Enquanto conversa, Madame de T. baliza o terreno, prepara a próxima fase dos acontecimentos, dá a entender a seu parceiro o que ele deve pensar e como deve agir.
Faz tudo isso com finura, com elegância, e indiretamente, como se falasse de outra coisa. Faz com que ele descubra a frieza egoísta da condessa a fim de liberá-lo do dever de fidelidade e de descontraí-lo para a aventura noturna que ela prepara.
Organiza não apenas o futuro imediato como também o mais distante, fazendo o cavalheiro compreender que, sob hipótese alguma, ela quer se tornar concorrente da condessa, de quem ele não deve separar-se.
Dá a ele um curso resumido de educação sentimental, ensina-lhe sua filosofia prática do amor, que é preciso liberar da tirania das regras morais e proteger com a discrição que, de todas as virtudes, é a virtude suprema. E consegue até, com toda a naturalidade, explicar-lhe como ele deverá se comportar no dia seguinte com seu marido.
Vocês se espantam: onde, nesse espaço tão racionalmente organizado, balizado, traçado, calculado, medido, onde há lugar para a espontaneidade, para uma 'loucura', onde está o delírio, onde está a cegueira do desejo, 'o amor louco' que os surrealistas idolatraram, onde o esquecimento de si próprio? Onde estão todas aquelas virtudes da insensatez que formaram nossa ideia do amor? Não, nada disso tem vez aqui. Pois Madame de T. é a rainha da razão. Não da razão impiedosa da marquesa de Merteuil, mas de uma razão doce e terna, de uma razão cuja missão suprema é proteger o amor.
Vejo-a conduzindo o cavalheiro através da noite enluarada. Agora ela para e mostra-lhe os contornos de um telhado que se desenham diante deles na penumbra; ah, que momentos voluptuosos esse pavilhão presenciou, e é pena, diz ela, que não tenha trazido a sua chave. Aproximam-se da porta e (como é curioso! como é inesperado!) o pavilhão está aberto!
Por que ela lhe disse que não havia trazido a chave? Por que não lhe contou logo que não se fecha mais o pavilhão? Tudo está preparado, fabricado, e artificial, tudo é encenado, nada é franco, ou, em outras palavras, tudo é arte; nesse caso: arte de prolongar o suspense, ou melhor: arte de se manter o maior tempo possível em estado de excitação.
Não se encontra nenhuma descrição da aparência física de Madame de T. em Denon; uma coisa entretanto me parece certa,: ela não pode ser magra; imagino que tenha 'formas redondas e flexíveis' (é com essas palavras que Laclos caracteriza o corpo feminino mais cobiçado das Ligações perigosas) é que as formas arredondadas do corpo façam nascer o arredondado e a lentidão dos movimentos e dos gestos.
Emana dela uma doce ociosidade. Possui a sabedoria da lentidão e manipula toda a técnica do “retardando”. Dá provas disso no decorrer da segunda etapa da noite, passada no pavilhão: eles entram, beijam-se, caem sobre um canapé, fazem amor. Mas 'tudo isso tinha sido um pouco brusco. Percebemos nosso erro (...) Quando se é muito ardente, se é menos delicado. Corre-se para o gozo confundindo todos os prazeres que o precedem.'
A precipitação que os faz perder a doce lentidão é imediatamente percebida pelos dois como um erro; mas não acredito que Madame de T. se surpreenda com isso, acho pelo contrário que ela sabia ser esse erro inevitável, fatal, que esperava por ele e que por isso premeditou o intermezzo no pavilhão, como um ritardando destinado a frear, a abafar a velocidade previsível e prevista dos acontecimentos a fim de que, chegando a terceira etapa, num novo cenário, sua aventura pudesse desabrochar em toda a sua esplêndida lentidão.
Ela interrompe o amor no pavilhão, sai com o cavalheiro, passeia com ele novamente, senta-se no banco no meio do gramado, retoma a conversa e leva-o em seguida para o castelo, para o quarto secreto próximo ao seu apartamento; foi o marido quem o preparou, outrora, para ser um templo encantado do amor. Na porta, o cavalheiro fica admirado: os espelhos que cobrem todas as paredes multiplicam as imagens dos dois de tal forma que de repente um cortejo infinito de casais beija-se à volta deles. Mas não é aí que fazem amor; como se Madame de T quisesse evitar uma explosão dos sentidos intensa demais e para prolongar ao máximo o tempo de excitação, ela o leva para a peça contígua, uma gruta submersa em obscuridade, cheia de almofadas; é somente ali que eles fazem amor, longa e,: lentamente, até a madrugada.
Ao tornar mais lento o decorrer de sua noite, ao dividi-la em diferentes partes separadas uma da outra, Madame de T. soube transformar o curto espaço de tempo que lhes foi concedido numa pequena arquitetura maravilhosa, como uma forma. Imprimir forma a uma duração é uma exigência da beleza, mas é também uma exigência da memória.
Pois aquilo que não tem forma é inalcançável, imemorável. Conceber seu encontro como uma forma foi algo de particularmente precioso para eles, visto que sua noite não deveria ter amanhã e só poderia se repetir na lembrança.
Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais comuns: um homem andando na rua. De repente, ele quer se lembrar de alguma coisa mas a lembrança lhe escapa.
Nesse momento, maquinalmente, seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer acelerar o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no tempo, ainda está muito próximo de si.
Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.
(Milan Kundera - A Lentidão)