Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]




Estética e Filosofia

por Thynus, em 04.05.17
O mais orgulhoso dos homens,
o filósofo, acredita ver por todos
os lados os olhos do universo
voltados telescopicamente na
direção de seu agir e pensar.

(F. Nietzsche)
 
Para seguir com o que Nietzsche nos diz acima, seria apropriado perguntar quem são os filósofos? Uma definição praticamente cabal pode ser encontrada em Hegel, que descreveu o filósofo como um escolástico que jamais entra em um rio antes de aprender a nadar... O cacoete da antecipação, do apriorismo, é a melhor e a pior característica do filósofo.
Quando filosofamos, “ainda estamos, de algum modo, reproduzindo, mesmo sem ter clareza disto, o modelo grego de pensamento”. (MOSÉ, 2011-B, p. 94). Em um amplo espectro, podemos afirmar que duas correntes do pensamento grego disputaram a hegemonia do saber no ocidente. De um lado, sofistas, alguns pré-socráticos e outros filósofos escolheram variadas formas de materialismo e perspectivismo, relativizando o poder da palavra em transmitir o conhecimento. Por outro lado, filósofos idealistas, como Platão, Aristóteles e seus discípulos, preferiram crer na possibilidade de conhecer verdades universais, baseados na crença ancestral de que o cerne da sabedoria consiste em conceber o nome verdadeiro das coisas – estes metafísicos tornaram-se dependentes dos atributos da gramática, cujos métodos permitiram a abstração do real.
A criação de um “mundo além do mundo”, isto é, da metafísica, foi uma operação ideológica que tomou certo tempo para se constituir, tendo em Platão seu primeiro grande articulador. Dentre as diversas fontes das quais surgiu a metafísica, GALIMBERTI nos lembra daquela que talvez seja sua matriz principal.
Dessa piedade[Do latim pietatem, significa o sentimento de fidelidade que conduz o homem a crer no divino e nas coisas da religião, podendo ser interpretado como “fé”. Mas, a palavra piedade vem ao português com a conotação de “compaixão”, derivada da ideia de que o crente em deus, por óbvia razão, seria alguém que nutre compaixão pelo outro. Mas, ao contrário da ideia de compaixão, a palavra “piedade”, em seu sentido original, se refere a “fé” e “crença”] cósmica nasce a primeira reflexão ontológica da filosofia ocidental, quando no Parmênides Platão pensa a relação entre o múltiplo e o Uno. A conclusão dessa reflexão é que o Todo tem precedência sobre as partes e é melhor do que as partes. É nele que as partes estão, aí encontram a sua causa e também o significado das suas existências.(2006, p. 33)
Aqui surge o embrião do pensamento metafísico que nega, de imediato, a origem do real como produto de forças naturais, com a intenção de assumir sem qualquer prova ou exame, a crença de que a origem do mundo está além de tudo o que existe. Via de consequência, aquilo que origina o mundo não está no mundo originado, mas se encontra em outro princípio original, enquanto este mundo no qual vivemos se torna mero reflexo fragmentado (formado de partículas e manifestações singulares) do “outro mundo” que, então, passa a ser considerado o mundo verdadeiro – o “Uno”.
Ao criarem um mundo ideal mais permanente e pacífico do que o mundo das aparências movediças e transitórias do real, os idealistas imbuíram-se da portentosa tarefa de tornar “melhor” o homem e seu mundo “imperfeito”. Impuseram-se o trabalho de submeter o devir aos parâmetros do pensamento claro, exato, distinto e objetivo da razão. E as gerações de pensadores que prepararam o edifício doutrinário hoje conhecido como racionalismo ocidental assentaram as bases intelectuais da única forma de pensar considerada verdadeira, isto é, aquela cuja principal estratégia provém do sequestro exaustivo da exuberância do real e da experiência da vida.
O que chamamos de razão ocidental não somente busca, mas afirma atingir, desligando-se de todas as condições históricas e particulares, o permanente, o incondicionado e o verdadeiro. A busca pela verdade é a base daquilo que chamamos razão ocidental. (MOSÉ, 2011-B, p. 95)
O abuso cometido pela tradição filosófica ocidental foi descrer da abundância diversificante do mundo e nos fazer acreditar na verdade oculta das abstrações essenciais. A petulância orgulhosa do pensador chegou à delirante conclusão de que a razão humana, subsidiada pela linguagem, poderia, cabalmente, alcançar a perfeição e a universalidade, qualidades imprescindíveis à contemplação da verdade eterna. Diferentemente da propalada busca pela adequação do pensamento às coisas, a verdade filosófica acabou por se fazer estranha ao mundo real, para flutuar no plano metafísico das essências. Segundo esse pensamento, a verdade deixa de ser a melhor interpretação semiótica da realidade do fenômeno, de modo a dirigir o pensamento para fora deste mundo, na forma de uma concordância entre as regras da razão. Nietzsche supõe que “a verdade quer alguma coisa, e o que ela quer é um outro mundo, uma outra vida. O mundo ‘pensado’ é o mundo simplificado, codificado, tornado linguagem”. (MOSÉ, 2011, p. 37)
O programa da tradição filosófica, que ainda permeia a maior parte do debate contemporâneo, sempre teve por objetivo fazer crer que todo conhecimento passa pelo verbo, pois acredita que todo o real é inteligível. Mas, o real, esse conjunto indefinido de fenômenos materiais inefáveis, jamais será completamente acessível a qualquer linguagem humana.
Os guardiões da palavra – os filósofos –, crendo ser a realidade redutível ao verbo, manipulam mundos a seu bel prazer, projetam utopias universais, criam um ‘novo’ homem, transformando a gramática numa espécie de chave geral do conhecimento.
“Na interpretação de Nietzsche, a filosofia não conseguiu dar um passo além da gramática: toda filosofia é, em última instância, uma ‘filosofia da gramática’”. (MOSÉ, 2011, p. 139)
Por conta de uma manobra diversionista da tradição, a lógica gramatical impôs-se como método de exposição do pensamento filosófico, descolando a produção do discurso reflexivo do chão das coisas para o céu das ideias. Por isso, “a metafísica decorre de um aperfeiçoamento da linguagem. Linguagem e razão são ‘aparelhos’ de produzir duração. É a linguagem que ‘advoga’ a favor do erro metafísico do ser: raciocinar é submeter o pensamento a este sistema”. (MOSÉ, 2011-B, p. 164) Mas, o pobre “filósofo que crê alcançar por reflexão significações puras tropeça nos mal-entendidos acumulados pela história das palavras”. (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 56)
A impressão que se tem é que a verdade dos conceitos só é universal porque dura o tempo que a linguagem resiste contra as derivas semânticas. A ilusão de estabilidade do sentido é a miragem com a qual a linguagem ilude os incautos idealistas, que passam a crer na verdade como permanência e identidade do ser. Para que o ‘ser’ ganhasse existência concreta seria preciso congelar o fluxo do real, paralisando o mundo, de modo que se impeçam as coisas de vir-a-ser outras.
