A diferença entre animalidade e humanidade segundo Rousseau: o nascimento da ética humanista
Se eu tivesse de conservar um texto da filosofia moderna, um texto a ser levado para uma ilha deserta, como se diz, seria ele, sem dúvida, que escolheria: trata-se de uma passagem do Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, que Rousseau publicou em 1755. Vou citá-lo daqui a pouco, para que você possa lê-lo e meditar sobre ele sozinho. Mas, para compreendê-lo bem, é preciso primeiramente que você saiba que, na época de Rousseau, existiam dois critérios clássicos para distinguir o animal do homem: de um lado, a inteligência; de outro, a sensibilidade, a afetividade, a sociabilidade (o que inclui também a linguagem).
Para Aristóteles, por exemplo, o homem é definido como “animal racional”, quer dizer, como um ser vivo (o ponto em comum com os “outros” animais), certamente, mas que teria, além disso (sua “diferença específica”), uma característica própria: a capacidade de raciocinar.
Para Descartes e os cartesianos, não apenas se mantém o critério da razão e da inteligência, mas se acrescenta o da afetividade: para Descartes, de fato, os animais são comparáveis a máquinas, a autômatos, e é um erro acreditar que tenham sentimentos — o que explica, aliás, que não falam por falta de emoções a exprimir, conquanto disponham de órgãos que lhes permitiriam fazê-lo.
Rousseau vai além dessas distinções clássicas, ao propor outra, até então inédita sob essa forma (embora se encontrem vez por outra, por exemplo, em Pico della Mirandola, no século XV, algumas antecipações). Ora, é essa nova definição do humano que vai se revelar verdadeiramente genial, no sentido em que vai possibilitar identificar o que, no homem, permite fundar uma nova moral, uma ética não mais “cósmica” ou religiosa, mas humanista — e até, por mais estranho que possa parecer, um pensamento inédito da salvação “acósmica” e “não ateia”.
Para Rousseau, antes de tudo, é evidente que o animal, mesmo que se pareça com uma “máquina engenhosa”, como diz Descartes, possui mesmo assim uma inteligência, uma sensibilidade, até mesmo uma faculdade de comunicar. Não são, portanto, a razão, a afetividade, nem mesmo a linguagem que distinguem, em última instância, os seres humanos, mesmo que, à primeira vista, esses diversos elementos possam parecer discriminatórios. De fato, quem tem um cão sabe perfeitamente que o cão é mais sociável e até muito mais inteligente... do que alguns seres humanos! Nesses dois aspectos, só diferimos dos animais pelo grau, do mais ao menos, mas não de modo radical, qualitativo. A etologia contemporânea — quer dizer, a ciência que estuda o comportamento animal — confirma amplamente esse diagnóstico. Sabemos hoje com certeza que existe uma inteligência e uma afetividade animais muito desenvolvidas, podendo mesmo chegar, nos grandes macacos, até a aquisição de elementos de linguagem bastante sofisticados.
É, pois, com razão, que Rousseau rejeita tanto as teses cartesianas — que reduzem o animal a uma máquina, a um autômato desprovido de sensibilidade — quanto as teses antigas que situam o próprio do homem no fato de que só ele possuiria a razão.
O critério de diferenciação entre o homem e o animal reside em outro ponto.
Rousseau vai situá-lo na liberdade, ou, como exprime por meio de uma palavra que vamos analisar, na “perfectibilidade”. Mais adiante vou lhe explicar esses dois termos, depois que você tiver lido o texto de Rousseau. Digamos apenas, por ora, que essa “perfectibilidade” designa, numa primeira abordagem, a faculdade de se aperfeiçoar ao longo da vida, enquanto o animal, guiado desde a origem e de modo seguro pela natureza, como se dizia na época, pelo “instinto”, é, por assim dizer, perfeito “de imediato”, desde o nascimento. Observando-o objetivamente, constatamos que o animal é conduzido por um instinto infalível, comum à sua espécie, como por uma norma intangível, uma espécie de software do qual nunca pode desviar-se. É por isso que, num mesmo processo e por uma mesma razão, ele é simultaneamente privado de liberdade e da capacidade de se aperfeiçoar. Privado de liberdade porque está, por assim dizer, preso a seu programa, “programado” pela natureza de modo que esta lhe serve integralmente de cultura. Privado da capacidade de se aperfeiçoar porque, guiado por uma norma intangível, não pode evoluir indefinidamente e fica, de certo modo, limitado por essa naturalidade mesma.
