeito, comecei essa apresentação da filosofia moderna por Rousseau e Kant, logo, por filósofos do século XVIII, ao passo que a ruptura com o mundo antigo ocorreu na filosofia já no século XVII, com Descartes.
É preciso que eu lhe diga uma palavra sobre ele, pois é o verdadeiro fundador da filosofia moderna, e é útil ter ao menos uma ideia das razões pelas quais ele marca simultaneamente uma ruptura e um ponto de partida.
O “cogito” de Descartes ou a primeira origem da filosofia moderna
Cogito ergo sum, “penso, logo existo”: talvez você já tenha ouvido essa fórmula. Se não, saiba que ela é, entre todas as sentenças filosóficas, uma das mais célebres do mundo. Com justa razão, porque ela marca uma data na história do pensamento, porque ela inaugura uma nova época: a do humanismo moderno, no seio do qual vai reinar o que será designado “subjetividade”. O que isso significa exatamente?
No início deste capítulo, eu lhe expliquei por que, após o desmoronamento do cosmos dos Antigos e o início da crise das autoridades religiosas, com o estímulo da ciência moderna, o homem ficou entregue à dúvida, submetido a interrogações intelectuais e existenciais de uma amplitude até então desconhecida. Vimos como o poema de John Donne, em especial, tentava traduzir o estado de espírito dos cientistas da época. Tudo devia ser reconstruído, a teoria do conhecimento, com certeza, mas também a ética e, mais ainda, talvez, a doutrina da salvação. E por isso é necessário um princípio novo, que não pode mais ser o cosmos, nem a divindade; será o homem ou, como dizem os filósofos, o “sujeito”.
Pois bem, é Descartes quem “inventa” esse princípio novo antes de Rousseau e Kant o terem explicitado, notadamente no debate sobre o animal, como vimos anteriormente. É ele quem vai fazer da fraqueza, que a priori parece ser a terrível dúvida ligada ao sentimento do desaparecimento dos mundos antigos, uma força, um formidável meio de reconstruir com novas apostas todo o edifício do pensamento filosófico.
Em suas duas obras fundamentais, o Discurso do Método (1637) e as Meditações Metafísicas (1641), Descartes imagina, sob diversas formas, uma espécie de ficção filosófica: ele se obriga, por princípio, ou como ele mesmo diz, “por método”, a pôr em dúvida absolutamente todas as suas ideias, tudo aquilo em que ele acreditou até então, mesmo as coisas mais certas e evidentes — como, por exemplo, o fato de que existem objetos fora de mim, que escrevo sobre uma mesa, sentado numa cadeira etc. Para ter certeza de duvidar de tudo, ele imagina até mesmo a hipótese de um “gênio maligno” que se divertiria em enganá-lo em qualquer situação, ou ainda se lembra de como, às vezes, em seus sonhos, acreditou que estava acordado, lendo ou passeando, quando de fato estava “inteiramente nu, na cama”!
Em resumo, ele adota uma atitude de ceticismo total que o leva a não considerar nada mais como certo... Salvo que, no final das contas, há uma certeza que resiste a tudo e permanece válida, uma convicção que resiste à prova mesma da dúvida mais radical: aquela segundo a qual se penso, e até se duvido, devo ser algo que existe! Pode ser que eu me engane o tempo todo, que todas as minhas ideias sejam erradas, que eu seja enganado permanentemente por um gênio maligno, mas, para que eu me engane ou seja enganado, ainda assim é preciso que eu seja algo que existe! Uma convicção resiste pois à dúvida, mesmo à mais total, é a certeza de minha existência!
Donde a fórmula agora canônica com a qual Descartes conclui seu raciocínio: “Penso, logo existo.” Mesmo que meus pensamentos sejam do princípio ao fim errôneos, pelo menos aquele segundo o qual eu existo é forçosamente correto, já que é preciso no mínimo existir, nem que fosse só para delirar.
Estou certo de que seus professores de filosofia lhe falarão um dia da famosa dúvida cartesiana e de seu não menos famoso cogito. Certamente eles lhe explicarão por que, apesar da aparente simplicidade, suscitou tantos comentários e interpretações diversas.
Gostaria agora que você se lembrasse do seguinte: por meio da experiência da dúvida radical que Descartes inventa totalmente — e que a você parecerá um pouco exagerada à primeira vista — há três ideias fundamentais que aparecem pela primeira vez na história do pensamento, três ideias destinadas a uma formidável posteridade, que são, no sentido próprio, fundadoras da filosofia moderna.
