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 O homem é co-autor da obra cósmica, da criação do Universo

 

Deus criou o homem à sua imagem;

à imagem de Deus Ele o criou;

e criou-os homem e mulher.

(Gn. 1, 27)

 

 

 

O motivo que levou o senso comum a continuar a pensar dentro da lógica hoje obsoleta é o de que, embora essas novas descobertas tenham se iniciado há décadas, a nossa cultura ainda não conseguiu absorvê-la filosoficamente. De forma instintiva e inconsciente, para se defender de uma realidade insuportável, continuou-se a pensar como antes. Por outro lado, sem a Física quântica seríamos incapazes de construir a maior parte dos engenhos que temos desenvolvido ultimamente, desde centrais nucleares a simples aparelhos de televisão. Esta é uma triste ironia; embora consigamos aproveitar tecnologicamente a nova teoria, negamos de forma cínica e irresponsável as suas conseqüências filosóficas.
De qualquer forma, não é minha intenção defender idéias que há muito não necessitam ser defendidas, e sim tentar lançar suspeitas sobre os muitos preconceitos quanto à concepção do Universo feita pelos antigos. No mais, interessa-nos aqui tentar penetrar na forma de pensamento destes últimos com o fito de compreendermos um pouco melhor a sua produção mítico-religiosa. Fora de qualquer dúvida, a idéia de que o Universo é composto de dois planos complementares entre si é fundamental para podermos penetrar no Universo mítico, razão pela qual resolvi começar por esse tema.
Os nomes desses dois mundos variam entre os diversos povos, mas a essência da concepção é a mesma. Na tradição zervanita dos persas, todas as coisas têm um duplo aspecto: o mênôk, invisível, e o gêtîk, captável pelos sentidos. Assim, fica provido o Universo de uma dupla face: a terra em que vivemos é mero reflexo de uma terra celestial; o mesmo ocorre com o mar, o céu ou a montanha; o sol que estamos acostumados a ver é simples manifestação de um outro sol, oculto "sob" o sol aparente. As cidades construídas pelos antigos constituíam-se em réplicas de cidades já existentes no plano celestial, da mesma forma que os templos, os palácios ou até uma simples residência materializavam algo previamente existente. Encontramos a mesma idéia entre os hebreus, egípcios, babilônios, hindus, e até mesmo entre os índios da América pré-colombiana. Na obra O Mito do Eterno Retorno, Mircea Eliade apresenta vários exemplos ilustrativos, dos quais extraí uma pequena amostra:
"Segundo as crenças dos mesopotâmios, o rio Tigre tem o seu modelo na estrela Anunit e o Eufrates na estrela da Andorinha. Um texto sumério refere o 'lugar das formas e dos deuses', onde se encontram 'os deuses dos rebanhos e dos cereais'. Também para os povos altaicos as montanhas têm um protótipo ideal no céu. Os nomes dos lugares e os nomes (antiga divisão administrativa do Egito) egípcios eram atribuídos de acordo com os 'campos celestes': primeiro conheciam-se os 'campos celestes', que depois eram identificados na geografia terrestre...
"Uma Jerusalém celeste foi criada por Deus antes da cidade de Jerusalém ter sido construída pela mão do homem: é a ela que o profeta se refere, no Apocalipse sírio de Baruch, II, 2, 2-7: 'Pensas que é essa a cidade da qual disse: Das palmas das minhas mãos te construí? A cidade em que viveis não é a que foi revelada em Mim, a que ficou pronta desde o momento em que me decidia criar o Paraíso e que mostrei a Adão o seu pecado...
"Encontramos esta mesma teoria na Índia: todas as cidades reais indianas, mesmo modernas, são construídas pelo modelo mítico da cidade celeste, onde habitava, na Idade do Ouro (in illo tempore), o Soberano Universal... É assim, por exemplo, que o palácio-fortaleza de Sihagiri, no Ceilão, é construído segundo o modelo da cidade celeste de Alakamanda, e é 'de um acesso difícil para os seres humanos' (Mahâvastu, 39, 2). A própria cidade ideal de Platão tem também um arquétipo celeste (Rep., 592 b; cf. ibid, 500 e). As 'formas' platônicas não são astrais; contudo, a sua região mítica situa-se em planos supraterrestres (Fedra, 247, 250).
"Portanto, o mundo que nos rodeia, no qual se sente a presença e a obra do homem - as montanhas que transpõe, as regiões povoadas e cultivadas, os rios navegáveis, as cidades, os santuários - têm um arquétipo extraterrestre, concebido quer como um 'plano', como uma 'forma', quer pura e simplesmente como uma 'réplica' que existe a um nível cósmico superior".(O Mito do Eterno Retorno, Ed. Mercuryo, p.20)
A tradição judaica também tem a sua contribuição a dar: lemos no Gênesis I que Deus separou a luz das trevas, assim como separa (distingue) "as águas que estão por cima do firmamento" das "águas que estão abaixo do firmamento", respectivamente chamadas de Mi e Ma. Anick de Souzenelle escreve:
"Simbolicamente, podemos dizer que o Mi é o mundo da unidade arquetípica não manifestada, e o Ma, o da multiplicidade manifestada nos seus diferentes níveis de realidade. A raiz Mi encontrará no grego a sua correspondência na raiz Mu (é o nome da letra M e pronuncia-se mi), que preside à formação das palavras ilustrando o mundo dos arquétipos, tais como muein (miein), 'fechar a boca', 'calar-se', e mueein (mieein), 'ser iniciado'. Toda iniciação é uma introdução ao caminho que liga o mundo manifestado ao mundo de seus arquétipos; ela é feita dos arquétipos. As palavras murmúrio, mudo, mistério derivam da mesma raiz.
"A raiz Ma é a raiz-mãe de todas as palavras que significam manifestação (tais como matéria, maternal, matriz, mão, etc.). Cada elemento do 'Ma' é a expiração do seu correspondente 'Mi'. Este repercute continuamente sobre aquele que carrega não apenas a sua imagem, mas sua potência. Nesse sentido, o 'Ma', em cada um de seus elementos, é símbolo do 'Mi'. O símbolo (Syn-bolein: 'lançar junto, unir') une o 'Ma' ao 'Mi'. O Dia-bolein ('lançar através, separar') separa os dois mundos
(O grego dia-bolein origina a palavra diabo, assim como o hebraico shatan (obstáculo) origina Satã. O Diabo é a divindade que "separa" o Mi do Ma, trazendo com isso a ilusão do mundo manifesto que aprisiona o homem. Mas esta é a conseqüência lógica do ato criador: a transformação de Satã em vilão é uma idéia posterior, proporcionado pelo dualismo maniqueísta presente na civilização ocidental), e deixa vagando ao léu o do 'Ma', privado da sua exata referência e da sua exata potência".(O Simbolismo do Corpo Humano - Ed.Pensamento, p.16/7)
Estas últimas palavras da autora nos dão ensejo para apontar algo essencial acerca da mentalidade dos antigos: visto que o mundo físico, o Ma, é mero reflexo do Mi e por isso ilusório, caberá ao homem restabelecer essa ligação perdida para que possa encontrar seu lugar no Universo. Tal proposta se alcança através da religião (do latim religare), que "religa" o homem à sua essência divina através da iniciação; o alicerce desse trabalho é o mito, que confere as chaves dos mistérios do mundo transcendental. O mito, dramatizado através do ritual, torna possível a religião, que por sua vez proporcionará o reencontro com a verdade primordial através da iniciação.
O homem, como ente pertencente ao Ma, tem como seu protótipo a própria divindade no plano do Mi. A iniciação, por conseguinte, visa identificar o homem a esse modelo divino, onde Homem e Deus serão uma só coisa, um único ser. Embora esta concepção nos lembre a cristã, na qual o homem é feito à imagem e semelhança de Deus, há uma diferença decisiva entre elas: o homem não é um pecador, um condenado desde o princípio que depende unicamente da misericórdia divina, e sim uma peça de vital importância no Universo, pois se constitui num verdadeiro co-participante da Criação. Os gregos chamavam essa classe de homens demiurgos, ou seja, pequenas divindades que participam da obra criadora; cada pessoa cumpriria sua parte nesse trabalho grandioso, pois as suas atividades constituíam-se em reproduções arquetípicas do gesto criador. O agricultor, quando semeava, imitava o Céu ao fecundar a Terra desde tempos imemoriais; o caçador, ao abater sua presa, repetia o deus que matava o monstro primordial, símbolo do Caos existente antes da Criação; o pedreiro, ao erguer um templo ou casa, reproduzia a criação da Terra, pelo divino construtor; o médico, ao curar seu paciente, não eliminava uma doença, mas sim restituía àquele doente a pureza inerente a todas as coisas criadas, uma vez que a doença é sinal de uma desarmonia do indivíduo com o Cosmo. Os alienados, por sua vez, eram os idiotés, que viam seu trabalho como mero meio de sobrevivência, com objetivos unicamente pessoais, sem conseguir captar o seu sentido maior. Dessa forma, acabavam tristemente alijados da grande obra cósmica, a criação do Universo.
Quanta diferença da visão judeu-cristã, que atribui ao homem uma condição de observador passivo e alienado da obra criadora, cabendo-lhe como única virtude a obediência a leis que sequer pode compreender! Uma das seqüelas deste pensamento vicioso consiste no darwinismo social, professado pelas sociedades ocidentais. Baseadas numa distorção da teoria evolucionista de Darwin, as pessoas são induzidas a crer que o mundo é uma gigantesca arena de gladiadores, ou uma selva hostil, na qual "somente os mais aptos sobrevivem". Nosso semelhante, conseqüentemente, é considerado um competidor a quem devemos derrotar, do que dependerá a nossa realização pessoal, gerando conceitos estapafúrdios como "vencedor", "perdedor", ou "chegar lá". Por outro lado, o status de "rei da criação" dá ao homem o direito de dispor do mundo que o cerca de forma perversa, passando da antiga posição de criador ao papel de mero predador da natureza.