O homem, ao contrário, vai se definir ao mesmo tempo por sua liberdade, por sua capacidade de se libertar do programa do instinto natural e, consequentemente, por sua faculdade de ter uma história cuja evolução é, a priori, indefinida.
Rousseau exprime essas ideias num texto realmente magnífico. Agora, é preciso que você leia, antes que prossigamos. Ele oferece vários exemplos que, embora no início tenham certo valor retórico, não deixam de ter uma profundidade extraordinária.
Eis a passagem:
Em cada animal não vejo senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza ofereceu sentidos para recompor-se por si mesma, e para defender-se, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo exatamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que a natureza faz tudo nas ações do animal, enquanto o homem concorre para as suas, na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade: o que faz com que o animal não se afaste da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem se afaste frequentemente dela, em seu prejuízo. Assim é que um pombo morreria de fome perto de uma vasilha repleta das melhores carnes, e um gato, diante de uma porção de frutos ou de grãos, embora tanto um quanto o outro pudesse perfeitamente se nutrir com o alimento que desdenha, se ousasse experimentá-lo. É assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes provocam febre e morte porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala... Mas, mesmo que as dificuldades que cercam todas essas questões permitissem a discussão sobre essa diferença entre o homem e o animal, há outra qualidade muito específica que os distingue, e sobre a qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, faculdade que, com a ajuda de circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside em nós, tanto na espécie quanto no indivíduo. Enquanto um animal é, ao fim de alguns meses, o que será durante toda a sua vida, e sua espécie, ao fim de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. Por que o homem está sujeito a se tornar imbecil? Não é absolutamente porque retorna assim a seu estado primitivo, e o animal, que nada adquiriu e nada tem a perder, permanece sempre com seu instinto, e o homem, perdendo com a velhice e outros acidentes tudo o que sua perfectibilidade lhe havia feito adquirir, torna a cair mais baixo do que o próprio animal?
Essas poucas frases merecem reflexão.
Comecemos examinando o exemplo do gato e do pombo. O que Rousseau quer dizer exatamente?
Antes de tudo, que a natureza constitui para esses animais códigos intangíveis, espécies de softwares, como eu lhe dizia há pouco, dos quais são incapazes de fugir: é essa a marca da liberdade deles. Tudo acontece como se o pombo estivesse preso, cativo de seu “programa” de granívoro, e o gato, do de carnívoro, e que para eles não houvesse praticamente nenhuma variação possível (ou muito pouca!). Sem dúvida, um pombo pode absorver alguns pequenos bocados de carne, ou o gato mordiscar, como se vê às vezes nos jardins, algumas hastes de relva, mas no geral, seus programas naturais não lhes deixam praticamente nenhuma margem de manobra.
Ora, a situação do ser humano é inversa — e é por isso que ele pode se dizer livre e, consequentemente, perfectível, (já que, diferentemente do animal limitado por uma natureza quase eterna, ele vai poder evoluir). Ele é mesmo tão pouco programado pela natureza que pode se afastar de todas as regras que ela prescreve aos animais. Por exemplo, ele pode cometer excessos, beber ou fumar até morrer, o que os animais não podem fazer. Ou, como diz ainda Rousseau, por meio de uma fórmula que anuncia toda a política moderna, no homem, “a vontade fala ainda quando a natureza se cala”.
Poderíamos fazer o seguinte comentário: no animal, a natureza fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de fazer nada além de obedecer-lhe. No homem, ao contrário, domina certa indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.
Outro exemplo do caráter antinatural da liberdade humana — do afastamento ou do excesso, quer dizer, da transcendência da vontade em relação aos “programas naturais” — é muito mais marcante. Infelizmente, é um exemplo paradoxal que não defende efetivamente a humanidade do homem, já que se trata do fenômeno do mal naquilo que ele tem de mais assustador. Você precisa refletir por um tempo sobre isso para formar uma opinião. Mas, como você vai ver, ele confirma fortemente a argumentação de Rousseau em prol do caráter antinatural, e por isso mesmo, não animal, da vontade humana. Com efeito, parece que só o ser humano é capaz de se mostrar realmente diabólico.
Já posso ouvir a objeção que logo vem à mente: os animais não são, afinal de contas, tão agressivos e cruéis quanto os homens?
À primeira vista, sem dúvida, e poderíamos dar uma infinidade de exemplos que os defensores da causa animal frequentemente omitem. Eu, que em minha casa, quando era criança, no campo, tive uns vinte gatos, vi-os despedaçar suas presas com uma crueldade aparentemente inqualificável, comer camundongos vivos, brincar durante horas com pássaros dos quais tinham quebrado as asas ou furado os olhos...