No mundo real não pode haver o ser, já que não existe duração suficiente para estancar o fluxo das coisas e congelá-las no momento em que elas ‘são’. Contudo, apesar da insistente realidade dos fatos, os “filósofos gostam de mumificar tudo que amam, arrastar de um lado para outro múmias conceituais enquanto a vida escapa”. (MOSÉ, 2011-B, p. 173)
Ao investir contra a fisiologia dos corpos, a tradição do pensamento concebeu a metafísica, cuja etimologia é muito simples ao indicar tudo aquilo que está situado além ou fora do mundo real. Também se atribui ao idealismo filosófico a invenção do “niilismo, como forma de substituição da vida pela ideia. É somente na ficção, na ideia, que a duração, a verdade, a identidade, podem se sustentar” (MOSÉ, 2011, p. 14).
Uma das mais prementes urgências, a que a humanidade está sujeita, é conhecer melhor o ambiente em que habita, de modo a garantir sua sobrevivência e prosperidade. Todo e qualquer conhecimento deve contribuir para o esforço do homem em seu relacionamento com a realidade do mundo. Em vista disso, as linguagens não podem ser utilizadas, como querem os idealistas, para inventar outros mundos descolados da realidade – ficções artísticas à parte –, muito menos serem instrumentos de imposição de ideias antropocêntricas ao fluxo inconstante do real.
Como foi mencionado em capítulo anterior, as linguagens dão suporte à consciência. Embora seja o repositório da sabedoria comunitária, a consciência não é universal, porque sempre se trata da história cultural de uma sociedade específica. Transmitida por meio das linguagens, de geração em geração, não existe uma “consciência em si”, porque seu justo papel é fornecer às pessoas os modelos de representação social e psicológica aos quais elas devem se submeter para garantir seu pertencimento a uma comunidade específica.
[A] consciência é o lugar da semelhança, do nivelamento, da vulgaridade. Por ser a valorização da linguagem, do pensamento, da tradução em signos de comunicação, a consciência diz respeito, exclusivamente, ao tornar-se rebanho, mediano, comum. A consciência é uma grade interpretativa que traduz a vida para um universo específico de conceitos e valores e se tornou a instância moral por excelência. (MOSÉ, 2011-B, p. 45)
Sem se apresentar de forma oposta ao pensamento inteligível, existe em cada indivíduo um conjunto de conhecimentos subjetivos, pessoais, privados e singulares, que se compõe de experiências pessoais adquiridas a partir do exercício das percepções, sensações, emoções, sentimentos e afetos, formadores da memória sensível (estética). Esse conhecimento estético está na base da constituição da personalidade individual e se junta (harmônica e/ou conflituosamente) à consciência coletiva internalizada socialmente pelo indivíduo, dando forma à sua memória de longo prazo (estética e lógica), fonte da qual emerge a ipseidade do homem.
Se considerarmos que a consciência é da ordem do coletivo, a ideia de uma “autoconsciência” independente se transforma num equívoco metafísico. Pois a consciência pessoal é aquela parte do conhecimento coletivo que todo membro da sociedade incorpora em sua psiché, como condição necessária de seu pertencimento ao grupo social. No âmbito da consciência não tem como predominar um ‘eu’, mas obrigatoriamente um ‘nós’. Este é o caso, por exemplo, do domínio filosófico da ética – a regra, por excelência, da convivência comunitária –, que muitos ainda acreditam ter vínculos metafísicos com verdades reveladas acerca do bem e do mal, e encravadas no subsolo da psiché humana, como traço definitivo de nossa origem divina. Tolice!
Toda ética e suas moralidades são obra e reflexo de longa sedimentação de valores no interior de uma comunidade, que passam ao indivíduo pela comunicação da consciência (cum + scientia = ciência de todos), que se coletiviza, na medida em que é sempre mais comunicada e reafirmada pela tradição. Mas a consciência não deixa de ser a superfície de um lago, que reflete nada mais que os valores de uma comunidade. E como espelho, a consciência reflete o que existe pelo lado de fora e nos dá a ciência do mundo exterior ao ‘eu’. Somente os processos não-conscientes (inconscientes) pertencem exclusivamente ao indivíduo!
Note o parentesco entre reflexo, coisa de espelho, e reflexão, coisa do pensamento: reflexão é pensar os reflexos. [...] As águas profundas são o corpo. A psicanálise fala de ‘inconsciente’. O inconsciente é o lugar onde mora a sabedoria, os saberes que o corpo sabe sem que deles a consciência tenha consciência. Por isso, eles não podem ser ditos. Na profundeza das águas, tudo é silêncio. A sabedoria do corpo não pode ser dita com palavras-conceitos. Ela só pode ser sugerida por meio de metáforas.(ALVES, 2011, p. 71-72)
Se a consciência é a ciência da sabedoria comum, ela é o conhecimento do outro, que cada membro compartilha com a comunidade a qual pertence. Por ser produto dos discursos das linguagens da cultura, a consciência se parece muito com, por exemplo, a linguagem verbal: é comum a todos e ninguém a possui, cada indivíduo se utiliza dela, mas por ela é moldado; a linguagem não existe sem os indivíduos, mas ela controla suas vidas. Por isso, a consciência é sobredeterminada pela comunicação social de símbolos e valores.
Se a sociedade é formada por indivíduos, precisamos ter ao menos duas ciências para lidar com nossa humanidade. Uma delas é a ‘consciência’, necessária para nos relacionarmos com o outro, a partir de sistemas simbólicos e discursos que estão presentes da cultura. O outro conhecimento que faz par com a consciência se relaciona com minha ipseidade e remete ao conhecimento que acumulo de minhas experiências pessoais e que permite me individualizar em relação a todos os demais membros da comunidade.
Como não existem comunidades sem indivíduos, a coletividade e a individualidade são conexas. A noção de ipseidade não tem como se opor à consciência, pois ambos os conhecimentos (do outro e de si) são necessários para a congregação humana. Se adotarmos essa interpretação, a consciência não pode então ser entendida como a mente individual desperta em estado de vigília, nem como sinônimo de subjetividade, mas como um conjunto de cognições e valores comunitários impostos ao/ou apropriados pelo indivíduo durante o aprendizado necessário para se tornar membro de sua comunidade.
A ipseidade, por sua vez, não pode ser considerada uma oposição à consciência, tão pouco significar o domínio onírico do inconsciente, nem a totalidade dos processos fisiológicos de nosso sistema cerebral, mas o conjunto de cognições individuais e subjetivas adquirido pela experiência do corpo em atrito com o fluxo do real – que forma a memória estética, em seu processo natural de ‘egocentramento’.
