Há um certo número de fatores por trás dessa falha em nosso conhecimento sobre o cristianismo primitivo. O centro dessa questão é o posterior dogma cristão de que Maria foi uma virgem perpétua, que nunca teve outros filhos além de Jesus e jamais teve relações sexuais com qualquer homem. Na Igreja primitiva, ninguém poderia nem sequer imaginar isso, pois a família de Jesus exercia um papel muito central e visível em sua vida e na dos primeiros discípulos. Tudo isso tem a ver com o fato de Maria ter sido totalmente isolada da cultura e do contexto judaicos do século I, em função do interesse de uma visão emergente na época de que a sexualidade humana era, na pior das hipóteses, degradante e perversa, e, na melhor delas, um mal necessário que tinha de alguma forma que ser combatido. O mundo material e tudo o que se relacionasse com o corpo eram vistos como baixos e de menor valor do que o mundo celeste e espiritual.
Os eruditos se referem a essa visão, bastante comum na cultura greco-romana, como dualismo ascético. Os seres humanos estavam presos entre dois mundos —material e o espiritual —, com duas maneiras de ser — a do corpo e a da alma (dualismo). Os que recusavam o corpo e viviam uma vida de celibato, enfatizando as coisas espirituais mais elevadas,"superiores", eram vistos como santos e livres da contaminação do mundo material inferior (ascetismo). De maneira geral, esse ponto de vista não encontrou abrigo favorável no judaísmo devido à ênfase da Bíblia no valor positivo dado à criação material de Deus (Gênesis I). Mas há exceções. Filo de Alexandria, o filósofo judeu do século I a.C., considera Platão, o grande advogado do dualismo ascético, quase no mesmo nível que Moisés. A influência de Filo, para não falar na de Platão, era enorme entre os pensadores,tanto judeus quanto cristãos. Como veremos, o apóstolo Paulo construiu sua teologia em torno dessa visão essencialmente dualista do cosmo, na qual o terrestre era denegrido em favor c as coisas celestes. Ele pregava o celibato como sendo uma via espiritual superior, embora não proibisse de maneira alguma as relações sexuais. Segundo Paulo, o casamento era um antídoto para os espiritualmente débeis, que poderiam ser tentados a cair na imoralidade sexual. (Consulte suas instruções em 1 Coríntios 7) É fácil ver como essas tendências de igualar a vida espiritual à vida sem sexo foram transferidas para Maria e sua família.
Já que se insiste em que "a abençoada Virgem Maria" foi "sempre virgem", sem nunca ter tido qualquer experiência sexual, os irmãos e irmãs de Jesus precisam ser explicados. Digo isso sem qualquer desrespeito para com os que sustentam tais percepções de Maria. No entanto, é importante compreender quando, como e por que tais ideias foram desenvolvidas. A história bem feita não precisa ser contrária à fé consagrada. O conflito aparece quando formas posteriores de piedade ascética e afirmações sobre a "santidade" são impostas a uma cultura por razões dogmáticas ou políticas. O que se perde então é a realidade histórica de quem foi Maria de verdade, enquanto mulher judia, casada, de seu tempo. O que se perde é a própria Maria! O ensinamento sobre a "virgindade perpétua" simplesmente não é encontrado no Novo Testamento e não faz parte dos primeiros credos cristãos. A primeira menção oficial a essa ideia só vem a partir de 374 d.C., com o teólogo cristão Epifânio.(A ideia da virgindade perpétua de Maria foi afirmada no 2º. Concílio de Constantinopla, em 553 d.C., e no Concílio de Latrão, em 649. Embora seja uma parte do dogma católico solidamente estabelecida, nunca foi, no entanto, objeto de uma declaração de infalibilidade pela Igreja Católica Romana) A maior parte dos escritos cristãos primitivos anteriores ao século IV d.C. aceita naturalmente que os irmãos e as irmãs de Jesus sejam filhos nascidos de José e Maria. (Essa é a chamada visão elvídica, em homenagem a Elvídio, um escritor cristão do século IV, que Jerônimo procura refutar. Eusébio, o historiador da igreja do século IV, cita regularmente fontes antigas e refere-se a irmãos de Jesus "segundo a carne", certamente concebendo-os como filhos de Maria e José. Consulte Eusébio, Church History 2.23; 3.19)
Por volta do fim do século IV d.C., a igreja começa a lidar com o problema da vida sexual de Maria, oferecendo duas explicações alternativas. Uma delas diz que irmãos não significa literalmente "irmãos" — nascidos da mesma mãe —, mas é um termo geral que se refere a "primos". Essa explicação, defendida pelos católicos romanos,' tornou-se a mais comum no Ocidente. No Oriente, os cristãos que conheciam o grego preferiram adotar um ponto de vista diferente — os irmãos eram filhos de um casamento anterior de José, sem laços de sangue com Jesus ou sua mãe.' Para os teólogos ocidentais, a visão oriental era claramente conflitante com a tendência emergente no Ocidente, proveniente do ascetismo, que queria transformar também José em um eterno virgem. Dessa maneira, a Sagrada Família, incluindo Jesus, podia ser integral e convenientemente "santa". Com a passagem dos séculos, ficou cada vez mais difícil para os cristãos, especialmente para os do Ocidente,poder imaginar Maria e José como seres humanos sexuados, ou mesmo vivendo uma forma qualquer de vida "corporal". Já que tinham se tornado "santos" no céu, ficou problemático evocar esse passado terrestre potencialmente degradante.
