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Descartes e lobos gigantes

por Thynus, em 21.12.14
[Pois, se os animais] pensam como nós
pensamos, eles teriam uma alma imortal
como nós; tal é duvidoso, porque não existe
nenhuma razão para acreditar isso de alguns
animais sem que se acredite isso de todos, e
muitos deles são demasiado imperfeitos para
que tal seja credível, como as ostras, as esponjas
etc.
 
(René Descartes, Carta ao marquês de Newcastle,
in Descartes, Oeuvres et Lettres apud. Silva, MPT,
Uma introdução à teoria de Tom Regan e a estratégia
para a sua abordagem)

 

“Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais. Os animais, como os homens, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento.”
(Charles Darwin)

 

 Parece que só o ser humano é capaz de se mostrar realmente diabólico.
(...) "Os animais devoram, às vezes, um dos seus ainda vivo. Eles nos
parecem então cruéis. Mas basta refletir para compreender que não é ao mal enquanto
mal que eles visam, e que a crueldade deles só se deve, é claro, à indiferença que sentem
quanto ao sofrimento do outro. E no momento em que eles parecem matar “por prazer”,
eles só estão, na verdade, exercendo do melhor modo um instinto que os guia e os
mantém na guia, por assim dizer. (...) O que nos parece tão cruel está ligado ao reino da
indiferença total de que esses seres de natureza, os animais, dão prova nas relações do
predador com sua presa, e não a uma vontade consciente de fazer o mal.

Mas o ser humano não é indiferente. Ele faz o mal e sabe que o faz e, às vezes, ele se
compraz com isso. É claro que, diferentemente do animal, acontece de ele fazer do mal
um objetivo consciente. 

Ora, tudo parece indicar que essa tortura gratuita está em excesso em relação a toda
lógica natural.

(...) O homem tortura seus semelhantes sem nenhum objetivo  além do da própria tortura. 
Por que milicianos sérvios obrigam — como se lê nos relatórios de crimes de guerra
 cometidos nos Bálcãs — um infeliz avô croata a comer o fígado de seu neto ainda vivo?
 Por que os hútus cortam os membros dos recém-nascidos tútsis 
para se divertirem, apenas para nivelarem suas caixas de cerveja?" 
(Luc Ferry - Aprender a Viver)
 