Podemos inferir que a consciência é o ambiente, ao mesmo tempo social e psicológico, em que o logos predomina, enquanto que a ipseidade é o meio apropriado para a formação de cognições estéticas e da memória afetiva (experimental). Naquilo que se refere à cognoscência humana, essas regiões cognitivas (consciência e ipseidade) não são opostas, mas complementares e interdependentes. Para se obter um conhecimento eficiente do mundo real, o pensamento humano deve se utilizar de cognições híbridas, que comportem elementos lógicos, como também estéticos – o que demanda uma educação estética, a par com a educação intelectual.
Comenta Luc FERRY que, antes de Freud, Nietzsche já teria dito que a consciência é um produto da linguagem verbal, desenvolvida a partir da necessidade de comunicar. Desse modo, o humano teria se tornado consciente apenas daquilo que é comunicável, partilhável e comum. Caso concordemos nisso, seria necessário reconsiderar o famoso aforismo délfico nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo), pois tal preceito não poderia se realizar, caso levássemos em conta apenas a consciência que, segundo o pensador alemão, é a menor parte, talvez o mais vulgar conjunto de conhecimentos que socialmente obtemos sobre nós e as coisas. (2003, p. 181-182) Sócrates, quando propôs este oráculo como um elemento próprio da filosofia, teria sido o primeiro a se enganar a respeito.
Além de constituir um conhecimento parcial, a consciência pode ser também perigosa. Segundo narra a mitologia grega, a mãe de Narciso desejou saber se seu filho teria uma longa vida e para isso procurou Tirésias, que Juno havia cegado, mas Júpiter concedido o dom de ver o futuro. Segundo o oráculo, Narciso terá “uma longa vida se não conhecer a si mesmo”. Todos sabemos que Narciso ainda jovem definhou até a morte, ao apaixonar-se pelo reflexo de sua própria imagem nas águas de um lago.
Como deveríamos interpretar essa alegoria mítica? Seria, talvez, uma advertência contra a vaidade intelectual de enxergar a imagem do homem na face do mundo? Se esta for a interpretação do oráculo, corremos o risco de nos destruir, e ao mundo, caso humanizemos a realidade à nossa semelhança.
Ao inverter o mandamento délfico, tão venerado e repetido como um mantra pelo senso comum, Tirésias denuncia a orgulhosa pretensão humana de se conhecer pela reflexão (das águas do lago e do pensamento) e o perigo que a ilusão da consciência pode representar, ao nos fazer crer que podemos saber quem somos e nos maravilhar acreditando ser aquilo que pensamos de nós mesmos. (CASSIN, 1999, p. 131)
Esse maravilhamento do homem para consigo mesmo é de longa data. O consenso produzido pelas linguagens no interior das comunidades humanas é um feito ímpar na história da vida, embora muitas vezes nos iluda com a forçada identidade que produzimos com a imagem que fazemos de nós e do mundo.
Mas, por meio das linguagens o homem também produziu a concórdia, que por sua vez criou a civilização. Desse modo, as regras das linguagens tornaram-se as regras da comunidade (e vice-versa), criando-se o princípio do logos como o acordo geral que o homem sonha fazer entre si e o real, a ponto de imaginar que as palavras e sua gramática provêm das próprias coisas (nomina sunt consequentia rerum[“As palavras são consequência das coisas”. Este conceito provém da crença de que as palavras emitidas pela linguagem humana mantêm vínculos metafísicos com as coisas que denominam, o que faz da palavra um elemento da realidade ou daquilo que formata a realidade, podendo substituí-la ou até criá-la.]. Os gregos já imaginavam o logos como o sentido da ordem cósmica partilhado por todas as coisas e eventos, igualmente presente no interior do verbo.
O logos também é comum enquanto princípio de acordo entre potências diversas, de entendimento entre quem fala e quem escuta, de unidade pública e ação conjunta entre os membros de uma dada comunidade política. O logos é todas essas coisas porque o termo significa não apenas o discurso dotado de sentido, mas o exercício da inteligência enquanto tal, [...] logos significa não simplesmente ‘linguagem’, mas também discussão racional, cálculo e escolha: a racionalidade tal como expressa na fala, no pensamento e na ação. (KAHN, 2009, p. 132)
A lógica (logos + technè) desenvolveu-se ao longo dos milênios como a base constituinte da filosofia, da ciência, como também das instituições sociais ocidentais, tornando-se nesse processo a própria maquinaria da consciência, sob a qual os indivíduos se tornaram ‘sujeitos’. A construção da ordem geral e do acordo político em torno do qual o governo apascenta o rebanho humano, demandou o desenvolvimento da racionalidade, cuja base hermenêutica é o logos. Hospedeiro das entranhas da consciência ocidental, o logos se alojou no cerne do pensamento filosófico e ganhou com a modernidade cartesiana seu mais representativo modelo teórico.
Fundada na cisão entre sujeito e objeto, a herança deixada pelas filosofias da consciência (de Descartes a Husserl) foi a separação e oposição entre corpo e alma, matéria e espírito, mundo e consciência, fato e ideia, sensível e inteligível. [...] Torna-se o projeto de posse intelectual do mundo, domesticado pelas representações construídas pelo sujeito do conhecimento. (CHAUÍ, 2010, p. 267)
Ainda influenciada direta e/ou indiretamente pela onipresença do judaico-cristianismo, segundo o qual é imperativo transcender a matéria da encarnação, a filosofia moderna continua crendo no logos como o lócus privilegiado da verdade (alcançável apenas por suas technai: gramática e matemática), enquanto transfere todas suas preocupações de ordem reflexiva para o exercício da consciência como modelo humano a ser imposto ao mundo, inclusive aos outros homens. Em sentido contrário, mantém isolado sob o tapete epistemológico, o conjunto desarticulado das forças sensacionais, das percepções sensoriais, das paixões pulsionais, dos desejos e necessidades fisiológicas, que ali perfazem o reino obscuro da ipseidade. Esse abismo cognitivo sobre o qual o olhar transcendental do filósofo pouco se demora é ...
o conhecimento do sensível, da não razão, dos estados que antecedem a distinção entre sujeito e objecto [que] constitui um território ainda muito pouco explorado. [...] O meu corpo, cuja coesão é a de uma ‘coisa’, é preso no tecido do mundo, o qual é percebido como qualquer coisa de contínuo. (PERNIOLA, 1998, p. 114-115)
O que incomoda a esse filósofo tradicional é a impossibilidade de abstrair o corpo humano e torná-lo invisível, para que sua carne deixe de ser essa coisa sensível, atada a este mundo em inconstante transição, material e concreto, que sempre desafia a imagem excelsa dos conceitos da razão.
O esforço milenar do idealismo filosófico e religioso para dessensibilizar o corpo do homem contaminou também o senso comum. Em seu famoso livro O pequeno príncipe, Antoine de Saint-Exupéry escreve que “o essencial é invisível aos olhos”. Se interpretarmos que “essencial” para o escritor é tudo aquilo de mais importante, Saint-Exupéry estaria fazendo coro com o senso comum cartesiano que ainda vigora no ocidente, ao crer que “o mais importante é o conteúdo”.