Mas o mal radical, a respeito do qual se pode pensar, na perspectiva de Rousseau, que os animais desconhecem e que é um feito apenas dos humanos, está em outra coisa: ele reside no fato não mais simplesmente de “fazer maldade”, mas de fazer uso do mal como projeto, o que não tem nada a ver. O gato maltrata o camundongo, mas tanto quanto se possa afirmar, não é o motivo de sua tendência natural para caçar. Ao contrário, tudo indica que o ser humano é capaz de se organizar conscientemente para fazer tanto mal quanto possível a seu próximo. É, aliás, o que a teologia tradicional denomina de maldade, como próprio do demoníaco em nós.
Ora, esse demoníaco, lamentavelmente, parece ser específico do homem. A prova é o fato de que não existe nada no mundo animal, no universo natural, portanto, que se aparente à tortura.
Como lembra um de nossos melhores historiadores da filosofia, Alexis Philonenko, no início de seu livro L’Archipel de la Conscience Européenne [O arquipélago da consciência europeia], pode-se até hoje visitar em Gand, na Bélgica, um museu que faz pensar: o museu da tortura, exatamente. Veem-se, expostos em vitrines, os espantosos produtos da imaginação humana nessa matéria: tesouras, furadores, facas, tenazes, constritores de cabeça, arrancadores de unha, esmagadores de dedos e outras mil doçuras mais. Nada falta ali.
Os animais, como eu disse, devoram, às vezes, um dos seus ainda vivo. Eles nos parecem então cruéis. Mas basta refletir para compreender que não é ao mal enquanto mal que eles visam, e que a crueldade deles só se deve, é claro, à indiferença que sentem quanto ao sofrimento do outro. E no momento em que eles parecem matar “por prazer”, eles só estão, na verdade, exercendo do melhor modo um instinto que os guia e os mantém na guia, por assim dizer. Todas as pessoas que tiveram gatos, por exemplo, sabem que se os filhotes “se divertem” “torturando” suas presas é porque, ao fazê-lo, exercitam-se e aperfeiçoam a aprendizagem da caça, enquanto o animal adulto se contenta no mais das vezes em matar o mais rapidamente possível os camundongos ou os pássaros que captura. Mais uma vez o que nos parece tão cruel está ligado ao reino da indiferença total de que esses seres de natureza, os animais, dão prova nas relações do predador com sua presa, e não a uma vontade consciente de fazer o mal.
Mas o ser humano não é indiferente. Ele faz o mal e sabe que o faz e, às vezes, ele se compraz com isso. É claro que, diferentemente do animal, acontece de ele fazer do mal um objetivo consciente.
Ora, tudo parece indicar que essa tortura gratuita está em excesso em relação a toda lógica natural. Poderão objetar que o sadismo é, afinal, um prazer como qualquer outro, e que como tal se inscreve em algum ponto da natureza do ser humano. Mas isso não é uma explicação. É um sofisma, uma tautologia digna dos sábios de Molière que “explicam” os efeitos de um soporífero pela “virtude dormitiva” que há nele: acredita-se dar conta do sadismo invocando-se o gozo obtido com o sofrimento de outrem... quer dizer, invocando-se o próprio sadismo! A verdadeira questão é a seguinte: por que tanto prazer gratuito em transgredir o interdito; por que esse excesso no mal, mesmo que ele seja inútil?
Poderíamos dar exemplos infinitamente. O homem tortura seus semelhantes sem nenhum objetivo além do da própria tortura. Por que milicianos sérvios obrigam — como se lê nos relatórios de crimes de guerra cometidos nos Bálcãs — um infeliz avô croata a comer o fígado de seu neto ainda vivo? Por que os hútus cortam os membros dos recém-nascidos tútsis para se divertirem, apenas para nivelarem suas caixas de cerveja? Por que, exatamente, a maioria dos cozinheiros trincha com tanto prazer as rãs vivas, fatia uma enguia começando pela cauda, quando seria mais simples e mais lógico matá-las imediatamente? O fato é que se joga facilmente a culpa
sobre o animal quando a matéria humana falha, mas não, como já observavam os críticos da teoria cartesiana dos animais-máquinas, sobre os autômatos que não sofriam. Já se viu, por acaso, um homem ter prazer em torturar um relógio de pulso ou de pêndulo? Temo que para isso não haja resposta “natural” convincente: a escolha do mal, o demoníaco, parece pertencer a uma ordem outra que não a da natureza. De nada serve, e na maioria das vezes é contraprodutivo.
