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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Quem teve trabalhos de tradução deu-se conta das enormes dificuldades da tarefa. Tudo se complica ainda mais quando se vem de e se vai para mundos diferentes. Porque uma língua é um mundo e não um simples instrumento. Um caso típico destas dificuldades encontra-se na tradução da Bíblia, ao passar do mundo hebraico para o mundo grego e, depois, latino e outros. O grande Adolf von Harnack chamou a atenção para o imenso problema.
Para explicitar, ouçamos o Credo cristão: "Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia." Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas a pergunta é: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e os seres humanos para Deus? Por outro lado, quem apenas recitar o Credo tem de perguntar: o que fez Jesus entre o nascimento e a crucifixão? O que é o que o levou à cruz? Quais foram as suas relações com Deus, com as mulheres, com a sociedade, com a religião, com o dinheiro, com a política? O que moveu a sua vida, o que pensou, o que queria? Que nos deixou realmente em herança?
Vejamos exemplos mais concretos da dita tradução e dos seus perigos. No capítulo 3 do livro do Êxodo, narra-se a experiência que Moisés fez com a manifestação de Deus na sarça ardente - ardia e não se consumia. "Não te aproximes. Tira as sandálias dos pés, porque o lugar que pisas é um lugar sagrado." Moisés cobriu a face com temor. Deus disse-lhe que tinha visto as misérias e as angústias do seu povo e que estava disposto a libertá-lo. E Moisés: se os filhos de Israel me perguntarem qual é o teu nome, que lhes responderei? E Deus: "Eu sou aquele que sou." Dir-lhes-ás: ""Eu Sou" enviou-me a vós." A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh ("eu sou quem eu sou", "eu sou o que sou") é o modo de dizer que Deus está acima de qualquer nome, ele é a Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha nessa gesta de liberdade e salvação. A Tradição, porém, na sequência dos Setenta, compreendeu aquele ehyeh asher ehyeh como "Eu sou aquele que é", "Eu sou aquele que sou", e Javé afirma o Ser absoluto de Deus, filosofando Santo Tomás, nesta linha, sobre Deus como Ipsum Esse Subsistens (O próprio Ser Subsistente). Deste modo, apesar de não ser errado, perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha na história da libertação.
No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus respondeu dizendo: Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a boa-nova é anunciada, a libertação está em marcha.
A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Por isso, na perspectiva cristã, o fundamental e essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, pode dar-se um assentimento intelectual, mas a existência continua inalterada.
Decisivo na orientação do Papa Francisco foi esta passagem do dogma e da doutrina para a existência e a praxis transformadora. O que acontece quando Deus está presente? Afinal o nome de Deus, tantas vezes ouvido no Natal, é Emmanuel, o Deus connosco. Como escreveu o deputado europeu Paulo Rangel, "Deus não é esse ser distante e estático que é, mas antes o ser próximo e interactivo, Deus pode não ser afinal Aquele que é. Deus é Aquele que está."
(Anselmo Borges)