O hálito morno que exala da boca dos corpos vivos talvez seja aquilo de invisível que realmente importa para a vida, mas não os castelos de vento das utopias intelectuais que visam transcender a biologia e a fisiologia dos corpos para criar um novo mundo, um “homem novo”. Na sociedade contemporânea, vemos aumentar o grau de desconfiança com relação às promessas jamais cumpridas pela razão e nos sentimos algo fatigados de tanto pensamento abstrato e transcendental, de modo que uma revolução silenciosa caracterizada por uma estética cognitiva abre espaço para a elaboração de uma ideia mais concreta de pensamento28.
Essa ideia de pensamento repousa sobre uma afirmação fundamental: existe pensamento que não pensa, pensamento operando não apenas no elemento estranho do não-pensamento, mas na própria forma do não-pensamento. Inversamente, existe não-pensamento que habita o pensamento e lhe dá uma potência específica. Esse não-pensamento não é só uma forma de ausência do pensamento, é a presença eficaz de seu oposto. (RANCIÈRE, 2009, p. 34)
Quando se crê que apenas o logos é capaz de fundar o verdadeiro pensamento, obviamente tudo aquilo que não traz a logomarca da racionalidade deve ser desprezado como não-pensamento. No entanto, também devemos reconhecer que o conjunto da humanidade e sua cultura sempre serão menores que o mundo que nos abriga, ultrapassa e determina. O alcance do logos é limitado não apenas em sua versão humana, como também pelo fato do homem auferir conhecimentos por outras vias.
Além de existirem outros conhecimentos (e, consequentemente, outros pensamentos) gerados a partir da atuação de diversas linguagens e sistemas simbólicos não-verbais, encontra-se disponível em nosso campo cognitivo todo conhecimento inefável derivado de percepções e experiências sensoriais que constituem vasta soma de conhecimentos eficientes acerca do mundo.
Quando a filosofia se vê como uma reflexão sobre o conhecimento humano, precisa deixar de se traduzir apenas e tão somente pelo verbo. O conhecimento humano tem várias faces, dentre elas aquelas que não se configuram por meio da gramática ou da matemática. Textos de linguagens, como a imagética, musical, cinestésica, dentre outras, permitem um imenso volume de informações capazes de gerar, transmitir e registrar conhecimentos vitais para a sociedade humana. Além disso, a memória afetiva e experimental produzida pela sensibilidade do indivíduo em contato com o mundo também é outro recurso cognitivo indispensável ao sucesso do humano em sua busca pelo conhecimento. A filosofia deveria impor-se o desafio de também pensar sem palavras, por meio de outros signos ou pela experiência de saborear o real. Fazendo isso, talvez a filosofia nos brindasse com novos conhecimentos, desenvolvendo pensamentos bem mais originais e criativos do que os surrados conceitos abstratos sobre tudo. Segundo Roberto MACHADO, quando Deleuze diz que o filósofo deve ser um criador e não apenas um reflexivo, faz uma crítica contra a caracterização da filosofia como um metadiscurso, uma metalinguagem. “Insurgindo-se contra essa tendência, ele reivindica para a filosofia a produção de conhecimento ou, mais propriamente, a criação de pensamento, como acontece com as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não”. (2009, pp. 12-13) O pensamento não é privilégio da filosofia: filósofos, cientistas, artistas, inovadores de quaisquer áreas são antes de tudo, pensadores.
A filosofia contemporânea já entendeu que a função do filósofo não é mais justificar o real ou transformar o mundo em pensamento, nem criar um novo homem. Agora é preciso inventar conceitos, tal como um artista inventa sua obra, de modo a dar ao homem variadas opções de imagem do real, algo novo com o que possamos vislumbrar outras facetas das coisas.
Abrir-se para outros vieses da cognição demanda evadir- se do logos, que se mimetiza em meio aos ordenamentos da gramática à maneira de um Minotauro no labirinto; esta é uma condição sem a qual não alcançaremos outras formas de pensamento que reclamam nossa mais aguda atenção. Mas a tradição filosófica que compõe a falange do logos ainda se encontra por aí, nas instituições, na linguagem e no senso comum, com a estratégia de contaminar todos os campos do saber com sua metafísica. A política do logos sempre foi impor um sentido final ao pensamento, embutindo-o em suas classificações abstratas, com o intuito de domesticar a confusão natural do mundo e purificar as ideias por meio de sua ascensão ao suprassensível e ao inteligível.
Ora, o mundo, que se torna presente sob as espécies do sensível, não se organiza sob a forma de um sentido (o que se dá a ver, a ouvir, a tocar) mas sob a forma de um complexo de sensações – o sensível. O que vem a nós, ocorre sob a forma da confusão (na terminologia de Baumgarten), sob a forma do sensível, que é na explicação de Mikel Dufrenne, ‘aquilo relativamente ao qual não há recuo, aquilo sobre o qual não podemos construir um ponto de vista’ (FERRY, 2003, p. 16).
A imagem movediça do real embaralha as velhas retinas dos sóbrios pensadores, que reafirmam sua rejeição ao mundo, meditando sobre suas essências universais como anteparos marmóreos, brancos e frios, a proteger suas múmias inteligíveis do turbilhão da realidade. Mas parece que a velha meditação já perdeu toda sua dignidade simbólica, “tornou-se ridículo o cerimonial e a atitude solene daquele que reflete; não se poderia mais suportar um sábio da velha escola. Pensamos muito rápido, e a caminho, em plena marcha, em meio a negócios de toda sorte, mesmo quando se trata das coisas mais graves...” (NIETZSCHE, 1976, p. 43).
A filosofia falocrática – com a pretensão universalista de abarcar toda a ciência humana, nunca houve qualquer campo do conhecimento em que a tradição filosófica não se fizesse presente, com a evidente exceção dos assuntos relativos à mulher. Uma das curiosidades mais espantosas que assombra o mundo da filosofia é o completo e suspeito silêncio acerca do pensamento feminino e da mulher como pensadora. Todos os filósofos centrais da história oficial do pensamento são homens e tratam os temas femininos exatamente como o senso comum e vulgar de sua época, sem empreender qualquer reflexão mais ampla sobre o pensamento da mulher ou sobre a mulher como objeto de reflexão.
É certo que grande parte desse desprezo para com o pensamento feminino tem fundo religioso, devido à incestuosa promiscuidade entre a filosofia ocidental e a teologia judaicocristã, desde o princípio desta era. “A maioria dos doutrinadores cristãos, dos chamados membros da patrística, migrou de algum movimento filosófico para o cristianismo”. (SPINELLI, 2009, p. 351) Com a rápida neoplatonização do pensamento cristão, observou-se desde muito cedo seus efeitos colaterais deletérios, dentre eles a reprovação incondicional do corpo humano, a condenação da mulher e o banimento do pensamento feminino.