É essa vocação antinatural, essa constante possibilidade de excesso que lemos no olho humano: porque ele não reflete apenas a natureza; nele podemos descobrir o pior, mas também, pela mesma razão, o melhor; o mal absoluto e a mais espantosa generosidade. É esse excesso que Rousseau chama de liberdade: é sinal de que não estamos, ou, em todo caso, não inteiramente, aprisionados em nosso programa natural de animal, por outro lado, semelhante aos outros animais.
Três consequências maiores da nova definição das diferenças entre animalidade e humanidade: os homens, únicos seres portadores de história, de igual dignidade e de inquietação moral
As consequências dessa constatação são profundíssimas. Eu lhe indicarei apenas as três que vão ter penetração considerável nos planos moral e político.
Primeira consequência: os humanos serão, diferentemente dos animais, dotados do que se poderia chamar de dupla historicidade. De um lado, haverá a história do indivíduo, da pessoa, e é o que chamamos habitualmente de educação; de outro, haverá também a história da espécie humana, ou, se você preferir, a história das sociedades humanas, o que habitualmente chamamos de cultura e política.(Ainda aí se trata de uma ideia que Alexis Philonenko desenvolveu com muita profundidade e inteligência em suas obras sobre Rousseau e Kant) Observe, ao contrário, o caso dos animais e verá que é inteiramente diferente. Desde a Antiguidade temos descrições das “sociedades animais”, por exemplo, a dos cupins, das abelhas ou das formigas. Ora, tudo leva a pensar que o comportamento desses animais é o mesmo, exatamente o mesmo, há milhares de anos: seu habitat não mudou nem uma vírgula, assim como não mudou o modo de providenciarem a alimentação, de alimentarem a rainha, de dividirem as funções etc. As sociedades humanas, ao contrário, não param de mudar: se voltássemos 10 mil anos atrás, seria impossível reconhecer Paris, Londres ou Nova York. Em contrapartida, não teríamos nenhuma dificuldade em reconhecer um formigueiro e tampouco ficaríamos surpresos com o modo como os gatos caçavam os camundongos ou ronronavam no colo dos donos...
Você me dirá, talvez, que se considerássemos não mais as espécies em geral, mas os indivíduos em particular, veríamos que os animais se beneficiam de algumas aprendizagens. Por exemplo, eles aprendem a caçar com os pais. Não seria uma forma de educação que contradiz o que acabei de afirmar? Sem dúvida, mas, por um lado, não se pode confundir aprendizagem e educação: a aprendizagem dura apenas um tempo, e é interrompida assim que o objetivo estabelecido é alcançado, enquanto a educação humana não tem fim e só é interrompida pela morte. Por outro lado, essa pretensa constatação não é exata, longe disso, no que se refere a todos os animais. Alguns, de fato, e não encontramos equivalência nos humanos, não precisam de nenhum período de adaptação para se comportarem desde o nascimento como adultos em miniatura.
Considere, por exemplo, o caso dos filhotes das tartarugas marinhas. Assim como eu, você já viu essas imagens em documentários sobre animais: logo que saem do ovo, eles sabem instintivamente, sem nenhum tipo de ajuda, encontrar o caminho do mar. Imediatamente conseguem realizar os movimentos que os levam a andar, nadar, comer, em resumo, a sobreviver... ao passo que um filhote de homem permanece no espaço familiar até a idade de 21 anos! Fico encantado com isso, é claro, mas espero que você avalie a diferença...
Ora, esses poucos exemplos — poderíamos oferecer muitos outros e comentá-los longamente — já bastam para lhe mostrar como Rousseau tocou num ponto crucial ao falar de liberdade e de perfectibilidade, quer dizer, no fundo, de historicidade. De fato, como dar conta dessa diferença entre as pequenas tartarugas e os filhotes dos homens, se não se postula uma forma de liberdade, um afastamento possível em relação à norma natural que orienta em todos os aspectos os animais e, por assim dizer, a proibição que têm de variar? O que faz com que a pequena tartaruga não possua nem história pessoal (educação) nem história política e cultural é que ela é desde o início e desde sempre guiada pelas regras da natureza, pelo instinto, e que lhe é impossível se afastar deles. O que, ao contrário, permite ao ser humano ter essa dupla historicidade é justamente o fato de que, estando em excesso em relação aos “programas” da natureza, pode evoluir indefinidamente, educar-se “ao longo da vida”, e entrar numa história da qual ninguém pode dizer hoje quando e onde acabará. Em outras palavras, a perfectibilidade, a historicidade, como queira, é consequência direta de uma liberdade em si mesma definida como possibilidade de afastamento em relação à natureza.
