Pérola
O POETA DE GAWAIN
Metamorfoses
OVÍDIO
A morte não pode ser adiada para sempre, e, quando chega a hora, precisamos estar prontos. No Ocidente, temos tendência a evitar pensamentos de morte e a ignorar mais ou menos esse fato em nossa vida cotidiana. Foram-se os dias do memento mori, um lembrete diário de que um dia vamos morrer. No entanto, é essencial tanto viver na presença da morte — e, assim, ter a certeza de estar sempre plenamente vivo — como estar preparado com as companhias literárias adequadas. De modo que, quando o momento vier, não cheguemos a um leito de morte — o nosso próprio, ou o de outra pessoa — sem o devido arsenal. Quer seja você quem está morrendo, quer você se encontre na cabeceira de uma pessoa amada enquanto ela deixa este mundo, alguma literatura que console e acalme, e ao mesmo tempo incentive suavemente a aceitação, é uma dádiva inestimável. Você ficará satisfeito por ter se preparado com essas duas obras de atemporal serenidade e grande beleza, seja para ler para si mesmo, se você puder, ou para ler em voz alta, ou para ouvir na voz de alguém.
Nesses momentos mais sérios da vida, precisamos de uma linguagem que possa nos elevar acima do comum. Pérola é um dos mais belos poemas de língua inglesa, escrito, ou pelo menos assim se supõe, pelo mesmo autor de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, a encantadora e evocativa “aventura” de Natal do século XIV. Pérola descreve a perda de uma “pérola de grande valor”, que muitos críticos acreditam que represente a filha de dois anos do poeta; outros defendem que a pérola seja inteiramente alegórica, representando a perda da alma e permitindo deliberadamente muitas interpretações quanto a seu significado. Tão pouco se sabe sobre a vida do poeta que ninguém pode ter certeza dos detalhes biográficos de seu suposto luto; este é inferido do poema, mas o texto, por sua vez, é tão cheio de camada sobre camada de alegorias que uma interpretação segura é impossível. Mas a própria ambiguidade é também o que torna o poema tão rico e irresistível. A agonia da perda expressa, a pureza do amor sentido, a beleza da pérola descrita estão todas intricadamente inseridas em um poema de estrutura notavelmente complexa. O poema é composto de cento e uma estrofes de doze versos cada, habilmente conectados por termos de ligação, enquanto vínculos temáticos criam uma relação entre os dois extremos do texto, produzindo uma estrutura que é, ela mesma, circular — como o ciclo de vida e morte. Mencionamos tudo isso porque o poema é tão belo, tão primoroso e agradável quanto uma pérola segura na palma da mão. Se você o interpretar literalmente, a “pérola de grande preço” representa a coisa ou pessoa que você mais ama no mundo (e que o agonizante deve, se possível, ter consigo no momento crucial). E, se você que está lendo isso for uma pessoa religiosa, vai se sentir pronto para passar para as mãos de Deus, porque a mensagem cristã é clara, e a pérola aparece como uma camareira dizendo ao poeta que ele deve se colocar sob a misericórdia de Deus para cruzar o rio e entrar no reino.
Tanto os que creem como os que não creem podem derivar conforto do conceito de transformação nessas horas. Porque, mesmo se acreditarmos que a morte é o fim, há um sentido segundo o qual meramente mudamos de forma. Para ajudá-lo a se sentir parte da roda da vida eterna, leia Ovídio, pois sua grande obra, Metamorfoses, é sobre como uma coisa se torna outra, ad infinitum.
Há tudo da vida nessas páginas, dos mitos da criação à vida dos filósofos, de Caos a Eros, da vinda dos deuses às provações de Hércules e Prometeu. Mas o tema central de Ovídio é o amor, o poder que transforma todas as coisas. Por causa de seu desejo, Zeus se transforma em um cisne, um touro, uma chuva de ouro. Por suas investidas contra a honra de suas vítimas, elas se tornam árvores, ninfas da água, aves ou feras. Diana transforma Acteon em um cervo, porque ele fatalmente a viu nua. Narciso se metamorfoseia em uma flor devido a seu amor por si mesmo. E Eco vive para sempre como um som repetitivo, tendo definhado de amor (se não for tarde demais, veja “mal de amor”). Aracne é transformada em aranha porque gostava demais de tecer. Tudo é mutável, nada permanece estático, e todos os seres passam de um estado a outro — não morrendo, mas tornando-se.
E, assim, os versos de Ovídio nos deixam hipnotizados, pois ele escreve sobre mito e lenda, amor e perda, mostrando como permanecemos em flores silvestres, oliveiras e riachos, com nossa vida fluindo de uma forma a outra em infindáveis metamorfoses.
( Ella Berthoud e Susan Elderkin - Farmácia literária)