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Niilismo

por Thynus, em 23.02.15

 


 
O grande escritor russo Fiodor Dostoievski retratou em Os demônios a essência do niilismo como força motora de alguns revolucionários. Escrito em 1872, o livro foi inspirado em um episódio verídico: o assassinato de um estudante por um grupo niilista liderado por Nietcháiev, em 1869. Muitos esquerdistas acabam atraídos por ideologias que, no fundo, representam apenas um profundo desejo de destruição ou autodestruição.
Nietcháiev era o resultado prático das teorias de Bakunin, um dos mais famosos anarquistas. Excêntrico, rebelde ao extremo, esse aristocrata desafiava todas as convenções burguesas. Como tantos outros anarquistas e socialistas, Bakunin era, por nascimento, um senhor rural, que teve educação refinada. Estudou em Paris e obteve seu grau de doutor em Pádua. Sua mulher também era de importante família.
Em suma, Bakunin veio da elite, e resolveu combater tudo o que ela representava, o que lhe permitiu chegar onde chegou. Ele tinha na família tradicional uma grande inimiga, objetivando destruir os laços de transferência de valores de geração para geração. Em tom de fanatismo religioso, exalta o futuro promissor:
Haverá uma transformação qualitativa, uma nova maneira de viver, uma revelação que será como dádiva de vida, um novo paraíso e uma nova Terra, um mundo jovem e poderoso no qual todas as nossas atuais dissonâncias serão resolvidas, transformando-se num todo harmonioso.
Que glorioso futuro! Um mundo sem conflitos, sem dissonâncias, onde cada um forma um todo perfeito. Mas, para criar tal “paraíso”, naturalmente seria necessário destruir o mundo que temos hoje, implodir os pilares dessa sociedade carcomida, em estado de putrefação. E foi assim que Bakunin, como alguns antes e muitos depois, apresentou a receita do sucesso:
Confiemos no eterno espírito que destrói e aniquila apenas porque é a inexplorada e eternamente criativa origem de toda a vida. A ânsia de destruir é também uma ânsia criativa.
Não sei quanto ao leitor, mas, quando leio essas passagens, não posso evitar o pensamento de que seria muito melhor para o mundo se gente com tamanho descontentamento com a vida e tanta sede por destruição simplesmente procurasse um bom psicanalista, ou quem sabe pegasse um pedaço de pau e destruísse o seu quartinho confortável arrumado pela empregada. Mas que deixasse os outros em paz! Theodore Dalrymple, falando sobre Bakunin, reconhece que o ato de destruir é, em si, divertido para muitos. Quando encontram uma suposta causa que justifica a destruição, aí é uma festa! Essa combinação atrai muita gente para a esquerda caviar raivosa, que alimenta um constante desejo de destruição. Fernando Pessoa foi outro que percebeu o teor destrutivo do comunismo. Ele escreveu: O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema — o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós. O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental — isto é de civilização e de cultura —, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.
Em United in Hate, Jamie Glazov tenta explicar a paixão dos intelectuais de esquerda por tiranos. O assunto é bastante pessoal para ele, que foi ainda criança levado, pelos pais, da União Soviética para os Estados Unidos, fugindo de uma tirania. Qual não foi a surpresa da família ao descobrir que muitos intelectuais americanos defendiam justamente aquele regime totalitário, e ainda tentavam silenciar as verdades que eles, tendo sofrido na própria pele, revelavam!
Para Glazov, esse crente esquerdista começa sua jornada totalitária com um agudo senso de alienação em sua própria sociedade — alienação que ele é totalmente cego para enxergar. Em negação com suas próprias falhas, que o impedem de criar um elo com seu povo, o crente se convence de que há algo profundamente errado com sua sociedade. Sem conseguir se encaixar direito nela, deseja ardentemente colocar um fim nessa angústia — e na sua própria sociedade.
