O objetivo último do historiador das religiões é compreender, e tornar compreensível aos outros, o comportamento do homo religiosus e seu universo mental. A empresa nem sempre é fácil. Para o inundo moderno, a religião como forma de vida e concepção do mundo confunde-se com o cristianismo. No melhor dos casos, um intelectual ocidental, com certo esforço, tem algumas probabilidades de se familiarizar com a visão religiosa da Antiguidade clássica e mesmo com algumas das grandes religiões orientais, como, por exemplo, o hinduísmo ou o confucionismo. Mas esse esforço de alargar seu horizonte religioso, por mais louvável que seja, não o leva muito longe; com a Grécia, a Índia, a China, o intelectual ocidental não ultrapassa a esfera das religiões complexas e elaboradas, que dispõem de uma vasta literatura sacra. Conhecer uma parte dessa literatura sacra, familiarizar-se com algumas mitologias e teologias orientais ou do mundo clássico, não é ainda suficiente para conseguir compreender o universo mental do homo religiosus. Essas mitologias e teologias encontram-se já excessivamente marcadas pelo longo trabalho dos letrados; embora, propriamente falando, não constituam “religiões do Livro” (como é o caso do judaísmo, do zoroastrismo, do cristianismo, do islamismo), possuem livros sagrados (a Índia, a China) ou, pelo menos, sofreram a influência de autores de prestígio (por exemplo, na Grécia, Homero).
Para se obter uma perspectiva religiosa mais ampla, é mais útil familiarizar-se com o folclore dos povos europeus; em suas crenças, costumes e comportamento perante a vida e a morte, ainda podemos reconhecer numerosas “situações religiosas” arcaicas. Estudando-se as sociedades rurais européias, pode se compreender o mundo religioso dos agricultores neolíticos. Em muitos casos, os costumes e as crenças dos camponeses europeus representara um estado de cultura mais arcaico do que aquele testemunhado pela mitologia da Grécia clássica’. É verdade que a maior parte das populações rurais da Europa foi cristianizada há mais de um milênio. Mas elas conseguiram integrar ao seu cristianismo uma grande parte de sua herança religiosa pré-cristã, de uma antiguidade imemorial. Seria inexato supor que, por esta razão, os camponeses da Europa não são cristãos. É preciso, porém, reconhecer que a religiosidade deles não se reduz às formas históricas do cristianismo, que conserva ainda uma estrutura cósmica quase inteiramente perdida na experiência dos cristãos das cidades. Pode-se falar de um cristianismo primordial, a histórico; ao se cristianizarem, os agricultores europeus integraram a sua nova fé a religião cósmica que conservavam desde a pré-história.
Entretanto, para o historiador das religiões desejoso de compreender e fazer compreender a totalidade das situações existenciais do homo religiosus, o problema é mais complexo. Para lá das fronteiras das culturas agrícolas estende-se todo um mundo: o mundo verdadeiramente “primitivo” dos pastores nômades, dos caçadores totemistas, das populações ainda no estágio da caça miúda e da colheita. Para conhecer o universo mental do homo religiosus é preciso ter em conta, sobretudo, os homens dessas sociedades primitivas. Ora, o comportamento religioso deles parece nos, hoje, excêntrico, se não francamente aberrante, e, em todo caso, muito difícil de compreender. Mas o único meio de compreender um universo mental alheio é situar-se dentro dele, no seu próprio centro, para alcançar, a partir daí, todos os valores que esse universo comanda.
O primeiro fato com que deparamos ao adotar a perspectiva do homem religioso das sociedades arcaicas é que o Mundo existe porque foi criado pelos deuses, e que a própria existência do Mundo “quer dizer” alguma coisa, que o Mundo não é mudo nem opaco, que não é uma coisa inerte, sem objetivo e sem significado. Para o homem religioso, o Cosmos “vive” e “fala”. A própria vida do Cosmos é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelos deuses e os deuses mostram-se aos homens por meio da vida cósmica.
É por essa razão que, a partir de um certo estágio de cultura, o homem se concebe como um microcosmos. Ele faz parte da Criação dos deuses, ou seja, em outras palavras, ele reencontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmos. Segue-se daí que sua vida é assimilada à vida cósmica: como obra divina, esta se torna a imagem exemplar da existência humana. Vimos, por exemplo, que o casamento é valorizado como uma hierogamia entre o Céu e a Terra. Entre os agricultores, porém, a correspondência Terra Mulher é ainda mais complexa. A mulher é assimilada à gleba, as sementes ao semen virile e o trabalho agrícola à união conjugal. “Esta mulher veio como um terreno vivo: semeai nela, homens, a semente!”, está escrito no Atharva Veda (XIV, 2, 14). “Vossas mulheres são como campos para vós” (Corão, 11, 225). Uma rainha estéril lamenta-se: “Sou como um campo onde nada cresce!” Num hino do século XII, a Virgem Maria é glorificada como terra nora arabilis quae fructum parturiit.
Tentemos compreender a situação existencial daquele para quem todas essas correspondências são experiências vividas e não simplesmente idéias. É evidente que sua vida possui uma dimensão a mais: não é apenas humana, é ao mesmo tempo “cósmica”, visto que tem uma estrutura trans humana. Poder-se-ia chamá-la uma “existência aberta”, porque não é limitada estritamente ao modo de ser do homem. (Sabemos, aliás, que o primitivo situa seu próprio modelo a atingir no plano trans humano revelado pelos mitos.) A existência do homo religiosus, sobretudo do primitivo, é “aberta” para o mundo; vivendo, o homem religioso nunca está sozinho, pois vive nele uma parte do Mundo. Mas não se pode dizer, como Hegel, que o homem primitivo está “enterrado na Natureza”, que ele não se reencontrou ainda como distinto da Natureza, como ele mesmo. O hindu que, abraçando sua esposa, proclama que ela é a Terra e ele é o Céu, está ao mesmo tempo plenamente consciente da humanidade dele e de sua esposa. O agricultor austro asiático que designa com o mesmo vocábulo, lak, o falo e a enxada e que, como tantos outros cultivadores, assimila os grãos ao semen virile, sabe muito bem que a enxada é um instrumento que ele fabricou para si e que, ao trabalhar o campo, efetua um trabalho agrícola que exige um certo número de conhecimentos técnicos. Em outras palavras, o simbolismo cósmico junta um novo valor a um objeto ou uma ação, sem com isso prejudicar seus valores próprios e imediatos. Uma existência “aberta” para o Mundo não é uma existência inconsciente, enterrada na Natureza. A “abertura” para o Mundo permite ao homem religioso conhecer-se conhecendo o Mundo – e esse conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento religioso, refere se ao Ser.
(Mircea Eliade - O SAGRADO E O PROFANO)