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MORALIDADE REFORMADA

por Thynus, em 17.12.14
No fim do século XVI, o mundo ocidental (incluindo suas colônias ultramarinas em expansão) estaria dividido de forma hostil e permanente entre linhas religiosas — entre católicos e protestantes, e entre diversas variedades de protestantismo. O que os protestantes tinham em comum era uma crença de que as doutrinas e práticas da Igreja católica haviam se tornado corruptas e mundanas. Sua ambição era redescobrir o que Deus realmente exigia dos cristãos, e ordenar suas próprias sociedades de acordo com isso: não só em termos de culto religioso, mas em todas as esferas da vida. Diferente do dogma acumulado da Igreja e de seus papas e padres, sua maior base para isto devia ser a inspiração direta da palavra de Deus: o texto da Bíblia.
O sexo foi um aspecto central no modo como a Reforma remodelou o mundo. Aos olhos dos protestantes, toda a atitude da Igreja católica em relação à moralidade sexual parecia pateticamente frouxa e desonesta. Seus padres eram parasitas libidinosos: o ideal do celibato clerical não passava de uma piada. Os tribunais eclesiásticos não eram, nem de longe, austeros o bastante ao perseguir infratores sexuais e punir seus pecados mortais. Especialmente escandalosa era a tolerância à prostituição. Na opinião dos reformistas, a depravação escancarada era ainda mais perigosa que as ligações secretas: a visão ostensiva de prostitutas e bordéis dava um péssimo exemplo aos jovens, tentava homens e mulheres a pecar, e era especialmente acintosa a Deus. Além disso, permitindo e regulando o comércio sexual, a Igreja católica — a “prostituta da Babilônia” — estava literalmente se mantendo com a renda da fornicação e do adultério. “Ó Roma!”, dizia a convencional denúncia protestante, “a cortesã abre um negócio, paga um aluguel anual ao tesouro de sua Santidade, e tira uma licença para seu ofício”. Ao mesmo tempo, enquanto se deixava a moral do povo apodrecer, a própria Igreja enriquecia com o faturamento de multas, indulgências e os outros artifícios que impunha a seu rebanho desventurado. Em suma, havia uma relação direta entre a corrupção espiritual e sexual da Igreja católica e a de seus seguidores. Esta se revelou uma relação polêmica extremamente poderosa, que os protestantes depois explorariam para sempre.
Em vez de tal perversidade, os protestantes advogavam uma moral mais pura, mais rigorosa. A aspiração católica ao celibato foi descartada como algo irrealista e contraproducente. Para todos os homens, incluindo os sacerdotes, o casamento seria, dali em diante, a única vazão para o desejo sexual. Por outro lado, as diversas injunções divinas contra a promiscuidade deveriam ser levadas ainda mais a sério: todo sexo fora do casamento seria severamente punido. Que os adúlteros fossem condenados à morte era o ideal de Lutero, Zwingli, Bucer, Bullinger e outros líderes reformadores. A consequência foi que, onde quer que a Reforma tivesse êxito, ela era acompanhada por esforços conscientes para endurecer a disciplina moral: o fechamento de bordéis, a expulsão de prostitutas, e a instauração de punições mais severas para o adultério e a fornicação. Em resposta ao desafio protestante, um policiamento sexual mais rigoroso também se tornou uma característica da Contrarreforma católica. Em todo o mundo ocidental, o período presenciou uma intensificação da propaganda e da ação cristã contra a fornicação, o adultério, a prostituição e a sodomia.
A Inglaterra não foi exceção. Não está claro por que, mas já no fim da Idade Média, seus costumes aparentemente eram menos permissivos que os da cristandade continental. Muito poucas cidades parecem ter permitido bordéis licenciados; e não há evidência alguma de fundações religiosas para dar assistência a prostitutas penitentes, que eram comuns em outras partes da Europa Ocidental. Ao longo de todo o século XVI, houve muitas tentativas de implementar leis nacionais mais rígidas contra os infratores sexuais. Um estatuto de 1534 tornava a buggery [sodomia], fosse com outra pessoa ou com um animal, punível com a pena de morte. Outro, em 1576, dava aos juízes de paz o poder de punir os pais de qualquer criança nascida fora dos laços matrimoniais. Enquanto isso, muitos eclesiásticos e parlamentares trabalhavam por uma disciplina ainda maior. Em 1552, uma extensa revisão da Lei Canônica, liderada pelo arcebispo Cranmer, recomendava que os adúlteros sofressem a prisão perpétua ou o exílio (embora o apedrejamento até a morte, como notavam os comissários com uma certa nostalgia, fosse “a punição especialmente criada para isto por nossos patriarcas”). No mínimo, prostitutas, fornicadores e adúlteros deviam ser marcados com ferros quentes na bochecha ou na testa, sugeriu o escritor Philip Stubbes, para que “os cristãos honestos e castos se possam distinguir dos filhos adúlteros de Satã”. Muitos outros insistiam que o adultério devia ser um crime capital. A homilia oficial da dinastia Tudor contra a prostituição, que a partir de 1547 foi recitada regularmente em toda igreja de paróquia no reino inteiro, observava, em tom de aprovação, que muitas nações estrangeiras e pagãs do passado e do presente executavam pecadores sexuais, assim como Deus ordenara na Bíblia. Consequentemente, todo homem ou mulher inglês do período saberia que, por exemplo, “entre os turcos [...] caso sejam pegos em adultério, homem e mulher são ambos apedrejados imediatamente até a morte, sem misericórdia”. Os efeitos dessa desaprovação crescente podem ser vistos mesmo nas classes mais altas. Muitos nobres medievais e do começo do século XVI reconheciam seus filhos bastardos, ou mantinham amantes abertamente.
