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Ele e ela

por Thynus, em 01.02.16
Diferentes sociedades adotam diferentes tipos de hierarquias imaginadas. A raça é muito importante para os norte-americanos modernos, mas era relativamente insignificante para os muçulmanos medievais. A casta era uma questão de vida e morte na Índia medieval, ao passo que na Europa moderna é algo que praticamente inexiste. Uma hierarquia específica, no entanto, foi de extrema importância em todas as sociedades humanas conhecidas: a hierarquia do gênero. Todos os povos se dividiram entre homens e mulheres. E em quase todos os lugares os homens foram privilegiados, pelo menos desde a Revolução Agrícola.
Alguns dos textos chineses mais antigos são ossos oraculares que datam de 1200 a.C., utilizados para adivinhar o futuro. Em um deles estava entalhada a pergunta: “A gestação da sra. Hao será afortunada?”. Para a qual foi escrita a resposta: “Se a criança nascer em um dia ding, será afortunada; se nascer em um dia geng, terá um futuro promissor”. No entanto, a sra. Hao daria à luz em uma dia jiayin. O texto termina com a impertinente observação: “Três semanas e um dia depois, em um dia jiayin, nasceu a criança. Não foi afortunada. Era uma menina”.(Houston, First Writing, 196) Mais de 3 mil anos depois, quando a China comunista decretou a política do “filho único”, muitas famílias chinesas continuavam considerando o nascimento de uma menina uma desgraça. Os pais muitas vezes abandonavam ou matavam meninas recém-nascidas para ter mais uma chance de ter um menino.
Em muitas sociedades, as mulheres eram mera propriedade dos homens, principalmente do pai, marido ou irmão. O estupro, em muitos sistemas jurídicos, era tratado como violação de propriedade – em outras palavras, a vítima não era a mulher estuprada, mas o homem a quem ela pertencia. Nesse caso, a sentença era a transferência de propriedade – o estuprador era obrigado a pagar o valor de uma noiva ao pai ou ao irmão da mulher, e a partir de então ela se tornava propriedade do estuprador. A Bíblia diz que “Se um homem se encontrar com uma moça sem compromisso de casamento e a violentar, e eles forem descobertos, ele pagará ao pai da moça cinquenta peças de prata. Terá que casar-se com a moça” (Deuteronômio, 22:28-29). Os antigos hebreus consideravam esse acordo razoável.
Estuprar uma mulher que não pertencia a nenhum homem não era considerado crime algum, assim como pegar uma moeda perdida em uma rua movimentada não é considerado roubo. E se um marido estuprava a própria mulher, ele não cometia nenhum crime. Na verdade, a ideia de que um marido pudesse estuprar a esposa era um oximoro. Ser marido era ter controle absoluto da sexualidade da esposa. Dizer que um marido “estuprou” a própria esposa era tão ilógico quanto dizer que um homem roubou a própria carteira. Tal pensamento não se limitava ao antigo Oriente Médio. Em 2006, ainda havia 53 países em que um marido não podia ser processado por estuprar a esposa. Até mesmo na Alemanha, as leis de estupro foram modificadas apenas em 1997, criando-se uma categoria jurídica para o estupro conjugal.(Secretário-geral da ONU, Report of the Secretary-General on the In-depth Study on All Forms of Violence Against Women,apresentado à Assembleia Geral da ONU, Doc. A/16/122/Add.1 (6 jul. 2006), 89)
A divisão entre homens e mulheres é produto da imaginação, como o sistema de castas na Índia ou o sistema racial nos Estados Unidos, ou é uma divisão natural com raízes biológicas mais profundas? E, se houver, de fato, uma divisão natural, existem também explicações biológicas para a primazia dos homens sobre as mulheres?
Algumas das disparidades culturais, jurídicas e políticas entre homens e mulheres refletem as diferenças biológicas óbvias entre os sexos. Gerar uma criança sempre foi trabalho das mulheres, porque os homens não têm útero. Ainda assim, sobre essa verdade universal, todas as sociedades acumularam diversas camadas de ideias e normas culturais que pouco têm a ver com biologia. As sociedades associam masculinidade e feminilidade com uma série de atributos que, em sua maioria, não têm base biológica.
Por exemplo, na Atenas democrática do século V a.C., um indivíduo provido de um útero não tinha status jurídico independente e era proibido de participar de assembleias populares ou ser juiz. Com poucas exceções, tal indivíduo não podia se beneficiar de uma boa educação nem se envolver em negócios ou discursos filosóficos. Nenhum dos líderes políticos de Atenas, nenhum de seus grandes filósofos, oradores, artistas ou mercadores tinha útero. O fato de ter útero faz com que uma pessoa seja biologicamente inadequada para essas profissões? Os atenienses da Antiguidade acreditavam que sim. Os atenienses dos dias de hoje discordam. Na Atenas atual, as mulheres votam, são eleitas para cargos públicos, fazem discursos, projetam de tudo, de joias a edifícios e softwares, e frequentam universidades. O útero não as impede de fazer nenhuma dessas coisas com o mesmo sucesso que os homens. É verdade que ainda são pouco representadas na política e nos negócios – apenas cerca de 12% dos membros do parlamento grego são mulheres. Mas não existe nenhuma barreira jurídica à sua participação na política, e grande parte dos gregos dos dias de hoje considera perfeitamente normal que uma mulher ocupe um cargo público.