Somos partes do Cosmos. Isso quer dizer que o vento venta, a maré mareia, o sapo sapeia e tudo está mais ou menos de boa. Quando o vento venta, ele venta em harmonia com o Cosmos. Da mesma maneira a maré, o sapo, o tsunami, qualquer outra coisa. Quem é que pode comprometer? Quem é que pode comprometer o todo? O gato que vive de acordo com a sua natureza de gato? Certamente não. Como diz Hans Jonas, filósofo, verdadeiro patrono do pensamento ecologista do século vinte e vinte um, “uma ostra não coloca em risco universo!” O que ele quis dizer com isso? Que a ostra ostreia, o gato gateia, o vento venta... Então quem é que compromete, quem é que pode comprometer, quem é que pode viver em desarmonia com o todo? Quem é que pode viver errado? Só pode viver errado quem decide, quem delibera, quem escolhe: nós! Existe para nós um lugar, uma atividade, uma função, uma finalidade, um papel. O que Aristóteles chamava de “lugar natural”. Nesse lugar natural, a especificidade da nossa natureza entra em harmonia com o todo, contribuindo da melhor forma possível para o todo. A vida será boa, quando estivermos no lugar certo fazendo a coisa certa. A vida será catastrófica, quando estivermos no lugar errado fazendo a coisa errada.
(Prof. Clóvis Barros Filho)   
O grande filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) teria desconsiderado todo esse papo de “como é se sentir como” quando se trata de lobos gigantes, ou qualquer outro animal, pois acreditava que animais não tinham consciência. Segundo sua linha de pensamento, eles se assemelhavam mais a máquinas complexas. Descartes defendia isso por dois motivos principais. Primeiro, ele acreditava que a consciência exigia a existência de uma alma, uma substância não física, e apenas pessoas tinham almas. Na verdade, dizer que pessoas “têm” alma não é exatamente correto. Descartes pensava que pessoas eram almas. Em outras palavras, para o filósofo, você não é
seu corpo, e sim uma substância imaterial casualmente conectada a seu corpo. Então, quando Sansa olha para Sandor Clegane e vê este homem imenso e muito perigoso com metade do rosto queimado, ela está vendo apenas o corpo do Cão, e não o Cão em si. O que faz deste o corpo dele é o fato de que quando a alma de Sandor Clegane, se você chamar assim, decidiu matar Mycah, o filho do carniceiro, com uma espada, o corpo do Cão cometeu o assassinato. E o mesmo é verdade no outro sentido. Quando Gregor empurrou o rosto do irmão no carvão em chamas quando eles eram crianças, a alma que era Sandor sentiu a dor, e não outra alma qualquer.
Então, as pessoas têm almas, e a consciência se dá apenas em almas. Como animais não têm almas, logo não têm consciência. O segundo motivo pelo qual Descartes negava a existência de consciência nos animais era a crença de que o comportamento animal podia ser totalmente explicado em termos físicos. Isso indicaria uma diferença entre nós e os outros animais, porque nosso comportamento, segundo Descartes, não poderia ser explicado em termos puramente físicos.
Para ilustrar essa diferença, Descartes se concentrou na linguagem. Quando o corvo do senhor comandante Mormont diz “milho” ou “neve”, Descartes diria que este era um acontecimento mecânico, sem qualquer compreensão da parte do pássaro. Mas, quando o comandante emite esses mesmos sons, eles têm significado para o comandante. Além disso, o processo pelo qual pegamos nossos pensamentos (que têm significado) e os transformamos em palavras que comunicam esses significados não pode ser explicado em quaisquer termos mecanicistas — pelo menos é o que Descartes alegava.
Independentemente de Descartes estar ou não certo em relação a isso, a estratégia da argumentação foi instrutiva. Ao defender a existência de algo que não pode ser percebido, como a alma ou os deuses de Westeros, é possível argumentar que  sem isso, falta esclarecer algo. Quando se trata de animais, Descartes pensava que as explicações físicas eram o bastante, então não havia necessidade de postular mais. Com pessoas, por sua vez, a explicação física não era suficiente para dar conta da linguagem, do significado e do pensamento. Portanto, era preciso algo mais. E, de acordo com Descartes, este algo deveria ser consciente, e não físico: a alma.
Existem muitas dificuldades nessa posição. Primeiro, porque muitos animais têm linguagens sofisticadas (vide os primatas mais evoluídos, bem como golfinhos e baleias). Dessa forma, eles também têm alma? Talvez essas linguagens não tenham significado para eles e não sejam usadas para transmitir pensamentos. Se for verdade, Descartes poderia aceitar o fato de estes animais terem um tipo de linguagem, defendendo que a diferença importante entre nós e eles ainda se mantém. Ainda assim, existem grandes problemas com a visão dele.