Depois da Reforma, no entanto, tal comportamento se tornaria mais controverso — no começo do século XVII, a imoralidade aristocrática gerava uma crescente inquietação sobre a degeneração das classes governantes.
A partir do século XVI, em conformidade com este endurecimento das atitudes, os tribunais eclesiásticos locais intensificaram os esforços contra o sexo antes do casamento, a gravidez ilícita, a bastardia e questões afins. O mesmo aconteceu com os governantes de cidades pequenas e grandes. Em Southampton e Norwich, na década de 1550, prostitutas notórias foram expulsas da cidade, sob pena de serem açoitadas e marcadas com ferro quente no rosto caso ousassem voltar. Em Rye, os fornicadores eram forçados a usar colarinhos especiais amarelos e verdes no pescoço. Em outros lugares, eram vergastados, arrastados em carroças ou presos no tronco. Rituais altamente elaborados foram concebidos em Bury St. Edmunds no fim dos anos de 1570. Aos domingos, os infratores sexuais eram conduzidos em desfile até o pelourinho público. Os cabelos das mulheres eram cortados. Então eram todos amarrados e deixados ali durante um dia e uma noite, à mercê das condições climáticas e do desprezo da comunidade. Por fim, na feira do dia seguinte, eram açoitados publicamente, “recebendo trinta chicotadas bem dadas até que brote o sangue”.
O ímpeto desta crescente austeridade vinha em parte do fervor religioso: os punidores mais entusiasmados da prostituição eram muitas vezes os protestantes mais evangélicos, que buscavam uma purificação cada vez maior da sociedade (os “puritanos”, como viriam a ser chamados na Inglaterra). Isso também refletia o aumento de pressões sociais. O século XVI foi um período de crescimento populacional e revolução econômica sem precedentes. No reinado de Elisabete I (1558–1603), isso já estava resultando numa considerável escassez, superpopulação, e pressão sobre os recursos locais. O alastramento cada vez mais virulento da sífilis a partir do fim do século XV gerava uma ansiedade crescente, em especial nas cidades de algum porte. Neste contexto, os problemas sociais causados pela imoralidade sexual — crime, doença, bastardia, pobreza — passaram a ser sentidos de forma cada vez mais acentuada. O endurecimento das medidas contra o adultério e a fornicação podem ser vistos, portanto, como parte de uma tentativa mais ampla do fim da dinastia Tudor de combater o empobrecimento e a desordem social, mediante a fundação de novos tipos de prisões e workhouses, um sistema totalmente novo de assistência aos pobres, e um combate feroz a outros tipos de comportamento antissocial, como a embriaguez, a ociosidade e a mendicância. Juntas, estas atitudes constituíam uma expansão significativa da intervenção governamental em problemas econômicos e sociais.
Londres era o epicentro do entusiasmo protestante, do poder cívico e central e das novas iniciativas. A partir do começo do século XVI, de acordo com o avanço do protestantismo e da sífilis, a imoralidade foi tratada com uma redobrada hostilidade. Já em 1506, os bordéis licenciados de Southwark foram fechados temporariamente; em 1546, foram abolidos de vez. Uma sucessão de prefeitos e vereadores protestantes lançaram suas próprias cruzadas contra infratores sexuais — não só ordenando que prostitutas fossem desfiladas em carroças, postas no pelourinho, açoitadas, banidas da cidade e arrastadas pelo Tâmisa, mas também usando a Lei Secular para perseguir fornicadores e adúlteros sistematicamente. Quando Rowland Hill, prefeito em 1550, instigou que cidadãos notáveis fossem levados em carroças por atos incastos, vários deles “lhe disseram que não era correto ser tão severo, e disseram que isso lhe custaria caro quando ele deixasse seu posto, mas ele não cessou por conta disso, apesar de que muitos homens pagariam vastas somas de dinheiro para serem salvos da humilhação”.
Especialmente importante foi a fundação de Bridewell na década de 1550, um tipo inteiramente novo de instituição penal para lidar com os depravados sexuais, mendigos, vagabundos e outros pequenos infratores da City. Este prédio na divisa ocidental da City, originalmente um dos palácios de Henrique VIII, foi a primeira “casa de correção” inglesa: um lugar aonde os infratores eram sumariamente enviados, para receber não só um açoitamento vigoroso, mas também semanas de detenção e trabalho duro, assim incutindo neles o temor a Deus e o hábito da industriosidade. Este modelo seria adotado em todas as outras cidades e condados da Inglaterra (o nome bridewell também se tornou um termo genérico para qualquer casa de correção). Sua fundação surtiu um efeito imediato na punição de infrações sexuais em Londres. Esta única instituição punia sozinha centenas de homens e mulheres incastos por ano — além do grande número de casos que devem ter sido tratados pelos oficiais paroquianos e tribunais eclesiásticos da cidade, suas reuniões de guardas da vizinhança, suas guildas de comércio e outros órgãos semelhantes, e seus juízes de paz. No final do século XVI, a imoralidade sexual já estava provavelmente sendo policiada com maior vigor em Londres do que jamais tinha sido antes.

(Faramerz Dabhoiwala - As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual)

publicado às 23:36



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