Se buscarmos restaurar o nome judeu de Maria — Miriam ou Maria, o nome feminino judeu mais comum naqueles tempos — e a inserirmos de volta na aldeia judaica do século I, chamada Nazaré, como uma mulher judia normalmente casada, as preocupações teologicamente levantadas parecem se esvanecer. Ficamos livres para recuperar uma história credível, muito mais fascinante e rica do que qualquer dogma teológico. Os textos dos registros do Novo Testamento começam a se tornar vivos para nós. Um dos professores de minha universidade tinha o hábito de dizer, sobre a pesquisa histórica: "Quando nos aproximamos da verdade, tudo começa a se encaixar".
Então, quem eram os irmãos e as irmãs de Jesus? A resposta mais óbvia é que eram filhos e filhas de Maria e José, nascidos depois que se casaram. Maria engravidou quando estava noiva, de pai desconhecido; José casou-se com ela de qualquer maneira, adotou Jesus como seu próprio filho; e o casal empreendeu uma vida normal de pessoas casadas, produzindo quatro filhos e duas filhas. As coisas bem podem ter-se passado assim, mas há um problema que não devemos esquecer. Mais uma vez, ele está relacionado com a compreensão do contexto cultural e religioso judaico daquela época, que se perdeu.
Há boas razões para se supor que José morreu cedo, seja porque era muito mais velho do que Maria ou por outra causa qualquer desconhecida. Depois dos relatos sobre o nascimento, ele parece desaparecer: Jesus é chamado "filho de José", ou as pessoas se referem às vezes a ele como "o filho do carpinteiro", mas o próprio José não mais aparece nas narrativas, nada mais se conta sobre ele. Jesus fez "sua mãe e seus irmãos" se mudarem para Cafarnaum em certo momento — mas não há qualquer menção a José (João 2:12). Em outro relato, sua "mãe e irmãos" vieram procurá-lo — e de novo não há a menor menção a José (Marcos 3:31). Mesmo na hora da crucifixão de Jesus, menciona-se Maria e provavelmente uma de suas irmãs, mas José está de novo estranhamente ausente. Depois da morte de Jesus, seus discípulos se reúnem em Jerusalém, e "Maria, a mãe de Jesus, com seus irmãos" faziam parte do grupo — mas não José (Atos dos Apóstolos 1:14). O silêncio parece indicar que alguma coisa acontecera a José.
Se José morreu cedo e Jesus e seus irmãos e irmãs cresceram "sem pai", certa mente isso deve ter tido uma repercussão psicológica e sociológica importante na família. Mas se José morreu sem ter tido filhos, as conseqüências para os tradicionais dogmas teológicos sobre Maria são outras. Segundo a Torá, ou Lei de Moisés, o mais velho dos irmãos sobreviventes era obrigado a se casar com a viúva do seu falecido irmão, de forma a que o "nome" ou a linhagem do irmão morto não se extinguisse. Isto é chamado um "levirato" ou yibbum, em hebraico, e é uma exigência da Torá (Deuteronômio 25:5-10),' um dos mandamentos que Deus deu a Israel e que os judeus praticantes levam muito a sério. Em um dos Evangelhos, o levirato é discutido quando perguntam a Jesus qual era sua opinião em um caso em que uma mulher, viúva sete vezes, se casou sucessivamente a cada vez com um dos irmãos de seu primeiro marido (Marcos 12:19-22).
De repente, a questão de quem era o pai de Jesus toma uma dimensão inteiramente nova. Se José não era o pai de Jesus e morreu sem descendência, Maria, a viúva, não estaria obrigada a se casar com o irmão de José? E o que se sabe do irmão de José? Curiosamente, sim, sabemos alguma coisa. Ele é mencionado no Novo Testamento, embora raramente reconhecido.
Queremos seguir as provas lá onde elas nos conduzem, mas as implicações de que Maria fosse mãe de sete filhos com três homens diferentes parecem soar indecentes hoje em dia. Mas, e se essa prática fosse não apenas normal, mas na verdade exigida e honrosa dentro da cultura judaica daquela época? Era esse, certamente, o caso. Honrar assim um homem que tinha morrido sem herdeiros, assegurando sua posteridade, era uma das coisas mais sagradas e honrosas que uma família podia fazer. Lembram-se das quatro mulheres que Mateus menciona em sua genealogia? Duas elas, Tatuar e Rute, eram viúvas envolvidas em leviratos. Talvez Mateus saiba mais do que explicita. Seria um erro julgar qualquer fato referente a Maria e aos pais de seus filhos segundo nossos padrões teológicos e culturais. O que devemos fazer é buscar as provas — nesse caso, um conjunto de pistas escritas, complexas, mas reveladoras, deixadas, de maneira não deliberada, dentro do próprio Novo Testamento.
(James Tabor - A dinastia de Jesus)
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Jesus teve irmãos carnais |