Vou me limitar a indicá-las, mas saiba que poderíamos dedicar-lhes, sem dificuldade, um livro inteiro.
Primeira ideia: se Descartes põe em cena a ficção da dúvida, na verdade não é apenas para alcançar uma nova definição da verdade. Pois, ao examinar cuidadosamente a única certeza que resiste a qualquer prova — no caso, o cogito —, ele está certo de conseguir descobrir um critério confiável da verdade. Pode-se até dizer que esse método de raciocínio vai levar a definir a verdade como aquilo que resiste à dúvida, como aquilo de que o sujeito humano está absolutamente seguro. Assim, é um estado de nossa consciência subjetiva, a certeza, que vai se tornar o novo critério da verdade. Isso já mostra o quanto a subjetividade se torna importante para os Modernos, já que, a partir daí, é exclusivamente nela que se encontra o critério mais seguro da verdade. Enquanto os Antigos a definiam inicialmente em termos objetivos, por exemplo, como a adequação de um julgamento às realidades que ele descreve: quando digo que é noite, essa oração é verdadeira se, e apenas se, corresponde à realidade objetiva, aos fatos reais, tenha eu certeza ou não. Seguramente os Antigos não desconheciam o critério subjetivo da certeza. Nós o encontramos especialmente nos diálogos de Platão. Mas com Descartes, ele vai se tornar primordial e se sobrepor aos outros.
A segunda ideia fundamental será ainda mais decisiva no plano histórico e político: é a da “tábula rasa”, a da rejeição absoluta de todos os preconceitos e de todas as crenças herdadas das tradições e do passado. Pondo radicalmente em dúvida, sem distinção, a totalidade das ideias prontas, Descartes simplesmente inventa a noção moderna de revolução. Como dirá, no século XIX, outro grande pensador francês, Tocqueville, os homens que fizeram a revolução de 1789, aqueles que chamamos de “jacobinos”, não são nada mais do que “cartesianos que saíram das escolas” e “desceram à rua”.
Com efeito, poderíamos dizer que os revolucionários repetem, na realidade histórica e política, o mesmo gesto de Descartes quanto ao pensamento: assim como este decreta que todas as crenças anteriores, todas as ideias herdadas da família, da nação, ou transmitidas desde a infância pelas “autoridades” como as dos mestres ou da Igreja, por exemplo, devem ser postas em dúvida, criticadas, examinadas com toda a liberdade por um sujeito que se posiciona como soberano autônomo, capaz de decidir sozinho sobre o que é verdadeiro ou não, da mesma forma os revolucionários franceses decretam que é preciso acabar com todas as heranças do Antigo Regime. Como diz um deles — Rabaud Saint-Etienne — por meio de uma fórmula perfeitamente “cartesiana” e que também fará época, a Revolução pode ser resumida numa frase: “Nossa história não é nosso código.”
Esclarecendo: não é porque sempre vivemos sob um regime, o da aristocracia e da realeza, das desigualdades e dos privilégios instituídos, que somos obrigados a continuar a fazer o mesmo para sempre. Ou, melhor dizendo: nada nos obriga a respeitar para sempre as tradições. Ao contrário, quando elas não são boas, é preciso rejeitá-las e mudá-las. Ou seja, é preciso saber “fazer tábula rasa do passado” para reconstruir tudo de novo — tal como Descartes, que depois de ter posto todas as crenças anteriores em dúvida, toma a iniciativa de reconstruir a filosofia inteira sobre algo sólido: uma certeza inquebrantável, a do sujeito que toma posse de si mesmo, em transparência total, e que a partir daí só confia em si.
Você observará que, nos dois casos, tanto para Descartes quanto para os revolucionários franceses, é o homem, o sujeito humano, que se torna o fundamento de todos os pensamentos e de todos os projetos; da filosofia nova com a experiência decisiva do cogito, assim como da democracia e da igualdade com a abolição dos privilégios do Antigo Regime, e a declaração, na época absolutamente extraordinária, da igualdade de todos os homens entre si.