Segunda consequência: como diz Sartre — que sem saber repetia Rousseau —, se o homem é livre, então não existe “natureza humana”, “essência do homem”, definição de humanidade, que precederia e determinaria sua existência. Num pequeno livro que o aconselho a ler, O Existencialismo É um Humanismo, Sartre desenvolve essa ideia, afirmando (ele gostava muito de usar o jargão filosófico) que, no homem, “a existência precede a essência”. De fato, por trás de uma aparência sofisticada, é exatamente a ideia de Rousseau, quase palavra por palavra. Os animais têm uma “essência” comum à espécie, que precede neles a existência individual: há uma “essência” do gato ou do pombo, um programa natural, o do instinto, de granívoro ou de carnívoro, e esse programa, essa “essência”, como queira, é tão perfeitamente comum a toda a espécie que determina a existência particular de cada indivíduo que a ela pertence e é por ela inteiramente determinada. Nenhum gato, nenhum pombo pode escapar dessa essência que o determina completamente e que, assim, suprime nele qualquer tipo de liberdade.
Com o homem, acontece o inverso: nenhuma essência o predetermina, nenhum programa jamais consegue prendê-lo inteiramente, nenhuma categoria o aprisiona tão absolutamente que ele não possa, pelo menos em parte — a da liberdade —, dela se emancipar por pouco que seja. Evidentemente, nasço homem ou mulher, francês ou estrangeiro em relação à França, num meio rico ou pobre, elitista ou popular etc. Mas nada prova que essas características do início me prendam a elas por toda a vida. Posso, por exemplo, ser uma mulher como Simone de Beauvoir e, no entanto, renunciar a ter filhos, ser pobre, de um meio desfavorecido, enriquecer, ser francês, mas aprender uma língua estrangeira, mudar de nacionalidade etc. O gato não pode deixar de ser carnívoro, nem o pombo, granívoro...
Daí, com base na ideia de que não existe natureza humana, que a existência do homem precede sua essência, como diz Sartre, temos uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo.
O que é o racismo, e o sexismo, que não são mais do que a ideia do clone entre muitos? É a ideia de que existe uma essência própria a cada raça, a cada sexo, da qual os indivíduos são inteiramente prisioneiros. O racismo diz que “o africano é jogador”, “o judeu, inteligente”, “o árabe, preguiçoso” etc., e só com o emprego do artigo “o” sabe-se que estamos lidando com um racista, um ser convencido de que todos os indivíduos de um mesmo grupo partilham a mesma “essência”. O mesmo vale para o sexista que facilmente pensa que está na “natureza” da mulher ser mais sensível do que inteligente, mais terna do que corajosa, para não dizer “feita para” ter filhos e ficar em casa, grudada no fogão...
É exatamente esse tipo de pensamento que Rousseau desqualifica, destruindo-o na base: já que não há natureza humana, já que nenhum programa natural ou social pode prendê-lo totalmente, o ser humano, homem e mulher, é livre, indefinidamente perfectível, e não é absolutamente programado pelas pretensas determinações ligadas à raça ou ao sexo. Certamente, como dirá Sartre, diretamente na linha de Rousseau, ele está “em situação”. É verdade, e mesmo indiscutível, que pertenço a um meio social e sou homem ou mulher. Mas, como você já compreendeu, do ponto de vista filosófico inaugurado por Rousseau, essas qualidades não são comparáveis às dos softwares: elas deixam, para além das pressões que impõem, sem dúvida, uma margem de manobra, um espaço de liberdade. E é essa margem, esse afastamento que é próprio do homem que o racismo, nesse aspecto “desumano”, quer, a qualquer preço, eliminar.
Terceira consequência: é porque é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante, que o ser humano é um ser moral. Como poderíamos, aliás, lhe imputar boas ou más ações se ele não fosse de algum modo livre para escolher? Em contrapartida, quem pensaria em condenar o tubarão que acaba de devorar um surfista? E quando um caminhão provoca um acidente, é o motorista que é julgado, não o caminhão. Nem o animal nem a coisa são moralmente responsáveis pelos efeitos, mesmo danosos, que possam causar ao ser humano.
Tudo isso pode lhe parecer evidente, para não dizer meio bobo. Mas pense e interrogue-se sobre por que isso acontece.
Você verá que a resposta se impõe, e nos leva mais uma vez a Rousseau: é preciso, de fato, afastar-se do real para avaliá-lo como bom ou mau, do mesmo modo que é preciso distanciar-se dos pertencimentos naturais ou históricos para adquirir o que comumente se chama de “espírito crítico”, fora do qual não há julgamento de valor possível.
