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Críticas à Filosofia Escolástica no Leviatã
 
Cícero faz uma honrosa menção de um dos Cássios, severo juiz dos romanos, por causa de um costume que tinha, nas causas criminais (quando o depoimento das testemunhas não era suficiente), de perguntar aos acusadores Cui bono, isto é, que lucro, honra ou outro proveito o acusado obtinha ou esperava pelo fato. Pois entre as conjeturas não há nenhuma que mostre com tanta evidência o autor do que o beneficio da ação. Pela mesma regra pretendo neste lugar examinar quem pode ser que tenha durante tanto tempo dominado o povo nesta parte da cristandade com estas doutrinas contrárias às pacíficas sociedades humanas. Em primeiro lugar, ao seguinte erro, que a atual Igreja agora militante sobre a terra é o reino de Deus (isto é, o reino de glória, ou terra da promissão, não o reino da graça que é apenas uma promessa da terra), estão ligados os benefícios terrenos que se seguem; primeiro, que os pastores e professores da Igreja estão habilitados, como ministros públicos de Deus, ao direito de governar a Igreja e consequentemente (porque a Igreja e o Estado são a mesma pessoa) a serem reitores e governantes do Estado. Por este título é que o Papa prevaleceu sobre os súditos de todos os príncipes cristãos, levando-os a acreditar que desobedecer-lhe era desobedecer ao próprio Cristo, e em todos os diferendos entre ele e outros príncipes (fascinados com a expressão poder espiritual) a abandonar seus legítimos soberanos, o que com efeito é uma monarquia universal sobre toda a cristandade. Pois muito embora tenham primeiro sido investidos no direito de serem os supremos mestres da doutrina cristãs pelos imperadores cristãos, dentro dos limites do império romano (como é reconhecido por eles próprios) com o titulo de Pontifex Maximus, que era um funcionário sujeito ao Estado civil, contudo, depois que o império foi dividido, não foi difícil introduzir junto do povo já a eles sujeito, um outro título, a saber, o direito de São Pedro, não apenas para conservar intacto seu pretenso poder, mas também para ampliá-lo sobre as mesmas províncias cristãs, embora estas não estivessem mais unidas no império de Roma. Este beneficio de uma monarquia universal (considerando o desejo dos homens de terem uma autoridade) constitui uma conjetura suficiente de que os Papas que a ela pretenderam e que durante muito tempo a desfrutaram, eram os autores da doutrina pela qual foi obtida, a saber, que a Igreja agora sobre a terra é o reino de Cristo. Pois aceite isto, tem de se aceitar que Cristo tenha um representante entre nós para dizernos quais são suas ordens. Depois que certas Igrejas renunciaram a este poder universal do Papa, seria razoável esperar que os soberanos civis em todas aquelas Igrejas recuperariam dele tanto quanto era seu próprio direito (antes de o terem deixado ir, embora inadvertidamente) e estava em suas próprias mãos. E na Inglaterra isso aconteceu efetivamente, exceto que aqueles através dos quais os reis administravam o governo da religião, sustentando que seu cargo era de direito divino, pareceram usurpar, se não uma supremacia pelo menos uma independência do poder civil, e pareciam usurpá-lo ao mesmo tempo que reconheciam no rei o direito de despojá-los a seu bel-prazer do exercício de suas funções.
Mas naqueles lugares em que o presbitério assumiu aquele cargo, embora muitas outras doutrinas da Igreja de Roma estivessem proibidas de serem ensinadas, contudo esta doutrina, de que o reino de Cristo já chegou e começou com a ressurreição de nosso Salvador continuou ainda a ser sustentada. Mas cui bono?
Que vantagem esperavam dela? A mesma que os Papas esperavam: ter poder soberano sobre o povo. Pois o que é para os homens excomungar seu legítimo soberano, senão afastá-lo de todos os lugares do serviço público de Deus em seu próprio reino? E com força para lhe resistir, quando ele pela força tenta corrigilos?
Ou o que é, sem autoridade do soberano civil, excomungar uma pessoa senão retirar-lhe sua legítima liberdade, isto é, usurpar um poder ilegítimo sobre seus irmãos? Portanto, os autores destas trevas na religião são o clero romano e o clero presbiteriano.