Note também que há uma ligação direta entre a primeira e a segunda ideia, entre a definição da verdade como certeza do sujeito e a fundação da ideologia revolucionária. Porque, se é preciso fazer tábula rasa do passado e submeter à dúvida mais rigorosa opiniões, crenças e preconceitos que não passaram pelo crivo do exame crítico, é porque não convém acreditar, não convém “dar crédito”, como diz Descartes, senão àquilo de que podemos estar absolutamente certos por nós mesmos. Daí a natureza nova, fundada na consciência individual, e não mais na tradição, da única certeza que se impõe antes de todas as outras: a do sujeito em sua relação consigo mesmo. Não é mais, portanto, a confiança, a fé, que permite alcançar, como vimos no cristianismo, a verdade última, mas a consciência de si.
Donde a terceira ideia que eu gostaria de evocar, e que você nem consegue imaginar como era revolucionária na época de Descartes: aquela segundo a qual é preciso rejeitar todos os “argumentos de autoridade”. Chamamos “argumentos de autoridade” as crenças impostas de fora como verdades absolutas por instituições dotadas de poderes que não se tem o direito de discutir, ainda menos de questionar: a família, os professores, os sacerdotes etc. Se a Igreja decreta, por exemplo, que a Terra não é redonda e que não gira em torno do Sol, pois bem, é preciso que você aceite; e, se se recusar, corre o risco de acabar na fogueira, como Giordano Bruno, ou de ser obrigado, como Galileu, a declarar publicamente que está errado, mesmo que esteja absolutamente certo.
É o que Descartes abole com sua famosa dúvida radical. Em outras palavras, ele simplesmente inventa o “espírito crítico”, a liberdade de pensamento e, com isso, funda a filosofia moderna. A ideia de que deveriam aceitar uma opinião porque seria a mesma das autoridades, quaisquer que elas fossem, repugna tão fundamentalmente aos Modernos que ela praticamente acaba por defini-los como tais. De fato, acontece que às vezes confiamos numa pessoa ou instituição, mas esse gesto em si perdeu o sentido tradicional: se aceito seguir a opinião de alguém, é, em princípio, porque elaborei “boas razões” para fazê-lo, não porque essa autoridade se impôs a mim de fora, sem o reconhecimento prévio, oriundo de minha certeza pessoal, subjetiva, de minha convicção íntima e, se possível, refletida.
Parece-me que com essas poucas explicações você já pode perceber melhor em que sentido se diz que a filosofia moderna é uma filosofia do “sujeito”, um humanismo, e até mesmo um antropocentrismo, quer dizer, no sentido etimológico, uma visão do mundo que coloca o homem (anthropos, em grego) — e não o cosmos ou a divindade — no centro de tudo.
Já vimos como esse princípio novo dá lugar a uma nova theoria e simultaneamente a uma nova moral. Falta-nos dizer algumas palavras sobre as doutrinas modernas da salvação. A tarefa, como você talvez já pressinta, é um tanto mais difícil do que na ausência do cosmos e de Deus; logo, a se ater ao humanismo estrito, a ideia da salvação é aparentemente quase impensável.
E, de fato, morais sem ordenação do mundo e mandamentos divinos são tão impensáveis quanto difíceis de compreender. Considerando que o princípio do mundo moderno é o homem — e que os homens são mortais —, tais concepções não podem ser aquelas em que o humanismo poderia se apoiar, ainda que fosse para ultrapassar, ao menos, o medo da morte. A partir disso, a questão da salvação irá desaparecer para muitos. E ela tenderá a se confundir com a ética, o que é ainda mais deplorável.
Essa confusão é tão frequente hoje que eu gostaria, antes mesmo de abordar as respostas propriamente modernas para a antiga questão da salvação, de tentar dissipá-la do modo mais claro possível.
III. Da interrogação moral à questão da salvação: o ponto em que essas duas esferas jamais poderiam se confundir
Se quiséssemos resumir as ideias modernas que acabamos de examinar, poderíamos simplesmente definir as morais laicas como um conjunto de valores expressos por deveres ou imperativos que nos pedem um mínimo de respeito pelo outro, sem o qual uma vida comum pacificada é impossível.
O que nossas sociedades, que fazem dos direitos do homem um ideal, nos pedem para respeitar nos outros é a igual dignidade, o direito ao bem-estar e à liberdade, especialmente de opinião. A famosa fórmula segundo a qual “minha liberdade acaba quando começa a do outro” é, no fundo, o axioma primeiro desse respeito pelo outro sem o qual não existe coexistência pacífica possível.