Kant disse uma vez que Rousseau era o “Newton do mundo moral”. Com isso ele queria particularmente(Ele queria também dizer que o homem é continuamente dividido entre o egoísmo e o altruísmo, como o mundo de Newton o é entre as forças centrípetas e centrífugas) dizer que, com sua ideia sobre a liberdade do homem, Rousseau foi para a ética moderna o que Newton tinha sido para a física nova: um pioneiro, um pai fundador sem o qual nunca teríamos podido nos libertar dos princípios antigos, os do cosmos e da divindade. Ao identificar na raiz, com uma acuidade incomparável, a diferenciação entre o humano e o animal, Rousseau tornou possível descobrir no homem a pedra angular sobre a qual uma nova visão moral do mundo ia poder se reconstruir. Adiante, veremos como.
Mas é útil, para que você avalie melhor ainda toda a importância dessa análise rousseauniana, que você tenha uma pequena ideia da posteridade que ela teve...
A herança de Rousseau: uma definição do homem como “animal desnaturado”
Você encontrará no século XX um avatar divertido das ideias de Rousseau num livro de Vercors intitulado Os Animais Desnaturados.(VERCORS. Os Animais Desnaturados. Tradução de Alcântara Silveira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1956) Falarei um pouco sobre ele, antes de tudo porque é muito fácil e interessante de se ler, e também porque a ação principal apresenta ficcionalmente a problemática filosófica que acabamos de evocar em termos conceituais.
Aqui vai toscamente resumida a trama do romance: nos anos 1950, uma equipe de cientistas britânicos parte para a Nova Guiné à procura do famoso “elo perdido”, quer dizer, do ser intermediário entre o homem e o animal. Eles esperam descobrir algum fóssil de grande macaco ainda desconhecido — o que já os deixaria loucos de alegria —, mas topam, pelo maior dos acasos, e para imensa surpresa, com uma colônia vivíssima de seres “intermediários”, que designam logo como “Tropis”. São quadrúmanos, logo, macacos. Mas eles vivem como trogloditas em cavernas de pedra... e, sobretudo, enterram seus mortos. É o que deixa nossos exploradores perplexos, e você entende por quê: isso não se assemelha a nenhum costume animal. Além do mais, eles parecem dispor de um embrião de linguagem.
Como então situá-los: entre o humano e o animal? A questão é tanto mais urgente porque um homem de negócios pouco escrupuloso pensa em domesticá-los e escravizá-los! Se forem animais, até passa, mas se forem classificados como homens, será inaceitável e, de resto, ilegal. Mas como saber, como decidir?
O herói do livro se empenha: engravida uma fêmea (ou mulher?) tropi, o que prova tratar-se de uma espécie mais próxima da nossa (já que, como você talvez saiba, os biólogos consideram que, salvo exceção, apenas seres da mesma espécie podem se reproduzir entre si).
Como, então, classificar a criança: homem ou animal? É necessário a qualquer custo decidir, pois esse estranho pai resolveu matar o próprio filho, exatamente para obrigar a justiça a se pronunciar.
Abre-se, pois, um processo que apaixona toda a Inglaterra e imediatamente ocupa a primeira página da imprensa mundial. Os melhores especialistas são convocados a depor: antropólogos, biólogos, paleontólogos, filósofos, teólogos... A dissensão é absoluta, e nenhum de seus argumentos, embora extraordinários em cada uma das especialidades, consegue vencer.
É a esposa do juiz quem encontra o critério decisivo: se eles enterram seus mortos, diz ela, é porque os tropis são humanos. Porque essa cerimônia comprova uma interrogação metafísica, no sentido literal (em grego, meta quer dizer “acima”, e physis significa “natureza”), uma distância, portanto, em relação à natureza. Como ela disse ao marido: “Para se interrogar, é preciso dois, aquele que interroga e aquilo que é interrogado. Confundido com a natureza, o animal não pode se interrogar. Eis aí, me parece, o ponto que procuramos. O animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois.”Não se poderia traduzir melhor o pensamento de Rousseau: o animal é um ser da natureza, inteiramente confundido com ela; o homem é, ao contrário, um excesso; ele é, por excelência, o ser antinatural.
Esse critério exige mais um comentário. Porque você poderia, é claro, imaginar outros mil: afinal, os animais não usam relógio, não utilizam guarda-chuva, não dirigem carros, não ouvem um MP3 nem fumam cachimbo ou cigarro... Por que, nesse caso, o critério da distância em relação à natureza seria mais importante do que qualquer outro?