Neste ponto refiro também todas aquelas doutrinas que lhes servem para manter a posse desta soberania espiritual, depois que foi alcançada. Em primeiro lugar, aquela de que o Papa na capacidade pública não pode errar. Pois quem é que, acreditando ser isto verdade, não lhe obedecerá prontamente em tudo aquilo que lhe aprouver ordenar?
Em segundo lugar, que todos os outros bispos, seja em que Estado for, não recebem seu direito nem imediatamente de Deus, nem mediatamente de seus soberanos civis, mas do Papa, é uma doutrina pela qual acabam existindo em todos os Estados cristãos muitos homens poderosos (pois assim o são os bispos) que são dependentes do Papa e que lhe devem obediência, embora ele seja um príncipe estrangeiro, por meio do que é
capaz de (como muitas vezes o fez) instigar uma guerra civil contra o Estado que não se submeter a ser governado segundo seu prazer e interesse.
Em terceiro lugar, a isenção destes e de todos os outros padres, e de todos os monges e frades, em relação ao poder das leis civis. Pois deste modo muitos súditos de todos os Estados usufruem o beneficio das leis e são protegidos pelo poder do Estado civil, sem contudo pagar nenhuma parte da despesa pública, nem estar sujeitos às penas devidas a seus crimes como os outros súditos, e consequentemente não receiam ninguém exceto o Papa e aderem apenas a ele para defender sua monarquia universal. Em quarto lugar, dar a seus padres (que no Novo Testamento nada mais são do que presbíteros, isto é, anciãos) o nome de sacerdote, isto é, sacrificadores, que era o título do soberano civil e dos seus ministros públicos entre os judeus quando Deus era seu rei. Também o fato de fazer da ceia do Senhor um sacrifico serviu para levar o povo a acreditar que o Papa tinha o mesmo poder sobre todos os cristãos que Moisés e Aarão tinham sobre os judeus, isto é, todo o poder, quer civil, quer eclesiástico, como então tinha o Sumo Sacerdote.
Em quinto lugar, o fato de ensinar que o matrimônio é um sacramento deu ao clero o juízo sobre a legitimidade dos casamentos, e portanto, sobre quais os filhos que são legítimos, e consequentemente sobre o direito de sucessão a reinos hereditários.
Em sexto lugar, a negação do casamento aos padres serviu para assegurar este poder do Papa sobre os reis. Pois se um rei for padre não pode casar e transmitir seu reino a sua posteridade; se não for padre, o Papa passa a pretender ter esta autoridade eclesiástica sobre ele e sobre seu povo. Em sétimo lugar, pela confissão auricular obtém, para a manutenção de seu poder, um melhor conhecimento dos desígnios dos príncipes e dos grandes personagens do Estado civil do que estes podem obter acerca dos desígnios do Estado eclesiástico.
Em oitavo lugar, pela canonização dos santos e pela declaração de quais são mártires, asseguram seu poder na medida em que induzem os homens simples a uma obstinação contra as leis e as ordens de seus soberanos civis até à própria morte, se pela excomunhão dos Papas eles forem declarados hereges ou inimigos da Igreja, isto é (de acordo com sua interpretação), inimigos do Papa. Em nono lugar, asseguram o mesmo pelo poder que atribuem a todos os padres de fazerem Cristo e pelo poder de ordenar a penitência, e de remir ou reter os pecados.
Em décimo lugar, pela doutrina do purgatório, da justificação pelos atos externos e das indulgências, o clero se enriquece.
