Se os que se dizem amigos e representantes de Cristo na terra soubessem do mundo em toda a sua crueza, não dariam a mão à jovem que, desesperada, abortou? Se fizessem ideia de que o ser humano é um ser histórico e que há amores que morrem e que ninguém pode ser obrigado a viver num inferno, fechariam as portas ao homem ou à mulher que,depois de um divórcio, quiseram retomar na dignidade a vida com outro alguém? Se fosse preciso negar a mesa dos sacramentos de Jesus, então que fosse aos exploradores dos pobres e aos fabricantes de guerras, mas não aos que sufocam na solidão. Se soubessem das pulsões que palpitam num corpo jovem, haveria a compreensão que cura, e o seu discurso não se enrolaria em preservativos, mas dialogaria sobre a dignidade de corpos conscientes e livres e incentivaria a educação aberta para a sexualidade. Se soubessem do deserto que atravessa a existência de tantos, haviam de colocar no centro das preocupações da Igreja as reais aspirações da humanidade pelo sentido da vida e pela procura do Deus vivo e não as fórmulas dogmáticas ou o direito canónico, o anúncio do Deus que liberta e não do Deus que ridiculariza e oprime, a reconsideração do celibato, que, enquanto lei, é contra o Evangelho, bem como da confissão, que, em vez de ser o espaço do perdão misericordioso de Deus, tem sido, tantas vezes, na sua prática concreta, o lugar da violência inquisitorial do mais íntimo das pessoas, com o risco de violação dos direitos humanos... Se soubessem de beleza, as liturgias haviam de explodir em alegria e festa.
Então, até Nietzsche havia de vir, pois foi ele que escreveu que "só acreditaria num deus que soubesse dançar". E António Nobre havia de ver resposta para a sua dor: "O que há-de ser de mim?"
(Padre Anselmo Borges - Janelas do InVisível)
a morte de Deus e mostrou
como o homem deve reavaliar
valores vigentes.
Em O nascimento da tragédia (1872), Nietzsche estabeleceu uma oposição entre o que ele chamou de impulsos apolíneos e dionisíacos na Grécia Antiga. “Dionisíaco”, para ele, significava o aspecto irracional, caótico e criativo da existência do homem, enquanto, por oposição, “apolíneo” se referia à distância crítica da razão, que afasta o homem da sua experiência vital do dionisíaco. Trabalhando em ideias primeiramente elaboradas por Arthur Schopenhauer, Nietzsche formulou o conceito de vontade de poder, uma força vital que ao mesmo tempo precede a existência humana e lhe serve de impulso. A morte de Deus necessitava do que Nietzsche chamava de reavaliação de todos os valores. Ele defendia que a natureza da percepção e do entendimento era relativa e questionava a noção de “verdade” objetiva ou absoluta. Seu conceito de eterno retorno é baseado na ideia de que cada momento deveria ser vivido como se fosse acontecer novamente para sempre, em um círculo infinito. Seu conceito de “superhomem” (Übermensch) – talvez o mais conhecido deles – se referia à visão de Nietzsche do homem como um ser vivendo entre o reino animal e um novo e mais elevado estado do ser, que poderia ser alcançado pelo exercício da vontade de poder.
A morte de Deus
Nietzsche deparou com O mundo como vontade e representação (1818), de Arthur Schopenhauer, por acaso, em uma livraria. Ele o teria lido inteiro de uma única vez. Neste livro, encontrou confirmação para ideias que vinham sendo fermentadas dentro de sua mente: que o mundo não é racional e que moralidade e significado histórico são relativos. Tudo isso, concluiu Nietzsche, advém do fato de que Deus está morto. O que ele quer dizer com isso? Em A gaia ciência (1882), Nietzsche pergunta: “Não ouvimos o barulho dos coveiros que estão enterrando Deus? Não sentimos o cheiro da divina putrefação? – porque até mesmo deuses sofrem putrefação! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, os mais assassinos entre todos os assassinos?” A resposta seria a “consolação” da filosofia, do pensamento. O homem agora precisava raciocinar por conta própria em vez de acreditar cegamente nas “verdades” da Igreja (ou da universidade).