A questão é absolutamente pertinente. A resposta, porém, não deixa dúvida: é assim porque se trata do único critério inteiramente distintivo no plano ético e cultural. É por causa dessa distância que nos é possível entrar na história da cultura, não ficar preso à natureza, como lhe expliquei há pouco. Mas é também graças a ela que podemos interrogar o mundo, julgá-lo, transformá-lo e, como tão bem se diz, inventar “ideais”, uma distinção entre o bem e o mal. Sem ela, nenhuma moral seria possível. Se a natureza fosse nosso código, nenhum julgamento ético jamais teria vindo à luz. É verdade que vemos humanos se preocuparem com a sorte dos animais, mobilizarem-se, por exemplo, para salvar uma baleia mas, exceto nos contos de fada, alguma vez vimos uma baleia se preocupar com a sorte de um ser humano?
Com essa nova “antropologia”, essa nova definição do próprio homem, Rousseau vai abrir caminho para o fundamento da filosofia moderna. É a partir dela, notadamente, que a mais importante moral laica dos dois últimos séculos vai nascer: trata-se da moral do maior filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant, moral cujos prolongamentos terão projeção considerável na tradição republicana francesa.
Se você compreendeu bem o que vimos em Rousseau, não terá nenhuma dificuldade em compreender também os grandes princípios dessa moral totalmente inédita na época, nem em avaliar o rompimento de capital importância que ela estabelece com relação às cosmologias antigas.
A moral kantiana e os fundamentos da ideia republicana: a “boa vontade”, a ação desinteressada e a universalidade dos valores
Com efeito, é a Kant e aos republicanos franceses que se aproximam dele que caberá expor, de modo sistemático, as duas consequências morais mais marcantes da nova definição rousseauniana do homem pela liberdade: a ideia de que a virtude reside na ação ao mesmo tempo desinteressada e orientada não para o interesse particular e egoísta, mas para o bem comum e “universal” — quer dizer, falando simplesmente, para o que não vale apenas para mim, mas também para todos os outros.
São esses os dois principais pilares — o desinteresse e a universalidade — da moral que Kant vai expor em sua famosa Crítica da Razão Prática (1788). Eles serão até nossos dias tão universalmente aceitos — especialmente por intermédio da ideologia dos direitos do homem que poderosamente contribuíram para fundar — que chegaram quase a definir o que se poderia nomear, sem quaisquer formalidades, de A moral moderna.
Comecemos pela ideia de desinteresse e vejamos como ela decorre diretamente da nova concepção do homem elaborada por Rousseau.
A ação verdadeiramente moral, a ação verdadeiramente “humana” (e é significativo que os dois termos comecem a se confundir) será, primeiramente e antes de tudo, a ação desinteressada, quer dizer, aquela que dá testemunho desse próprio do homem que é a liberdade entendida como faculdade de se libertar da lógica das tendências naturais. Porque é preciso reconhecer que estas nos levam sempre ao egoísmo. A capacidade de resistir às tentações às quais ele nos expõe é exatamente o que Kant chama de “boa vontade”, ponto em que ele vê o novo princípio de toda moralidade verdadeira. Enquanto minha natureza — já que sou também um animal — tende apenas à satisfação de meus interesses pessoais, tenho igualmente, pelo menos essa é a primeira hipótese da moral moderna, a possibilidade de escapar ao programa da natureza para admitir que podemos, às vezes, pôr de lado nosso “querido eu”, como diz Freud.
O que talvez seja mais marcante nessa nova perspectiva moral, antinatural e antiaristocrática (já que, contrariamente aos talentos naturais, essa capacidade é supostamente igual em cada um de nós) é que o valor ético do desinteresse se impõe a nós com tal evidência, que não nos damos mais o trabalho de pensar nele. Se descubro que uma pessoa que se mostra acolhedora comigo age assim na expectativa de obter uma vantagem qualquer que ela dissimula (por exemplo, minha herança), é evidente que o valor moral atribuído por hipótese a seus atos desaparece imediatamente. No mesmo sentido, não atribuo nenhum valor moral particular ao motorista de táxi que aceita me levar, porque sei que ele o faz, e é normal, por interesse. Em contrapartida, não posso deixar de agradecer, como se tivesse agido humanamente, à pessoa que, sem interesse particular, ao menos aparentemente, tem a amabilidade de me dar uma carona num dia de greve dos transportes.
Esses exemplos e todos os que você possa imaginar numa perspectiva análoga apontam para a mesma ideia: do ponto de vista do humanismo nascente, virtude e ação desinteressada são inseparáveis. Ora, é apenas com base numa definição rousseauniana do homem que essa ligação ganha sentido. É preciso, de fato, poder agir livremente, sem ser programado por um código natural ou histórico, para aceder à esfera do desinteresse e da generosidade voluntária.