Em undécimo lugar, por sua demonologia e pelo uso do exorcismo, e outras coisas com isso relacionadas, conservam (ou julgam conservar) mais o povo sob o domínio de seu poder. Finalmente, a metafísica, a ética e a política de Aristóteles, as distinções frívolas, os termos bárbaros, e a linguagem obscura dos escolásticos ensinada nas Universidades (que foram todas erigidas e regulamentadas pela autoridade papal) servem-lhes para evitar que estes erros sejam detectados e para levar os homens a confundirem o ignis fatuus da vã filosofia com a luz do Evangelho. Se estes exemplos não fossem suficientes, poder-se-iam acrescentar outras de suas obscuras doutrinas, cujas vantagens se revelam de forma evidente para o estabelecimento de um poder ilegítimo sobre os legítimos soberanos do povo cristão; ou para a manutenção do mesmo, quando está estabelecido; ou para os bens terrenos, a honra e a autoridade daqueles que o detêm. E portanto pela supracitada regra do cui bono podemos com razão considerar como autores de todas estas trevas espirituais o Papa e o clero romano, e também todos aqueles que tentam colocar no espírito dos homens esta doutrina errônea de que a Igreja agora sobre a terra é aquele Reino de Deus mencionado no Antigo e no Novo Testamento. Mas os imperadores e outros soberanos cristãos, sob cujo governo estes erros e as semelhantes usurpações dos eclesiásticos em seu cargo pela primeira vez surgiram para perturbação de suas possessões e da tranqüilidade de seus súditos, muito embora tenham suportado os mesmos por falta de previsão de suas seqüèlas e por falta de visão profunda dos desígnios de seus mestres, podem contudo ser considerados cúmplices de seu prejuízo próprio e público, pois, sem sua autoridade, desde o início nenhuma doutrina sediciosa teria podido ser pregada publicamente. Digo que podiam ter sido atalhados desde o início, mas, uma vez o povo possuído por esses homens espirituais, não havia nenhum remédio humano que pudesse ser aplicado, nenhum que algum homem fosse capaz de inventar. E quanto aos remédios que Deus devia providenciar, o qual nunca deixou a seu tempo de destruir todas as maquinações dos homens contra a verdade, temos de esperar sua boa vontade, a qual muitas vezes suportou que a prosperidade de seus inimigos, juntamente com sua ambição, chegasse a um ponto tal que sua violência abrisse os olhos que a precaução de seus predecessores tinha antes fechado, e fizesse dá homens abarcar demais para nada segurar, assim como a rede de Pedro rebentou dèvido à luta de uma quantidade demasiado grande de peixes, visto que a impaciência daqueles que lutam para resistir a tal usurpação antes de os olhos de seus súditos estarem abertos, apenas contribuiu para aumentar o poder a que resistiam. Não censuro portanto o Imperador Frederico por deter a agitação em relação a nosso compatriota Papa Adriano, pois tal era a disposição de seus súditos nessa ocasião que, se não o tivesse feito, provavelmente não teria sucedido no império. Mas censuro aqueles que no princípio, quando seu poder estava inteiro, suportaram que essas doutrinas fossem forjadas nas Universidades de seus próprios domínios e contiveram a agitação contra todos os sucessivos Papas, enquanto estes subiam sobre os tronos de todos os soberanos cristãos para os dominar e cáiìsar, quer eles, quer seus povos, a seu beiprazer. Mas assim como as invenções dos homens são tecidas, assim também são desfeitas; o processo é o mesmo, mas a ordem é inversa: a teia começa nos primeiros elementos de poder, que são a sabedoria, a humildade, a sinceridade, e outras virtudes dos apóstolos, a quem todos os povos convertidos obedeceram por reverência e não por obrigação. Suas consciências eram livres, e suas palavras e ações só estavam sujeitas ao poder civil. Mais tarde os presbíteros (à medida que os rebanhos de Cristo aumentavam), reunindo-se para discutirem o que deviam ensinar e portanto obrigando-se a nada ensinar contra os decretos de suas assembléias, fizeram crer que o povo estava por conseguinte obrigado a seguir sua doutrina, e quando ele se recusou a fazê-lo recusaram mantê-lo em sua companhia (a isso se chamou então excomunhão), não por serem infiéis, mas por serem desobedientes. E este foi o primeiro nó em sua liberdade. E aumentando o número de presbíteros, os