Muitos gregos da atualidade também pensam que uma parte integral de ser homem é se sentir sexualmente atraído apenas por mulheres e ter relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto. Eles não enxergam isso como um preconceito cultural, mas sim como uma realidade biológica – relações entre duas pessoas do sexo oposto são algo natural, e entre duas pessoas do mesmo sexo, não. Na realidade, a Mãe Natureza não se importa se os homens se sentem sexualmente atraídos uns pelos outros. Apenas mães humanas inseridas em determinadas culturas fazem escândalo ao saber que seu filho tem um caso com o vizinho. A explosão de raiva da mãe não tem base biológica. Um número significativo de culturas humanas vê as relações homossexuais como algo não apenas legítimo como até mesmo socialmente construtivo, sendo a Grécia antiga o exemplo mais notável. A Ilíada não menciona que Tétis tivesse qualquer objeção às relações entre seu filho Aquiles e Pátroclo. A rainha Olímpia, da Macedônia, foi uma das mulheres mais temperamentais e poderosas da Antiguidade e até mesmo mandou matar seu próprio marido, o rei Felipe. Mas ela não teve um ataque quando seu filho, Alexandre, o Grande, levou seu amante, Heféstion, para jantar em casa. Como podemos diferenciar aquilo que é biologicamente determinado daquilo que as pessoas apenas tentam justificar por meio de mitos biológicos? Um bom princípio básico é “a biologia permite, a cultura proíbe”. A biologia está disposta a tolerar um leque muito amplo de possibilidades. É a cultura que obriga as pessoas a concretizar algumas possibilidades e proíbe outras. A biologia permite que as mulheres tenham filhos – algumas culturas obrigam as mulheres a concretizar essa possibilidade. A biologia permite que homens pratiquem sexo uns com os outros – algumas culturas os proíbem de concretizar essa possibilidade.
A cultura tende a argumentar que proíbe apenas o que não é natural. Mas, de uma perspectiva biológica, não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível é, por definição, também natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que vá contra as leis da natureza, simplesmente não teria como existir e, portanto, não necessitaria de proibição. Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros.
Na verdade, nossos conceitos de “natural” e “não natural” não são tirados da biologia, mas da teologia cristã. O sentido teológico de “natural” é “de acordo com as intenções de Deus, que criou a natureza”. Os teólogos cristãos afirmam que Deus criou o corpo humano com a intenção de que cada membro e órgão servisse a um propósito em particular. Se usamos nossos membros e órgãos para o propósito previsto por Deus, trata-se de uma atividade natural. Usá-los de maneira diferente da intenção de Deus não é natural. Mas a evolução não tem propósito. Os órgãos não evoluíram com um propósito, e o modo como são usados está em constante mudança. Não existe um único órgão no corpo humano que execute apenas o trabalho que seu protótipo executava quando apareceu pela primeira vez, há centenas de milhões de anos. Os órgãos evoluem para executar uma função específica, mas, depois que existem, podem ser adaptados para outros usos também. A boca, por exemplo, surgiu porque os primeiros organismos multicelulares precisavam de uma forma de levar nutrientes para o corpo. Ainda usamos a boca para isso, mas também a usamos para beijar, falar e, se formos o Rambo, para puxar o pino de nossas granadas de mão. Algum desses usos não é natural simplesmente porque nossos ancestrais vermiformes não faziam essas coisas com a boca há 600 milhões de anos?
Da mesma forma, as asas não apareceram de repente com toda a sua maravilhosa aerodinâmica. Elas se desenvolveram a partir de órgãos que serviam a outro propósito. De acordo com uma teoria, as asas dos insetos evoluíram há milhões de anos a partir de protuberâncias no corpo de insetos não voadores. Insetos com calombos tinham uma área de superfície maior do que aqueles sem calombos, e isso permitiu que absorvessem mais luz do sol e, assim, ficassem mais aquecidos. Em um lento processo evolutivo, esses aquecedores solares ficaram maiores. A mesma estrutura que era boa para a máxima absorção da luz do sol – muita área de superfície, pouco peso – também, por coincidência, dava aos insetos um certo impulso quando saltavam e pulavam. Aqueles com protuberâncias maiores podiam saltar e pular mais longe. Alguns insetos começaram a usá-las para planar, e daí bastou um pequeno passo para chegar às asas capazes de realmente propulsar o inseto no ar. Da próxima vez em que um mosquito zumbir em seu ouvido, acuse-o de comportamento não natural. Se ele fosse bem-comportado e estivesse satisfeito com o que Deus lhe deu, usaria suas asas apenas como painéis solares.
O mesmo conceito de multitarefas se aplica a nossos órgãos e comportamentos sexuais. O sexo evoluiu, a princípio, para procriação e rituais de galanteio, como uma forma de avaliar a adequação de um possível parceiro. Mas muitos animais atualmente fazem uso delas para uma série de propósitos sociais que pouco tem a ver com a criação de pequenas cópias de si mesmos. Os chimpanzés, por exemplo, utilizam o sexo para firmar alianças políticas, criar intimidade e neutralizar tensões. Isso é antinatural?

(Yuval Noah Harari - Sapiens, uma breve história da humanidade)

publicado às 18:14


1 comentário

De Inês a 01.02.2016

Um bocadinho de história é sempre bom!

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