Também é sabido que a tradição machista do pensamento cristão não é devida apenas a seu idealismo neoplatônico, ela também se encontra em quase toda a história cultural dos povos. Reza a lenda que Brahma criou a primeira mulher e lhe concedeu o nome de Sarasvati; ela lhe deu um filho por nome de Manu, que se tornou o pai da humanidade e grande legislador. Os livros oitavo e novo do Código de Manu legisla assim sobre a mulher:
Art. 420. Dia e noite as mulheres devem ser mantidas em um estado de dependência por seus protetores; e, mesmo quando elas têm demasiada inclinação pelos prazeres inocentes e legítimos, devem ser submetidas por aqueles de quem dependem à sua autoridade. Art. 421. Uma mulher está sob a guarda de seu pai durante a infância; sob a guarda de seu marido durante a juventude; sob a guarda de seus filhos na velhice; ela não deve jamais se conduzir à sua vontade. (VIEIRA, 2011, p. 89)
Ainda hoje, quando os judeus ortodoxos recitam suas preces matinais diárias, nunca se esquecem de agradecer a Javé: “abençoado seja Deus, Rei do universo que não nos fez mulher”. A graça que os judeus e muitos cristãos julgam ter recebido dos céus por terem nascido homens e escapado da má sorte de ser mulher, certamente tem a ver com o que diz o texto bíblico: “O pecado começa com a mulher e, graças a ela, todos nós devemos morrer”. (Eclesiastes 25:33).
Aristóteles, próximo à tradição de sua época, sustenta que a natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. Para este importante filósofo grego, a mulher é um espécime humano defeituoso e inferior. Seria o caso de se perguntar a Aristóteles porque a natureza erra tanto a ponto de criar uma humanidade com 50% de mulheres?
Paulo de Tarso recomenda em sua primeira carta a Timóteo (2:12) a seguinte orientação: “Pois não permito que a mulher ensine, nem que tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio”, assim como em sua primeira carta aos Coríntios (14:34/35): “conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina. [...] para a mulher é vergonhoso falar na igreja”. Tomás de Aquino, refletindo o pensamento de Aristóteles em sua Suma Teológica, questão 92, diz com todas as letras no artigo primeiro: “A mulher é defeituosa e bastarda, pois o princípio ativo da semente masculina tende a produzir homens gerados à sua perfeita semelhança. A geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio ativo...”.
No ocidente muito raramente o pensamento filosófico de uma mulher chegou a gozar de boa reputação entre os pensadores. Pelo contrário, até mesmo os grandes filósofos incensados pela historiografia oficial, fazendo coro com religiosos e hierarcas de todas as épocas, jamais desconfiaram que a mulher fosse um indivíduo pensante.
A mulher é declarada civilmente incapaz em qualquer idade: o marido é seu curador natural. [...] as mulheres não defendem pessoalmente seus direitos, nem exercem por si mesmas seus deveres cívicos-estatais, mas somente mediante um responsável, assim como tampouco convém a seu sexo ir à guerra, e essa menoridade legal no que se refere ao debate público a torna tanto mais poderosa no que se refere ao bem-estar doméstico: porque aqui entra o direito do mais fraco, que o sexo masculino, já por sua natureza, se sente convocado a defender. (KANT, 2006, p. 106)
O solteirão e celibatário Immanuel Kant ainda tentou um falso elogio à mulher concedendo a ela o duvidoso poder de reinar sobre o lar, tal e qual o senso comum de todas as épocas. Hegel, por seu turno, no livro Princípios da filosofia do direito (1821) declara que a diferença entre homens e mulheres é a mesma que se dá entre um animal e uma planta, sendo que o temperamento animal é masculino e da planta, feminino. Segundo este filósofo de Stuttgard, o pensamento da mulher é indeterminado pela sensibilidade e se torna um perigo quando decide segundo suas inclinações emocionais, ao contrário do homem que age segundo a universalidade exigida pelo governo do Estado.
E o mais interessante a se registrar é que o mesmo NIETZSCHE que rompe com toda a filosofia socrática, desmonta toda a tradição metafísica platônica e dá início à mais radical de todas as revisões epistemológicas da filosofia ocidental, não consegue ultrapassar o mais venal senso comum acerca do mundo feminino. Segundo o criador de Zaratustra, a mulher “aprende a odiar à medida que desaprende a fascinar. [...] Onde não está em jogo nem o amor nem o ódio, as mulheres são medíocres artistas”. (1977, pp.90/94). Este pensador também acredita que o pensamento é incompatível com a maternidade, e quando uma “mulher tem veleidades literárias, eis um índice de qualquer afecção da sensualidade. A esterilidade predispõe a uma certa virilidade do gosto...” (NIETZSCHE, 1977, p. 99).
Adversários em pensamento, Kant e Nietzsche, ao menos em relação a um assunto coincidem perfeitamente: a inferioridade da mulher. Vejamos suas vidas pessoais; eles não se casaram e, ao que parece, tudo o que aprenderam a respeito da mulher foi com suas mães, com seus livros e as tradições de seu tempo (!). O primeiro viveu casto pelos seus oitenta anos de vida; Nietzsche chegou a pedir a mão de Lou Andrea Salomè em casamento, que ao recusá-lo parece ter-lhe acentuado a misoginia. Ambos não mantiveram qualquer relação madura com uma mulher sexualmente ativa, mas só conviveram com estereótipos femininos.
Os filósofos parecem nunca ter sido realmente amigos da mulher. Com exceção de alguns sofistas e epicuristas que chegaram a compreender a especificidade do pensamento feminino, os pensadores da antiguidade clássica, helenística, romana, medieval, renascentista e moderna apenas refletiram a cultura de seu tempo, quando a mulher não tinha posição de grande destaque na sociedade.
É óbvio que, desde sempre, a mulher produziu pensamento de qualidade em todas as áreas do conhecimento, mas isso foi constantemente negligenciado, ignorado ou menosprezado pelo pensamento oficial. Quando o cristianismo se aliou ao poder imperial romano no quarto século desta era a reflexão passou a ser privilégio único dos padres da Igreja e nem é preciso comentar – o mínimo espaço devido à mulher no estertor do mundo greco-latino desaparece completamente da ordem do pensamento cristão. Com o fim do medievo a situação não melhorou para a mulher, pois a modernidade cartesiana jamais compreendeu a contribuição feminina ao embate dialético entre razão e sensibilidade humanas.