Ninguém pode duvidar de que as regras morais sejam rigorosamente indispensáveis. Pois, em sua ausência, é imediatamente a guerra de todos contra todos que se delineia no horizonte. Elas constituem a condição necessária da vida comum pacificada que o mundo democrático visa engendrar. Elas não são, porém, a condição suficiente, e eu gostaria que você compreendesse bem em que ponto os princípios éticos, por mais importantes que sejam, não determinam em absoluto as questões existenciais que outrora as doutrinas da salvação haviam assumido.
Para convencê-lo, gostaria que você refletisse um pouco sobre a seguinte ficção: imagine que você dispusesse de uma varinha mágica que lhe permitisse fazer com que todos os indivíduos que vivem hoje neste mundo começassem a observar perfeitamente o ideal do respeito pelo outro, tal como se encarnou nos princípios humanistas. Suponhamos que no mundo todo os direitos dos homens fossem conscienciosamente aplicados. A partir de então, cada um de nós levaria em conta a dignidade de todos e, ao mesmo tempo, o direito igual de cada um de alcançar os dois bens fundamentais que são a liberdade e a felicidade.
Temos dificuldade em avaliar as profundas perturbações, a incomparável revolução que tal atitude introduziria em nossos costumes. A partir daí não haveria mais guerra nem massacre, nem genocídio nem crime contra a humanidade, nem racismo nem xenofobia, nem violação nem roubo, nem dominação nem exclusão, e as instituições repressivas ou punitivas, tais como o exército, a polícia, a justiça ou as prisões, poderiam praticamente desaparecer.
Isso significa que a moral não deve ser negligenciada; quer dizer que ela é extremamente necessária à vida comum, e o quanto estamos longe de sua realização, mesmo que aproximada.
Contudo, nenhum, é o que digo, nenhum de nossos mais profundos problemas existenciais estaria mesmo assim resolvido. Nada, nem mesmo a mais perfeita realização da mais sublime moral nos impediria de envelhecer, de assistir impotentes ao aparecimento das rugas e dos cabelos brancos, de adoecer, de viver separações dolorosas, de saber que vamos morrer e assistir à morte daqueles que amamos, de hesitar sobre as finalidades da educação e de nos empenhar para desenvolver os meios de realizá-las, ou até, mais simplesmente, de nos entediar e descobrir que a vida cotidiana é sem graça...
Inútil sermos santos, apóstolos perfeitos dos direitos do homem e da ética republicana, nada nos garantiria o sucesso da vida afetiva. A literatura fervilha de exemplos que mostram como a lógica da moral e a da vida amorosa obedecem a princípios heterogêneos. A ética nunca impediu ninguém de ser traído ou abandonado. Salvo engano, nenhuma das histórias de amor representada nas grandes obras romanescas depende da ação humanitária... Se a aplicação dos direitos do homem permite uma vida comum pacificada, eles não oferecem por si mesmos nenhum sentido, nem mesmo nenhuma finalidade ou direção à existência humana.
Eis por que, no mundo moderno assim como nos tempos passados, foi preciso inventar, para além da moral, algo que ocupasse o lugar de uma doutrina da salvação. O problema é que sem cosmos e sem Deus a coisa parece particularmente difícil de se pensar. Como enfrentar a fragilidade e a finitude da existência humana, a mortalidade de todas as coisas neste mundo, na falta de qualquer princípio exterior e superior à humanidade?
É essa a equação que as doutrinas modernas da salvação tiveram que, bem ou mal — antes mal do que bem, é preciso que se diga —, tentar resolver.
A emergência de uma espiritualidade moderna:
como pensar a salvação se o mundo não é mais uma ordem harmoniosa e se Deus está morto?
Para alcançar tal objetivo, os Modernos seguiram duas grandes linhas.
A primeira — não nego que sempre a considerei um pouco ridícula, mas, enfim, ela foi tão dominante nos dois últimos séculos que não se pode omiti-la — é a das “religiões de salvação terrestre”, especialmente o cientificismo, o patriotismo e o comunismo.
O que isso quer dizer?
Grosso modo, o seguinte: não podendo sustentar-se numa ordem cósmica, não podendo mais acreditar em Deus, os Modernos inventaram religiões de substituição, espiritualidades sem Deus ou, para ser direto, ideologias que, professando com frequência um ateísmo radical, agarraram-se, apesar de tudo, a ideais capazes de dar um sentido à existência humana, ou de justificar que se morra por eles.