A ciência cognitiva e a neurociência têm vários relatos sobre a linguagem e sua relação com o pensamento. Descartes estava certo ao dizer que nenhum modelo mecanicista simples poderia explicar a linguagem, mas as explicações físicas disponíveis para nós são muito mais complexas do que as existentes na época de Descartes, que viveu durante a primeira metade do século XVII. Então, se as explicações físicas não conseguiam esclarecer por completo o comportamento humano, provavelmente não é devido à relação entre pensamento e linguagem. Precisaríamos de outro motivo para diferenciar as pessoas dos outros animais e negar a consciência aos últimos com base nesse tipo de argumento.
O segundo problema para Descartes é que, considerando nossos conhecimentos sobre os animais (primatas e mamíferos mais evoluídos pelo menos, que em Westeros certamente incluiriam os lobos gigantes) em termos de anatomia, fisiologia e origem biológica, negar a consciência aos animais parece, na melhor das hipóteses, duvidoso. Na verdade, os motivos que utilizamos para considerar outras pessoas conscientes são basicamente os mesmos que aplicamos aos animais. Para ilustrar isso, pense em Jon Snow e em Fantasma. Jon sabe que tem consciência, assim como cada indivíduo. Ele supõe que seus amigos (e nem tão amigos) da Patrulha da Noite também tenham consciência, mas isso é algo que ele deduz e não sabe diretamente, como acontece em seu próprio caso. Por que Jon faz essa dedução? Por que cada um de nós faz deduções semelhantes todos os dias?
Bom, primeiro existe a evidência em termos de comportamento, tanto verbal quanto não verbal. Os irmãos da Patrulha da Noite se comportam basicamente como Jon. Você fala com eles, eles parecem entender e respondem de acordo com o que foi dito. Eles alegam sentir frio e se movem em direção ao fogo. Quando esfaqueados, gritam de dor. Fantasma se comporta de modo parecido, respondendo aos comandos de Jon, tentando se aquecer etc. Quando atacado pela águia de Orell, Fantasma mostrou um comportamento similar ao de Jon em termos de dor. Então, se as evidências comportamentais nos convencem que outras pessoas têm consciência, o mesmo tipo de evidência deve ser convincente quando aplicada aos animais.
Em segundo lugar, a fisiologia animal é bem parecida com a nossa. Seria absurdo pensar que cérebros e sistemas nervosos feitos (sejam pelos deuses ou de um jeito biologicamente natural) para registrar dor fariam isso em nós, mas não em seres biologicamente semelhantes. (Voltaire comentou: “Não inquines à natureza tão impertinente contradição.” Em seu Dicionário filosófico, verbete “Irracionais”, editado por Ridendo Castigat Mores.) Imagine pensar o seguinte sobre outro ser humano: “Bom, eu sei que o cérebro e o sistema nervoso dele são iguais aos meus, e sei que ele divide uma história biológica comigo em termos de evolução e reprodução, mas aposto que ele não tem experiências conscientes.” Por que isso é menos absurdo quando analisamos um animal aparentemente perceptivo e alerta como um lobo gigante?
Lobos gigantes e animais em geral podem perceber o ambiente ao redor. Podem sentir cheiro de comida e ouvir predadores, além de utilizar os outros sentidos. Como tudo isso é possível sem consciência? Descartes (sei que estou exagerando aqui; se ele estivesse vivo, minha próxima ideia seria cortar alguns dedos dele) tinha uma resposta para isso. Para ele, a percepção tinha três níveis. O primeiro e mais baixo era uma questão puramente mecânica, na qual as informações do ambiente pressionavam fisicamente os órgãos dos sentidos. No segundo nível, haveria uma noção consciente da experiência. E, no nível mais alto, haveria a capacidade de raciocinar e fazer julgamentos sobre a experiência. Descartes pensava que animais funcionavam totalmente no primeiro nível, desprovidos de consciência. Os dois níveis mais altos não existiriam neles, visto que não têm alma.
Às vezes, nós também percebemos o ambiente ao redor sem consciência. Na sala de aula onde trabalho, costumo andar de um lado para outro na frente da sala, perto da mesa. E, embora eu não esteja prestando atenção à mesa, não estando conscientemente atento ao objeto, navego ao redor dela com facilidade. Meus sentidos detectam a mesa, mas não há qualquer noção consciente associada a isso. Um exemplo mais familiar que os filósofos gostam de discutir é o motorista de longa distância. Isso acontece com todo mundo: você está dirigindo numa estrada há várias horas e, de repente, vê que já está perto de seu destino e não tem noção de ter passado por muitas paisagens familiares. Talvez você estivesse ouvindo música ou o audiobook de House e a filosofia, mas não estava prestando nem um pouco de atenção à estrada. (Compare isso com a experiência de dirigir com tráfego pesado durante uma tempestade, quando sua consciência está totalmente presente e focada.) Mas você não bateu em ninguém e nem saiu do caminho, portanto ainda consegue perceber o ambiente ao redor.
 
(William Irwin & Henry Jacoby - A guerra dos tronos e a filosofia)
Os animais são seres inteligentes e sensíveis, capazes de compreender as nossas ações sobre eles
 

publicado às 19:25



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