Por volta do século XVII, quando os cientistas desenvolveram os primeiros microscópios, uma de suas mais vivas preocupações foi saber o que poderia conter o esperma masculino. O que o primitivo aparelho permitiu vislumbrar, obviamente por meio de uma imagem muito pouco nítida, não impediu que os observadores confirmassem o antigo preconceito patriarcal ao “enxergarem” na parte bulbosa do espermatozoide humano um homúnculo em posição fetal. O entendimento geral à época era de que o espermatozoide continha um protótipo completo de ser humano, semelhante a uma semente que contém a árvore, enquanto o útero fazia o papel mais humilde e inerte de um vaso que apoia o crescimento de uma planta, reafirmando a inferioridade da mulher. Somente nos anos 1950, quando as pesquisas relativas ao DNA comprovaram evidentemente a separação e a combinação dos genes na reprodução sexuada, a contribuição genética da mulher ao feto deixou de ser uma hipótese, para se tornar uma realidade incômoda para tradicionalistas, que ainda veem a mulher como responsável pelo traço demoníaco da humanidade.
Apenas com as feministas, no último quarto do século XX, a contragosto dos pensadores masculinos, a mulher começa a imiscuir-se no mundo machista da reflexão filosófica. Ainda hoje, contudo, a ciência e a filosofia ocidentais formam uma escolástica completamente falocrática. Prova disso é o fato de que até o ano de 2016, as mulheres respondem por menos de 5% dos agraciados com o Prêmio Nobel. Em mais de cem anos, apenas duas mulheres receberam o Prêmio Nobel de Física. Quando a filosofia se entende como teoria do conhecimento, se dá o direito de dizer o que é o conhecimento humano, enquanto o olhar falocêntrico do filósofo qualifica o saber. A mulher e a estética – uma das mais distintas evidências de que o pensamento do macho humano não tem condições de alcançar a tão propalada universalidade que sonha para seus conceitos, reside no fato de que sua filosofia não consegue compreender o campo da estética nos termos de sua racionalidade. A mesma incapacidade que o pensamento falocêntrico tem de entender a estética sem conceituá-la, curiosamente se repete na ideia que o filósofo masculino faz acerca da mulher como fenômeno do mundo. Não é de estanhar que o mesmo preconceito filosófico que ainda perdura sobre a estética como forma de conhecimento, também se estende ao mundo feminino como produtor de pensamento original.
Em primeiro lugar, o homem se recusa a lidar com a peculiaridade da razão feminina e trata a mulher como uma coisa entre outras, tornando-a em um objeto que não dispõe de suficiente racionalidade. Oblitera seu pensamento sensível e denuncia a incompatibilidade de sua intuição com a virilidade dos conceitos filosóficos. Ao desterrar a mulher para os confins inferiores da paixão e da sensibilidade, o homem nega a importância de seu viés cognitivo, que o universo feminino desenvolve por meio de um pensamento experimental e estético.
O filósofo talvez seja o mais machista entre homens. Praticamente estéril, como disse Nietzsche, a subjetividade do filósofo é um deserto; seu ego é a-tômico (de onde vem a crença masculina no uno, unidade, univocidade e não-contradição); não tendo como se dividir psiquicamente, nem sequer consegue compartilhar de si com os outros – talvez por isso a “cabeça” masculina seja tão clara e distinta –, um vazio em busca de sentido, que lhe empresta a excepcional facilidade para abstrair. Por ser menos complexa, a mente masculina não experimenta conflitos identitários de imagem, o que lhe permite maravilhar-se com a univocidade de seu raciocínio – o homem se sente sempre aquilo que ele pensa que é! Em função de sua cognição de ângulos retos e contornos exatos, não há outro papel social que se lhe imponha, senão, o de ser homem.
Ao temer a natural ambiguidade de sua psiché, dividida entre atitudes lógicas e estéticas, o homem experimenta uma grande angústia. Por esse motivo, sempre tenta fazer de sua personalidade um monobloco indivisível. Ao contrário, a mulher vive em si mesma com no mínimo duas subjetividades, por vezes até conflitantes: juntamente com seu próprio ego individual e singular, ela comporta outra subjetividade que lhe é posta pela biologia da espécie: a de ser agente do banco genético da humanidade – o meio de reprodução da espécie.
Esta segunda subjetividade, que compõe a psiché feminina, faz da mulher a casa do conflito existencial, emocional e psicológico, que lhe permite conceber o pensamento por perspectivas nunca alcançadas pelo raciocínio monológico do macho. Por isso, a mulher tem mais facilidade para desenvolver pensamentos híbridos acerca de si e do outro. Diferentemente da mentalidade masculina, que só produz discursos solipsistas provenientes de sua individualidade monotípica, o pensamento feminino é aquele que consegue fazer a relação entre a subjetividade egoística e a objetividade social, gerando um pensamento capaz de ponderar mais eficientemente os pesos da personalidade e da sociedade, na conta do conhecimento humano.
Vendo-se como indivíduo e, ao mesmo tempo, como máquina biológica de interesse público, a mulher transita entre a consciência e o inconsciente (ipseidade) com muito mais facilidade, a ponto de ter um entendimento mais íntimo da fusão cognitiva entre sujeito e objeto, entre inteligível e sensível, entre lógica e estética. Mas, contabilizada pela tradição tão somente como serviçal da espécie, a mulher é constrangida e pilhada de seus plenos direitos à individualidade, devido ao compromisso a ela imposto pela sociedade, de ser a garantia e a promessa de sobrevivência do grupo.
Em variados graus, cada sociedade concede à mulher apenas uma pseudoindividualidade que limita sua completa autarquia pessoal, enquanto reafirma sua imagem social na forma de um maquinário biológico de uso geral, sob a administração do patriarcado, do clã, da religião e do Estado. Esse controle arbitrário e alienador se impõe mais exatamente às funções biológicas vinculadas à reprodução. Mas, como a mulher não pode se desvincular de seus próprios órgãos, a tradição se encarrega de arbitrar sobre sua vida, uma vez que provém de seu corpo a garantia do futuro da comunidade. Por isso mesmo é comum em todas as culturas as mais diversas formas de obstrução (e até mesmo de negação) dos direitos individuais da mulher, na medida em que seu corpo é tomado como responsabilidade política de toda a coletividade.
Não é à toa a enorme resistência que a tradição impõe contra leis que reservam à mulher o direito exclusivo sobre a gestação. O fato de que somente as mulheres possuem úteros faz com que toda tradição, de qualquer cultura humana, nutra algum tipo de temor, desconfiança e até mesmo ódio do sexo feminino, cobrindo-o com maldições, desprezo, condenações, que são abundantes nas narrativas dos livros religiosos, filosóficos e tradicionais. Tudo isso, porque a história e, até mesmo a glória de todo homem, deve passar obrigatoriamente por entre as pernas da mulher.
Diferentemente do macho humano, cuja individualidade lhe confere um senso de unidade física, psicológica e cognitiva, a mulher luta desde sempre para apropriar-se de seu próprio corpo que, por diversas formas, lhe é alienado e colocado a serviço da descendência. Entender-se como uma pessoa esgarçada, com a psicologia dividida entre ser um indivíduo de plenos direitos e ser um objeto impessoal, destinado à revelia para o benefício da espécie, produz uma fissura psicológica na mulher, da qual o sexo masculino não tem a menor noção. Essa subjetividade bifurcada, de caráter diabólico, que habita cada ser humano do sexo feminino, torna sua psiché muito mais complexa, multiforme, sofisticada e indefinida, em relação ao monopsiquismo masculino.