Nietzsche é frequentemente classificado como um niilista, mas ele é mais bem entendido como um crítico do niilismo europeu de meados do século XIX, à medida que a ascensão do nacionalismo enfatizava o secular em detrimento do divino e que a ciência começava a superar a metafísica e a religião. Nietzsche não matou Deus; ele foi somente o mensageiro. A morte de Deus teve início com Copérnico (1473-1543). “O que fizemos quando desatamos esta Terra de seu sol?”, pergunta Nietzsche em A gaia ciência (1882). “Para onde ela se move agora? Para onde nós nos movemos? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existe ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos sobre nós a respiração do espaço vazio? Não ficou mais frio?”
Mas o criticismo de Nietzsche foi além da ciência ou da política; ele culpava o cristianismo por desvalorizar a vida ao sustentar a ideia de uma vida após a morte. A própria ideia de paraíso teria feito a vida na terra não valer a pena ser vivida. Neste sentido, o cristianismo corrompeu a vontade do homem e degradou todos os valores.
É a partir desta posição que o homem deve se tornar responsável por si próprio. É uma tarefa, ainda, que deve ser empreendida a despeito de determinadas probabilidades. Embora fosse crítico em relação a Darwin – que ele provavelmente não leu –, Nietzsche enxergava o homem como um ser vivendo em um drama evolutivo, no meio do caminho entre macacos e anjos.
O Übermensch
O homem que tenta deixar para trás sua posição atual, por esforço da sua vontade, é o Übermensch, ou “super-homem”. O super homem precisa também ser o criador de seus próprios valores. Os valores já prontos do cristianismo e da moralidade burguesa eram anátemas para Nietzsche – bestificantes, destruidores de vidas. Em Além do bem e do mal (1886) e em Genealogia da moral (1887), ele explorou a história da moralidade a partir de uma perspectiva que enriqueceu muito o estudo da ética. Mais tarde, esse trabalho foi assumido e ampliado por Michel Foucault, que, dos filósofos do século XX, foi talvez o mais influenciado por Nietzsche. Embora eles não tenham influenciado diretamente um ao outro, existem ainda correspondências entre os trabalhos de Nietzsche e Henri Bergson (1859-1941); ambos se preocuparam com o que foi chamado de Lebensphilophie, a consideração da vida vivida como um todo.
Eterno retorno
No centro da ética de Nietzsche, está o tema do eterno retorno. É um ensinamento que está mais insinuado do que abertamente declarado no livro Assim falou Zaratustra (1883-5). (O Zaratustra de Nietzsche é baseado na antiga divindade persa conhecida em inglês como “Zoroaster” [e, em português, como “Zoroastro”], que vai para o topo de uma montanha para meditar e depois desce para ensinar suas “crianças”.) Nietzsche encantou-se e depois rejeitou a música de Richard Wagner (1813-83), o compositor do ciclo de quatro óperas O Anel do Nibelungo, com quem ele teve uma longa e tempestuosa amizade. Nietzsche faz Zaratustra lamentar: “Ó, como eu poderia não almejar a eternidade e o nupcial anel dos anéis – o anel do retorno? Nunca encontrei, até agora, a mulher com a qual eu deveria desejar ter filhos, a não ser esta mulher que eu amo. Pois eu te amo, ó Eternidade!” Este refrão é repetido diversas vezes, e tem como resposta: “O prazer, no entanto, não deseja herdeiros nem filhos. O prazer quer a si mesmo, quer eternidade, quer retorno, quer que tudo seja eternamente igual a si mesmo.”
O que Nietzsche invoca com a doutrina do eterno retorno – que afirma que tudo no universo está em constante movimento, constante mudança – é uma espécie de imperativo categórico pós-teísta. Se Kant defendia que as pessoas deveriam agir somente de acordo com a máxima segundo a qual um ato deveria se tornar uma lei universal, então Nietzsche defendia que elas agissem como se aquele ato fosse se repetir eternamente. Este é o grande propósito que cabe ao homem seriamente após Deus. É o antídoto de Nietzsche para o niilismo de sua época, e é uma luz com a qual ele vislumbrou os novos territórios da experiência e da compreensão humana que viriam a ser explorados por fenomenologistas e existencialistas. Nietzsche lança as bases para a ontologia de Sartre e para os temas que ele explora em suas obras literárias. O desafio constante de Nietzsche é nos mostrar o abismo; a cada esquina, ele nos pergunta: E agora?