Do cientificismo à Júlio Verne até o comunismo de Marx, passando pelo patriotismo do século XIX, essas grandes utopias humanas — por demais humanas — tiveram pelo menos o mérito, um pouco trágico, é verdade, de tentar o impossível: reinventar ideais superiores, sem por isso sair, como faziam os gregos com o cosmos e os cristãos com Deus, dos quadros da própria humanidade. Dito claramente, três modos de salvar a vida, ou de justificar a morte, dá no mesmo, sacrificando-a em benefício de uma causa superior: a revolução, a pátria, a ciência.
Com esses três “ídolos”, como dirá Nietzsche, foi possível salvar a fé: conciliando a vida e o ideal, sacrificando-a eventualmente por ele, foi possível preservar a certeza de se “salvar”, passando pela última via de acesso à eternidade.
Para lhe dar um exemplo caricatural, mas altamente significativo dessas religiões de salvação terrestre — dessas religiões sem ideal exterior à humanidade —, citarei um grande momento da história da imprensa francesa. Trata-se da primeira página de France Nouvelle, principal publicação do partido comunista, imediatamente após a morte de Stalin.
Você sabe que Stalin foi o chefe da União Soviética, o papa, por assim dizer, do comunismo mundial, e que todos os fiéis consideravam, apesar de todos os seus crimes, como um verdadeiro herói.
Na época, pois — estamos em 1953 —, o Partido Comunista Francês redige a primeira página de seu principal órgão de propaganda em termos que hoje parecem estarrecedores, mas que traduzem perfeitamente o caráter ainda religioso da relação com a morte no seio de uma doutrina que, no entanto, desejava ser radicalmente materialista e ateísta. Aqui vai o texto:
O coração de Stalin, ilustre companheiro de armas e prestigioso continuador de Lenin, o chefe, amigo e irmão dos trabalhadores de todos os países, cessou de bater. Mas o stalinismo vive, ele é imortal. O nome sublime do genial mestre do comunismo mundial resplandecerá com uma chamejante claridade pelos séculos, e será sempre pronunciado com amor pela humanidade reconhecida. A Stalin, para todo o sempre seremos fiéis. Os comunistas se esforçarão para merecer, por sua dedicação incansável à causa sagrada da classe trabalhadora [...], o título de honra de stalinistas. Glória eterna ao grande Stalin, cujas magistrais e imperecíveis obras científicas nos ajudarão a reunir a maioria do povo...( Capa de France Nouvelle de 14 de março de 1953)
Como você vê, o ideal comunista era tão forte, tão “sagrado”, como diz a redação ateísta de France Nouvelle, que permitia ultrapassar a morte, justificar que se dê a vida sem temor e sem remorso por ele. Não é, pois, exagero dizer que estamos diante de uma verdadeira doutrina da salvação. Ainda hoje, último vestígio de uma religião sem deuses, o hino nacional cubano estende essa esperança aos simples cidadãos, desde que tenham sacrificado cada destino particular à causa suprema, pois “morrer pela pátria”, afirma ele, “é entrar na eternidade”...
Como você sabe, encontraremos na direita formas de patriotismo equivalentes. É o que comumente se chama de “nacionalismo”, e a ideia de que vale a pena dar a vida pela nação de que se é membro se evidencia também nessa tendência.
Num estilo bastante parecido com o do comunismo e o do nacionalismo, o cientificismo ofereceu também razões para se viver e morrer. Se você já leu um livro de Júlio Verne, constatou como os “cientistas e construtores”, tal como se dizia ainda na escola primária quando eu era criança, tinham a impressão de que, ao descobrir uma terra desconhecida ou uma nova lei científica, ao inventar uma máquina para explorar o céu ou o mar, inscreviam o nome na eternidade da grande história e justificavam assim toda a sua existência...
Melhor para eles.
Se há pouco lhe disse que sempre achei essas novas religiões um pouco ridículas — e muito mesmo, às vezes —, não é apenas devido ao grande número de mortos que produziram. Elas mataram muito, é fato, especialmente as duas primeiras, mas é sobretudo a ingenuidade delas que me desconcerta. Porque você compreende, é claro, que a salvação do indivíduo, apesar de todos os seus esforços, não poderia se confundir com a da humanidade. Mesmo que nos dedicássemos a uma causa sublime, com a convicção de que o ideal é infinitamente superior à própria vida, no final, é sempre o indivíduo que sofre e morre enquanto ser particular, não outro em seu lugar. Em face da morte pessoal, o comunismo, o cientificismo, o nacionalismo e todos os outros “ismos” que se queira pôr no lugar correm o grande risco de revelarem-se, qualquer dia desses, apenas como abstrações desesperadamente vazias.