Certamente, é por isso que a reflexão filosófica masculina sempre qualificou o pensamento da mulher como dispersivo e incapaz de alcançar a ideia de unidade na multiplicidade, nem tão pouco de entender a abstração da multiplicidade em favor da univocidade da essência universal. – blábláblá! – A estéril tagarelice intelectual dos machos pensadores.
Os meandros labirínticos do pensamento polissêmico da mulher sempre serão obscuros e confusos para a cultura falocrática da filosofia. A mulher, por ter as mesmas condições cognitivas dos homens está apta a elucubrar conceitos com a mesma desenvoltura de qualquer pensador masculino. Mas, ela dispõe de mecanismos psíquicos mais afeitos a conjugar a racionalidade dos silogismos abstratos com a sensualidade dos afetos concretos que se comunicam por meio dos corpos vivos.
Forçada a encarar a materialidade dos corpos humanos que emergem de seu próprio corpo, a mente feminina sempre foi capaz de desconfiar das melindrosas especulações abstracionistas que têm grande valor para o pensador masculino; o pensamento feminino, ao contrário, é um mar atormentado por conflitos inteligíveis e derivas estéticas, acerca dos quais o macho humano é incompetente para perceber, criticar ou sequer refletir filosoficamente.
O pensamento feminino é mais bem adaptado para elaborar o conhecimento em fluxo, porque conecta-se mais facilmente com a carne semovente do mundo, ao mesmo tempo em que compreende conceitualmente esse devir em uma linguagem híbrida, que só recentemente a tecnologia da informação vem tornando possível.
Como pode, então, o pensador tradicional imaginar-se criador de conceitos universais se nem sequer vislumbra o modo de pensar experimentado pela outra metade da humanidade - a mulher?
Como o olhar feminino em direção ao mundo pouco foi levado em conta até hoje, o pensamento filosófico ignora ao menos outra importante forma de inferir conhecimentos acerca do real. Enquanto for majoritariamente masculino, o conhecimento filosófico não pode ser universal.
A primeira grande diversidade irredutível a conceitos e impenetrável ao pensador masculino é a mulher. O feminino é o diverso que mais incomoda o pensador masculino, porque a sensibilidade feminina não pode ser convertida a uma identificação genérica pelos conceitos.
Obviamente, a tradição masculina do pensamento sempre temeu e condenou aquilo que não podia conter em ideias abstratas; sempre evitou abordar ou reconhecer o que não podia ser generalizado, classificado, compreendido e definido em qualidades essenciais de um conceito. A dor, o gozo, a alegria e a angústia da existência humana são arenas nas quais a razão masculina falha, enquanto aponta tais manifestações como demasiado humanas, refugos sensoriais que não merecem a atenção da ilustração – seriam os campos da obscuridade e da confusão afetivas próprios do mundo feminino.
O que a tradição filosófica masculina entende como reflexão só tem a ver com a virilidade sólida, rígida e objetiva do pensamento intelectual, que visa penetrar falicamente a substância das coisas, para fecundá-las com interpretações categóricas, fazendo germinar no útero da razão os conceitos de feições antropológicas, que se dão à luz para transcender o mundo e dominar a realidade.
O caminho da identidade escolhido pela reflexão masculina mesmifica, homogeneíza e aplaina das diferenças realmente existentes no mundo, tornando-se um olhar mortal sobre a vida. Desde sempre tem sido necessária a contribuição da forma feminina de pensar o real, de modo a complementar a cognição humana. Segundo Stephen PINKER, a “neurociência, genética, psicologia e etnografia estão documentando diferenças entre os sexos que quase certamente se originam da biologia humana”. (2004, p. 462) Mas, a desigualdade biológica entre os sexos não contradiz a realidade da extrema semelhança genética de nossa espécie, embora forneça uma rica oportunidade de colher dessa diversidade várias formas de ver o mundo. As diferenças entre os sexos masculino e feminino não devem ser apagadas, mitigadas ou hostilizadas, de modo a falsificar uma igualdade ideológica, mas explicitadas com o objetivo de ampliar toda experiência cultural da humanidade, para que o respeito à diversidade entre os sexos produza múltiplos olhares, capazes de ampliar os recursos cognitivos a disposição da humanidade.
Porque as pessoas têm tanto medo da idéia de que as mentes de homens e mulheres não são idênticas em todos os aspectos? [...] O medo, evidentemente, é que diferença implique desigualdade – de que se os sexos diferem em qualquer aspecto, os homens teriam de ser melhores, ou mais dominantes, ou ficar com toda a diversão. [...] [Mas] a seleção natural tende a um investimento igual dos dois sexos: números iguais, igual complexidade de corpos e cérebros, organizações igualmente eficientes para a sobrevivência. [...] Homens e mulheres possuem todos os mesmos genes, com exceção de um punhado no cromossomo Y, e seus cérebros são tão semelhantes que é preciso um neuroanatomista com olho de águia para encontrar as pequenas diferenças entre eles. (PINKER, 2004, pp. 464-465)
Até na baixa modernidade ainda pensávamos que o caminho da igualdade social, econômica, política e jurídica entre homem e mulher seria a única forma de resgatar o mundo feminino de seu lugar impróprio e garantir direitos até então vedados à mulher. Embora a legalização da cidadania feminina ainda seja uma luta importante e decisiva, neste princípio de século XXI tem se investido também no respeito às diferenças entre a mulher e o homem. É claro que sempre haverá identidade genética entre os sexos, que permite grande coincidência cognitiva entre homens e mulheres, porém, as qualidades que os diferem também são extremamente úteis para explorarmos outras dimensões do conhecimento humano.
As mentes de homens e mulheres não são idênticas. Estudos recentes sobre as diferenças entre os sexos convergiram para algumas características dignas de nota: os homens têm mais probabilidade de competir violentamente pelos seus interesses, mais habilidade em manipular mentalmente coisas tridimensionais; elas, por sua vez, são melhores em lembrar a posição espacial dos objetos, são melhores em fazer cálculos, mais sensíveis a sons e odores, tem melhor percepção de profundidade, mais fluência e memória para material verbal, fazem correspondência entre as formas mais depressa e são muito melhores na leitura de expressões faciais e da linguagem corporal. (PINKER, 2004, p. 467)
Duas dessas características diversificantes se provam promissoras: diversos estudos cognitivos têm atribuído à mulher grande facilidade em cálculo e mais fluência verbal, que parecem habilitá-las mais à ciência e à filosofia. Seria o caso de se imaginar o quanto as ciências e as filosofias tornar-se-iam mais ricas e desenvolvidas caso fossem desde sempre abertas à participação da mulher!