Em uma linha parecida foi Eric Hoffer, em seu clássico The True Believer, escrito em 1951. Para Hoffer, um dos principais motivos de adesão a tais seitas revolucionárias é a angústia que a autonomia traz para o indivíduo. Temos uma tendência de culpar forças exógenas pelos nossos fracassos, e as pessoas frustradas com suas vidas acabam desenvolvendo um fervor por mudanças radicais.
Os movimentos de massa oferecem a sensação de um poder irresistível do grupo monolítico. As angústias individuais poderão ser diluídas nos atos conjuntos, isentos de responsabilidade. A psicologia das massas, como sabia Gustave Le Bon, atua para dar vazão ao ódio e ao desejo de destruição de cada membro do grupo. Ele escreve em seu famoso livro The Crowd: A Study of the Popular Mind:
Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto.
Os indivíduos, fazendo parte de um grupo com certas características coletivistas, adquirem um sentimento de invencibilidade que os permite seguir instintos os quais seriam barrados caso estivessem sozinhos. Um caso típico é o linchamento público, ou a agressividade das torcidas organizadas. Ann Coulter, em seu livro Demonic: How the Liberal Mob Is Endangering America, usa Le Bon para mostrar como a esquerda atual é um movimento de massas. Ela descreve o fenômeno:
A multidão é um organismo infantil, irracional, muitas vezes violento, que deriva sua energia do grupo. Intoxicado por objetivos messiânicos, a promessa de gratificação instantânea, e exortações que injetam adrenalina, as multidões criam desordem, caos e destruição, deixando uma pilha de destroços fumegantes para seus líderes subirem ao poder.
Movidas por paixão, demonizando seus oponentes, idolatrando seus ícones, contando com frases prontas e simples, além de imagens em vez de argumentos, as multidões são levadas a atos violentos, intimidadores, agressivos. A repetição incessante desses mesmos slogans cria o efeito de contágio, em que a lógica dos argumentos não tem mais vez. Líderes populistas abusam disso, como sabia Karl Kraus: “O segredo do agitador consiste em parecer tão idiota quanto seus ouvintes, de modo que eles acreditem ser tão inteligentes quanto ele.”
O grau de idolatria que Obama despertou mostra claramente isso. Coulter especula que, talvez pelo fato de os esquerdistas modernos não acreditarem em Deus, eles precisem de deuses de carne e osso. Pode ser. Mas o fato é que é constrangedor ver tanta reverência a um líder, beirando o fanatismo religioso. Não há nada análogo do lado dos liberais e conservadores, que costumam apontar, eles próprios, as várias falhas de seus líderes.
Essa realidade não é exclusividade americana. Quando Obama foi discursar em Berlim, na Alemanha, o repórter Brian Williams, da NBC, comentou que foi espantoso o fervor da multidão que atraiu. Pessoas subiam umas nas outras para tentar chegar mais perto dele. Era difícil imaginar algum outro líder político capaz de mobilizar tanta gente assim, como se fosse um popstar. Qual foi mesmo o último que conseguiu tal façanha em Berlim?
A pessoa pode ser rica, inteligente e bem articulada, mas ainda assim sofrer desse sentimento anti-indivíduo, buscando refúgio em algum ente coletivo. Precisa de uma válvula de escape coletivista, de algum grupo com o qual se identifique, podendo assim anular suas falhas como indivíduo. A destruição do “eu” é o objetivo final. Por trás dessa fuga, muitas vezes está um grande complexo de inferioridade.
O sentimento de angústia por falta de contato verdadeiro com sua sociedade, uma espécie de ódio a si próprio, isso pode levar o intelectual e o artista à defesa de ideologias e regimes coletivistas totalitários que pregam a destruição de sua própria sociedade. O coletivismo serve como escudo para suas inseguranças individuais.