A segunda dedução ética fundamental a partir do pensamento rousseauniano está diretamente ligada à primeira: trata-se da insistência no ideal do bem comum, na universalidade das ações morais entendidas como a superação dos exclusivos interesses particulares. O bem não está mais associado ao meu interesse particular, ao da minha família ou da minha tribo. Evidentemente ele não os exclui, mas deve também ter em conta os interesses de outrem, até mesmo o da humanidade inteira — como o exige a grande Declaração dos Direitos do Homem.
Aí também a ligação com a ideia de liberdade é clara: a natureza, por definição, é particular; sou homem ou mulher (o que já é uma particularidade), tenho tal corpo, com tais gostos, paixões, desejos que não são obrigatoriamente (trata-se de um eufemismo) altruístas. Se eu seguisse sempre a minha natureza animal, é provável que o bem comum e o interesse geral teriam de esperar muito até que eu me dignasse a considerar sua eventual existência (a menos, é claro, que se confundissem com meus interesses particulares, por exemplo, meu conforto moral pessoal). Mas, se sou livre, se tenho a faculdade de me afastar das exigências de minha natureza, de lhe resistir por menos que seja, então, nesse afastamento e porque eu me distancio por assim dizer de mim, posso me aproximar dos outros para entrar em comunhão com eles e, por que não, levar em consideração suas próprias exigências — o que é, você há de convir, a condição mínima de uma vida comum respeitosa e pacificada.
Liberdade, virtude da ação desinteressada (“boa vontade”), preocupação com o interesse geral: eis as três palavras-chave que definem as modernas morais do dever — do “dever”, justamente, porque elas nos ordenam uma resistência, até mesmo um combate contra a naturalidade ou animalidade em nós.
Por isso a definição moderna da moralidade vai, segundo Kant, se expressar daí em diante sob forma de ordens indiscutíveis ou, para empregar seu vocabulário, de imperativos categóricos. Dado que não se trata mais de imitar a natureza, de tomá-la como modelo, mas quase sempre de combatê-la e especialmente de lutar contra o egoísmo natural em nós, é claro que a realização do bem, do interesse geral, não é mais evidente, que ela esbarra, ao contrário, em resistências. Daí seu caráter imperativo.
Se fôssemos naturalmente bons, naturalmente orientados para o bem, não haveria necessidade de recorrer a ordens imperativas. Mas, como você sem dúvida observou, não é nem de longe o caso... Contudo, na maior parte do tempo, não temos nenhuma dificuldade em saber o que seria necessário fazer para agir bem, mas nos concedemos sempre exceções, simplesmente porque nos preferimos aos outros. É por isso que o imperativo categórico pede, como se diz para as crianças, “faça um esforço”, para tentarmos continuamente progredir e melhorar.
Os dois momentos da ética moderna — a intenção desinteressada e a universalidade do fim escolhido — se reúnem, assim, na definição do homem como “perfectibilidade”. É nela que eles encontram a fonte última: pois a liberdade significa, antes de tudo, a capacidade de agir além da determinação dos interesses “naturais”, quer dizer, particulares. Distanciando-nos do particular, é na direção do universal, portanto, para o reconhecimento do outro, que nos elevamos.
Daí também o fato de que essa ética repouse inteiramente na ideia de mérito: todos nós temos dificuldade em realizar nosso dever, em seguir os mandamentos da moral, apesar de reconhecermos sua legitimidade. Há, pois, mérito em agir bem, em preferir o interesse geral ao interesse particular, o bem comum ao egoísmo. Nisso a ética moderna é fundamentalmente uma ética meritocrática de inspiração democrática. Ela se opõe em tudo às concepções aristocráticas da virtude.
A razão é muito simples, e nós já a vimos em processo com o nascimento da moral cristã — na qual o republicanismo se inspira profundamente. Enquanto a desigualdade reina sem restrição no que diz respeito aos talentos inatos — a força, a inteligência, a beleza e muitos outros dons naturais são desigualmente repartidos entre os homens —, em se tratando do mérito, estamos todos em igualdade. Porque, como diz Kant, trata-se apenas de “boa vontade”. Ora, esta é própria de todo homem, seja ele forte ou não, belo ou não etc.
Para que você apreenda bem toda a novidade da ética moderna, é, portanto, necessário considerar a grandeza da revolução que representa a ideia da meritocracia em relação às definições antigas, aristocráticas, da virtude.
(Continua)