A conhecida e propalada propensão feminina para a linguagem nunca foi aproveitada pelas reflexões da linguística.
Até recentemente, as formas masculinas de comunicar a língua eram entendidas como normal, geral e universal.
Embora exista uma longa tradição de estudos das variações na língua dependentes da classe social e/ou da região do/a falante, poucas pesquisas foram realizadas sobre as variações que dependem do sexo, pelo menos até o começo da década de [19]80. Agora, no entanto, já é evidente que homens e mulheres não falam exatamente da mesma maneira. (COULTHARD, 2001, p. 8)
A linguagem verbal não fundamenta todos os tipos de reflexão, nem comunica adequadamente todos os tipos de pensamento, mas principalmente aqueles da ordem do conceito.
Apesar de sua limitação, a linguagem conceitual (verbal) tem sido desde muito tempo o grande veículo de comunicação de conhecimentos socialmente decisivos, de modo que a destreza no conhecimento verbal é condição necessária ao exercício da convivência social. Não por acaso, a forma verbal masculina sempre foi considerada “natural” e universal. Vista como objeto, a mulher nunca foi sujeito para a gramática.
Como criação de homens, a gramática verbal em seu âmbito lexical e sintático reflete a forma masculina de significar o mundo. No Gênesis, não foi Eva a quem o criador chamou para nominar os animais e plantas, mas Adão. Formador de conceitos e árbitro do significado das palavras, o homem transformou os discursos religiosos, filosóficos, científicos, políticos e artísticos em cosmovisões masculinas do mundo.
No âmbito gramatical, a linguagem construída por homens também caracteriza fortemente o pensamento conceitual, especialmente quando o masculino é considerado linguisticamente “não marcado”, isto é, geral e genérico, dando ao âmbito feminino dos termos um caráter particular e específico.
Para a linguagem da tradição filosófica apenas o gênero masculino tem condições de inferir os universais. Portanto, quando se quer fazer referência a uma lei universal, a palavra ou o discurso ganha um caráter masculino. Basta ver os termos que definem a própria humanidade: Homem, mankind, Mensh, Homo sapiens.
Chega a ser curiosa a atenção dada por filósofos às nuanças estilísticas entre filosofias de vários autores, épocas, países e até continentes, tal como os conceitos de “filosofia anglo-saxã”, “filosofia francesa” e a “filosofia alemã” ou “filosofia continental”. Porém, esses mesmos pensadores não conseguem perceber – ou dizem que não há – diferenças notáveis entre o pensamento filosófico feminino e o masculino, já que eles entendem a linguagem conceitual como uma universalidade que se sobrepõe à manifestação específica dos sexos. Mas é evidente que homens não pensam como mulheres!
O pensamento tradicional alimenta a imagem, segundo a qual todo filósofo é um desinteressado observador, assexuado, incorpóreo e racional, insistindo na falácia epistemológica da neutralidade de gênero. Em vista dessa ingênua crença, os homens filósofos pensam que a reflexão crítica que eles produzem não é influenciada por seus corpos físicos, permitindolhes serem observadores externos da cena humana e, por assim dizer, despidos de suas sexualidades no ato da reflexão – creem pensar não como machos da espécie humana, mas como mentes universais abstratas.
O chauvinismo filosófico deplora a capacidade do pensamento feminino em promover um convívio frutífero entre a razão e a sensibilidade, já que para a tradição do pensamento essa mistura, qualquer miscelânea ou miscigenação, é sempre perigosa e deletéria para a clareza e distinção dos conceitos. Assim, condenam a reflexão feminina, acusando a falsidade e a precariedade de seu ecletismo ou, pior dos pecados, denunciando o viés emocional de suas ponderações.
O idealismo da tradição sempre será misógino. Abstrações são incompatíveis com a cornucópia biológica da realidade do mundo. Atualmente, no entanto, tornou-se urgente denunciar a falsa superioridade do pensamento masculino. Ao contrário, o pensamento feminino se revela muito mais rico do que o masculino, devido ao fato de a mulher tanto alcançar quaisquer níveis de raciocínio lógico desenvolvido pelo homem, como também, muitas vezes ao mesmo tempo, exceder as capacidades masculinas ao obter conhecimentos eficientes a partir da sensibilidade e da percepção educadas pela experiência da vida feminina.
Bem ao contrário do mundo das ideias perfeitas, sonhado e cultivado por homens pensadores que julgaram domesticar o real pela força mesmificadora do conceito, o pensamento feminino sempre atribuiu à carne de seu corpo o fundamento de qualquer forma de conhecimento humanamente factível. A mulher sempre soube que de suas entranhas provém a encarnação do homem, que por sua vez não pode pensar sem a carne que o constitui – a mesma carne que a mulher alimenta em seu ventre, cresce e se desenvolve em meio à violenta fluidez do real. Por saber sentir mais do que o homem a dor dessa concepção mortal, a mulher conhece a diabólica natureza insensata do devir e sempre soube mais que o homem acerca da completa falta de sentido em que o real existe no eterno conflito.
Todo vir a ser se faz da guerra entre os opostos: as qualidades definidas, que a nós parecem persistentes, expressam apenas a preponderância momentânea de um dos combatentes, mas a guerra não termina com isso; a contenda continua pela eternidade. Tudo ocorre conforme a luta, e é ela mesma que explicita a justiça eterna. (NIETZSCHE, 2013, p. 28)
Pelo fato de sua natureza biológica lhe permitir gerar uma vida geneticamente diversa de seu próprio corpo, faz da mulher um campo de batalha entre corpos que se atraem e se misturam para, em seguida, se distanciarem e se estranharem. Essa natureza diametral e diabólica faz do pensamento feminino uma cognição estética. Desde sempre, a psiché feminina acostumou-se à inescrutável criação da vida e do efêmero. A mulher, portanto, possui a única subjetividade fendida, capaz de enxergar esteticamente tanto os conceitos abstratos da razão, quanto o fenômeno sensível de um mundo, cuja inferência só é possível a quem experimenta a paixão de um afeto que atinge sua carne cognoscente. A mulher pensa na encruzilhada diabólica entre a lógica e a estética.
Se a filosofia não se renovar agora, para recepcionar o pensamento não-verbal, feminino e estético, ampliando seu modo de entender o mundo, a reflexão filosófica será definitivamente superada pela explicação tecnocientífica dos fenômenos, que vem se tornando bem mais eficiente ao justificar a dinâmica dos novos processos de apresentação e representação do real, na cultura contemporânea.

(Marcos H. Camargo - Formas diabólicas: ensaios sobre cognição estética)
As mulheres na Filosofia

 
 

publicado às 23:39



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2017
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2016
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2015
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2014
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2013
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2012
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2011
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2010
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2009
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2008
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2007
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D