 

A partir do que foi dito acima sobre o demiurgo, podemos perceber a pouca importância do tempo formal para os antigos. A idéia de um mundo criado em determinado dia, num passado distante, é uma idéia relativamente moderna. A concepção de um tempo linear, que corre num ritmo inexorável também é apanágio nosso. O plano do Mi, assim como o mundo do inconsciente, desconhece passado, presente e futuro; o tempo implica em nascimento e morte, transformação, evolução, degeneração, todos estes atributos exclusivos do Ma, ou seja, do ilusório mundo manifesto. Para o homem antigo, tudo o que é verdadeiro pertence ao Mi, e portanto não nasce, nem morre, nem poderá transformar-se. Daí depreendemos que, ao contrário da concepção atualmente difundida, Deus não criou o mundo em determinada data, e sim agora. É agora que Deus assenta as bases do Universo, por isso cabe ao homem, como um "pequeno deus", auxiliá-lo nessa tarefa, e assim se fundir com a divindade maior. Não se trata de que Deus precise de nós, mas de ser ou não ser participante desse processo, de estar ou não em harmonia com esse drama primordial, de representar ou não a divindade sobre a Terra. Tampouco convém discutir se o mundo seria ou não criado sem o nosso concurso - essa especulação consistiria em mais uma inutilidade pseudoracional, tal como discutir o sexo dos anjos; o iniciado, ao ocupar o lugar do demiurgo, renuncia à sua própria identidade, tornando-se a imagem de Deus refletida nos domínios do Ma.

(Antonio Farjani - A linguagem dos deuses)

publicado às 08:08



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