presbíteros da principal cidade ou província assumiram uma autoridade sobre os presbíteros paroquiais e apropriaram-se do nome de bispos. E este foi um segundo nó na liberdade cristã. Finalmente o bispo de Roma, no que se refere à cidade imperial, assumiu uma autoridade (em parte pela vontade dos próprios imperadores e pelo título de Pontifex Maximus, e finalmente, quando os imperadores estavam enfraquecidos, pelos privilégios de São Pedro) sobre todos os outros bispos do império, o que constituiu o terceiro e último nó, e toda a síntese e construção do poder pontifical. Portanto, a análise ou resolução é pelo mesmo processo, mas começando com o laço que foi o último a ser atado, como podemos ver na dissolução do preterpolítico governo da Igreja na Inglaterra. Primeiro o poder dos Papas foi totalmente dissolvido pela Rainha Isabel e os bispos, que antes exerciam suas funções pelo direito do Papa, passaram depois a exercer o mesmo pelo direito da rainha e seus sucessores, muito embora, retendo a expressão jure divino, se pudesse pensar que eles o recebiam de Deus por direito imediato. E assim foi desatado o primeiro nó. Depois disto os presbiterianos obtiveram ultimamente na Inglaterra a queda do episcopado: e assim foi desamarrado o segundo nó. E quase ao mesmo tempo o poder foi também tirado aos presbiterianos, e deste modo estamos reduzidos à independência dos primitivos cristãos para seguirmos Paulo, ou Cefas ou Apoio, segundo o que cada homem preferir. 0 que, se ocorrer sem luta e sem avaliar a doutrina de Cristo por nossa afeição à pessoa de seu ministro (a falta que o apóstolo censurou aos coríntios), é talvez o melhor. Primeiro, porque não deve haver nenhum poder sobre as consciências dos homens, a não ser da própria palavra, produzindo fé em cada um, nem sempre de acordo com o objetivo daqueles que plantam e regam, mas do próprio Deus que dá a geração; e segundo, porque é desarrazoado naqueles que ensinam que existe tamanho perigo no mais pequeno erro, exigir de um homem dotado de razão própria que siga a razão de qualquer outro homem, ou da maioria de vezes de muitos outros homens, o que é
pouco melhor do que arriscar sua salvação jogando cara ou coroa. Nem deviam esses mestres ficar aborrecidos com esta perda de sua antiga autoridade, pois ninguém melhor do que eles devia saber que o poder é conservado pelas mesmas virtudes com que é adquirido, isto é, pela sabedoria, pela humildade, pela clareza de doutrina e sinceridade de linguagem, e não pela supressão das ciências naturais e da moralidade da razão natural, nem por uma linguagem obscura, nem arrogando-se mais conhecimento do que aquele que realmente possuem, nem por fraudes beatas, nem por essas outras faltas que nos pastores da Igreja de Deus não são apenas faltas, mas também escândalos, capazes de fazer que os homens mais cedo ou mais tarde tropecem na supressão de sua autoridade.
Mas depois que esta doutrina, que a Igreja agora militante é o reino de Deus referido no Antigo e no Novo Testamento, foi aceite no mundo, a ambição e a solicitação de cargos que lhe estão adstritos, e especialmente o grande cargo de ser o representante de Cristo, e a pompa daqueles que obtiveram assim os principais cargos públicos, tornou-se gradualmente tão evidente que perderam a reverência interior devida à
função pastoral, de tal modo que os homens mais sábios, entre aqueles que possuíam qualquer poder no Estado civil, só precisavam da autoridade de seus príncipes para lhes negarem obediência. Pois desde a época em que o bispo de Roma conseguiu ser reconhecido como bispo universal, pela pretensão de suceder a São Pedro, toda sua hierarquia, ou reino das trevas, pode ser comparado adequadamente ao reino das fadas, isto é, às fábulas contadas por velhas na Inglaterra referentes aos fantasmas e espíritos e às proezas que praticavam de noite. E se alguém atentar no original deste grande domínio eclesiástico verá facilmente que o Papado nada mais é do que o fantasma do defunto império romano, sentado de coroa na cabeça sobre o túmulo deste, pois assim surgiu de repente o Papado das ruínas do poder pagão.
Também a linguagem que eles usam, quer nas igrejas, quer nos atos públicos, sendo o latim, que não é comumente usado por qualquer nação hoje existente, o que é senão o fantasma da antiga figura romana?