Se ele se dissolver nessa massa amorfa, sua dor poderá ser dissipada, sua culpa por viver melhor poderá ser reduzida, caso se identifique com as vítimas do “sistema”. Uma pulsão de morte alimenta seu niilismo e, quanto mais violento for o líder, melhor. Ele roga por destruição, que colocará fim em suas angústias insuportáveis.
Essa visão escatológica sempre seduziu muita gente. O apocalipse, as profecias de Nostradamus, as projeções de Malthus, o alarmismo com a vingança de Gaia, o Dia do Juízo Final, em que todos enfrentarão a ira “divina”, e eles, aqueles que parecem tão mais felizes e em sintonia com a vida, serão destruídos, enquanto nós, os escolhidos, seremos finalmente recompensados pelo sacrifício. A ideia do fim do mundo, ou ao menos desse mundo, sempre foi fácil de ser vendida para uma legião de insatisfeitos.
Os niilistas usam tais ideologias para dar vazão à sua revolta, ao seu desejo de destruir. Che Guevara, curiosamente retratado por alguns como um pacifista, deixou registrado em seu diário sua euforia com o odor de sangue, explicitando sua vontade de matar. Veremos em mais detalhes o perfil desse facínora depois, que curiosamente é tido por muitos como um idealista romântico que buscava a justiça social.
Seu discípulo brasileiro mais fiel, o guerrilheiro Carlos Marighella, que já foi até homenageado em música de Caetano Veloso, também tinha clara inclinação à violência. O historiador Marco Antonio Villa, analisando a recente biografia sobre o comunista em um artigo na Folha, resumiu bem: “O que não se vê é qualquer ato de busca de apoio popular, de organização, de traçar algum objetivo no campo democrático. Tudo se resume à ação terrorista, à violência.”
A guerrilheira holandesa Tanja Nijmeijer, das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), afirmou que não imagina a sua vida fora do grupo terrorista, ao qual aderiu há uma década: “Não posso voltar atrás nem quero voltar atrás.” Filóloga de 34 anos, disse isso em entrevista exclusiva à AFP na Praça da Revolução, em Havana, diante da imagem do guerrilheiro Che Guevara, a quem “todos os membros das Farc adoram”.
“Sinto-me realizada como guerrilheira das Farc e não sei o que teria sido de mim. De repente seria dona de casa, teria três filhos, estaria divorciada, mas isso não teria me realizado da forma que me realiza ser guerrilheira”, acrescentou. A imagem de esposa e mãe lhe dá calafrios, e sua “realização” só é possível pela violência, pela luta armada, pela revolução.
Um niilista se torna uma máquina de matar mais eficiente quando encontra uma desculpa ideológica para tanto. E acaba virando ídolo da esquerda caviar, que simpatiza com seus fins, mas raramente tem coragem para adotar os mesmos meios. A esquerda caviar acaba, então, aplaudindo o guerrilheiro do conforto de seu ar-condicionado, eventualmente financiando os instrumentos de sua violência, como a compra de armas, ou enaltecendo seus atos em filmes e livros. Como resumiu David Horowitz em um debate recente, os liberais e conservadores são construtores, enquanto boa parte da esquerda é formada por destruidores.
O melhor exemplo desse niilismo foi o suicídio coletivo liderado por Jim Jones em “Jonestown” (quão egocêntrico!), na Guiana. Marxista fanático, fã de Mao Tsé-Tung e de Fidel Castro, Jones queria criar sua comunidade utópica a todo custo. Até no Brasil veio parar em busca de um local para seu “templo” comunista, de onde ninguém podia sair.
Sua empedernida luta pela “justiça social” acabaria com a morte de novecentas pessoas, incluindo dezenas de crianças que tomaram cianeto. Comunismo é veneno. Jim Jones deixou uma mensagem gravada, onde diz que seu grupo não cometeu suicídio, e sim um ato de “suicídio revolucionário” para protestar contra o mundo desumano. Desumano, como fica claro, é o niilismo que alimenta maluquices coletivistas e ideologias assassinas.

(Constantino, Rodrigo - Esquerda caviar: a hipocrisia dos artistas e intelectuais progressistas no Brasil e no mundo)

publicado às 12:10



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