Mania, sífilis e morte
A vida de Nietzsche foi caótica. Sua saúde era frágil, e ele gastou muita energia para ofender a sensibilidade da sociedade cultural e intelectualmente dominante de sua época; por sua devoção ao pensamento, ele destruiu sua carreira como professor. Após dez anos ensinando na universidade, entregou-se totalmente à tarefa de escrever, enquanto vagava pela Europa. Ele se envolveu em um infeliz triângulo amoroso com Lou Andreas-Salomé (1861-1937) – uma femme fatale nascida na Rússia que mais tarde se associou a Freud e acabou se tornando psicanalista – e um de seus amigos, o filósofo alemão Paul Rée (1849-1901). Ele teve também uma relação tempestuosa com sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, uma antissemita radical que viajou ao Paraguai em 1886 para ajudar a fundar uma colônia ariana pura. Durante seus últimos dez anos de vida, Nietzsche vagou entre casas de repouso e montanhas, sempre escrevendo. Em 3 de janeiro de 1889, durante uma estadia em Turim, ele viu um homem chicoteando um cavalo. Nietzsche enlaçou o pescoço do animal com os braços, na tentativa de protegê-lo, e então teve um colapso. Sua mãe o levou para a Basileia e depois para uma clínica em Jena. Após a morte dela, Nietzsche passou a viver com a irmã em Weimar. Ele sofria terrivelmente com os efeitos de uma sífilis terciária, e uma série de derrames o levou à morte em 1900.
A difamação de Friedrich Nietzsche
Elisabeth Förster-Nietzsche passou a ter o controle sobre a publicação da obra de seu irmão e estabeleceu um arquivo de seus textos. Ela os editou de modo a dar-lhes uma abordagem que fizesse referência aos nazistas. Adolf Hitler (1889-1945) fez com que tirassem uma foto sua ao lado de um busto de Nietzsche. Mas a verdade é que Nietzsche detestava o nacionalismo alemão e o antissemitismo. Sua “política” – se é que ele tinha alguma – era a de um esteta, um esnobe. Ele venerava a arte. Uma de suas principais ferramentas era a ironia, e, em certa medida, Nietzsche foi um grande humorista. Ele gritava e ria dos que estavam no topo, às vezes com sua própria voz, outras vezes com a voz de um de seus “personagens”. Neste e em outros aspectos, Nietzsche se assemelhava ao seu predecessor no desenvolvimento do existencialismo, o dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-55).
O estilo aforístico de Nietzsche, que dava à sua filosofia um caráter pungente e mordaz, é facilmente citado fora de contexto. A pior falha de interpretação de Nietzsche é a que o considera um antissemita, quando, na verdade, ele foi o oposto: um antiantissemita. O biógrafo de Nietzsche, Rüdiger Safranski, faz uma citação reveladora do filósofo nazista Ernst Krieck: “No fim das contas, Nietzsche foi um opositor do socialismo, um opositor do nacionalismo e um opositor do pensamento racial. Sem levar em conta essas três inclinações do seu pensamento, ele poderia ter sido um nazista extraordinário.”
A grande contribuição de Nietzsche foi nos mostrar como pensar. Ele examinou problemas de diversas perspectivas e os modificou com a intenção de verificar se novos ângulos trariam novas soluções. Música e dança estão presentes em toda a sua filosofia, guiando o leitor em uma busca dionisíaca pelo conhecimento. Apartado da sociedade em seus anos derradeiros, Nietzsche foi certa vez observado por sua senhoria através do buraco da fechadura de sua porta – ele estava dançando nu. Em Assim falou Zaratustra, ele escreveu: “Eu somente poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar”.
Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, os mais assassinos entre todos os assassinos? (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência (1882)
(Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)Todos os filósofos compartilham este mesmo erro: partem do homem contemporâneo e, pela análise que dele tecem, acreditam poder atingir seus objetivos. Eles pensam automaticamente no “homem” como uma verdade eterna, como algo imutável no interior de um redemoinho, como uma medida incontestável de coisas. Tudo que o filósofo diz sobre o homem, no entanto, é, no fundo, não mais do que um testemunho a respeito do homem de um período extremamente limitado. Falta de senso histórico é o erro original de todos os filósofos. (Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano 1878)