Como dirá o maior pensador “pós-moderno”, Nietzsche, cujo pensamento estudaremos no próximo capítulo, a paixão pelos “grandes projetos” supostamente superiores ao indivíduo, ou à própria vida, não seria uma última esperteza das grandes religiões que quisemos superar?
No entanto, por trás desses esforços desesperados que às vezes parecem derrisórios, opera, apesar de tudo, uma revolução de amplitude considerável. Pois o que as falsas religiões tramam por trás de sua banalidade aparente ou real é simplesmente a secularização ou a humanização do mundo. Na falta de princípios cósmicos ou religiosos, é a própria humanidade que se sacraliza, a ponto de ascender, por sua vez, ao estatuto de princípio transcendente. A execução, aliás, é possível: afinal, ninguém pode negar que a humanidade em sua totalidade seja, em certo sentido, superior a cada um dos indivíduos que a compõem, da mesma forma que o interesse geral deve, em princípio, prevalecer sobre os interesses particulares.
Sem dúvida é a razão pela qual essas novas doutrinas da salvação sem Deus nem ordem cósmica conseguiram convencer tantos novos fiéis.
Mas além dessas formas de religiosidade até então inéditas, a filosofia moderna também conseguiu, como sugeri antes, pensar de outro modo, de modo muitíssimo mais profundo, a questão da salvação.
Não quero desenvolver agora detalhadamente o conteúdo dessa nova abordagem humanista. Falarei melhor a respeito no capítulo dedicado ao pensamento de Nietzsche.
Digo-lhe apenas uma palavra, para que você não tenha a impressão de que o pensamento moderno se reduz às banalidades mortíferas do comunismo, do cientificismo ou do nacionalismo.
É Kant, na linha de Rousseau, quem lança pela primeira vez a ideia crucial de “pensamento alargado” como sentido da vida humana. O pensamento alargado, para ele, é o contrário do espírito limitado, é o pensamento que consegue se libertar da situação particular de origem para se elevar até a compreensão do outro.
Para lhe dar um exemplo simples, quando você aprende uma língua estrangeira, é preciso que ao mesmo tempo você se afaste de si e de sua condição particular de partida, o francês, por exemplo, para entrar numa esfera mais larga, mais universal, onde vive uma outra cultura e, se não uma outra humanidade, ao menos uma outra comunidade humana diferente daquela a que você pertence e da qual, de algum modo, você começa a se desprender, sem, contudo, renegar.
Desprendendo-se das particularidades iniciais, entra-se, pois, em mais humanidade. Ao aprender uma outra língua, você pode não apenas comunicar-se com um número maior de seres humanos, mas ainda descobre, por meio da linguagem, outras ideias, outras formas de humor, outras modalidades de relação com o outro e com o mundo. Você alarga a visão e afasta os limites naturais do espírito atado à sua própria comunidade — que é o arquétipo do espírito limitado.
Além do exemplo específico das línguas, é todo o sentido da experiência humana que está em jogo. Se conhecer e amar são uma só coisa, você entra, alargando o horizonte, cultivando-se, numa dimensão da existência humana que a “justifica” e lhe dá um sentido — simultaneamente uma significação e uma direção.
De que serve “crescer”, perguntamo-nos às vezes. A isso, talvez, e mesmo se essa ideia não nos salva mais da morte — mas que ideia poderia fazê-lo? —, ela ao menos dá um sentido ao fato de enfrentá-la.
Voltaremos a essa ideia mais adiante, para completá-la como necessário, e indicar com maior precisão em que sentido ela assume o lugar das antigas doutrinas da salvação.
Por agora, e justamente para compreender a necessidade de um discurso, enfim, sem ilusão, é preciso passar ainda por nova etapa: a da “desconstrução”, da crítica das ilusões e das ingenuidades das antigas visões de mundo. Nesse projeto, Nietzsche é o maior, o mestre da suspeita, o pensador mais devastador, aquele que dá impulso a toda filosofia por vir: impossível, depois dele, voltar às crenças passadas.
Está na hora de você compreender por si mesmo.
(Luc Ferry - Aprender a Viver)