As fadas, seja qual for a nação onde habitem, só têm um rei universal, que alguns de nossos poetas denominam rei Oberon, mas as Escrituras denominam Belzebu, príncipe dos demônios. Do mesmo modo os eclesiásticos, seja qual for o domínio em que se encontrem, só reconhecem um rei universal, o Papa. Os eclesiásticos são homens espirituais e padres fantasmagóricos. As fadas são espíritos e fantasmas. As fadas e os fantasmas habitam as trevas, as solidões e os túmulos. Os eclesiásticos caminham na obscuridade da doutrina, em mosteiros, igrejas e claustros.
Os eclesiásticos têm suas igrejas catedrais, as quais, seja qual for a vila onde são erguidas, por virtude da água benta e de certos encantos denominados exorcismos, possuem o poder de transformar essas vilas em cidades, isto é, em sedes do império. Também as fadas têm seus castelos encantados e alguns fantasmas gigantescos que dominam as regiões circunvizinhas.
As fadas não podem ser presas nem levadas a responder pelo mal que fazem. Do mesmo modo os eclesiásticos desaparecem dos tribunais da justiça civil.
Os eclesiásticos tiram dos jovens o uso da razão por meio de certos encantos compostos de metafísica e milagres e tradições e Escrituras deturpadas, pelo que estes ficam incapazes seja para o que for exceto para executarem aquilo que lhes for ordenado. Do mesmo modo as fadas, segundo se diz, tiram as crianças de seus berços e transformam-nas em loucos naturais, a que o vulgo chama duendes e que têm tendência para praticar o mal.
As velhas não especificaram em que oficina ou laboratório as fadas fabricam seus encantamentos, mas os laboratórios do clero são bem conhecidos como sendo as Universidades que receberam sua disciplina da autoridade pontifícia.
Quando alguém desagrada às fadas, diz-se que estas enviam seus duendes para beliscá-lo. Os eclesiásticos, quando algum Estado civil lhes desagrada, também mandam seus duendes, isto é, súditos supersticiosos e encantados para beliscarem seus príncipes, pregando a sedição, ou um príncipe encantado com promessas para beliscar outro.
As fadas não se casam, mas entre elas há incubi, que copulam com gente de carne e osso. Os padres também não se casam.
Os eclesiásticos tiram a nata da terra por meio de donativos de homens ignorantes que têm medo deles e por meio de dízimos; o mesmo acontece na fábula das fadas, segundo a qual elas entram nas leitarias e banqueteiam-se com a nata que retiram do leite.
A história também não conta que tipo de dinheiro corre no reino das fadas. Mas os eclesiásticos naquilo que recebem aceitam a mesma moeda que nós, muito embora, quando têm de fazer algum pagamento, o façam com canonizações, indulgências e missas.
A estas e outras semelhanças entre o Papado e o reino das fadas se pode acrescentar mais uma, que assim como as fadas só têm existência na fantasia de gente ignorante, que se alimenta das tradições contadas pelas velhas ou pelos antigos poetas, também o poder espiritual do Papa (fora dos limites de seu próprio domínio civil) consiste apenas no medo, em que se encontra o povo seduzido, de ser excomungado, por ouvir os falsos milagres, as falsas tradições e as falsas interpretações das Escrituras. Não foi portanto muito difícil expulsá-los, a Henrique VIII por seu exorcismo, e à Rainha Isabel pelo dela. Mas quem sabe se este espírito de Roma, que agora desapareceu e que, vagueando por missões através dos lugares desertos da China, do Japão e das índias, ainda produziu escassos frutos, não pode voltar, ou melhor, uma assembléia de espíritos ainda mais maléfica do que ele, para habitar esta casa asseada e limpa, tornando portanto o fim ainda pior do que o princípio? Pois não é só o clero romano que pretende que o Reino de Deus é deste mundo e que portanto ele tem um poder distinto do poder do Estado civil. E isto era tudo o que eu tinha a intenção de dizer no que se refere à doutrina da política. 0 que quando tiver sido por mim revisto apresentarei de boa vontade à censura de meu país. 
 
(Thomas Hobbes - Leviatã)

publicado às 01:17



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