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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Nietzsche compreendeu bem, mesmo que no seu caso tenha sido para tirar conclusões críticas e se engajar na via de um “imoralismo” reivindicado como tal: a problemática moral, em qualquer sentido em que seja compreendida e qualquer que seja o conteúdo que lhe seja dado, aparece no instante em que um ser humano proponha valores sacrificiais, valores “superiores à vida”. Há moral quando princípios nos parecem, com ou sem razão — para Nietzsche é, evidentemente, sem razão, mas pouco importa aqui —, tão elevados, tão “sagrados” que chegamos a considerar que valeria a pena arriscar ou mesmo sacrificar a vida para defendê-los.
Estou certo, por exemplo, de que se você assistisse ao linchamento de alguém que estivesse sendo torturado por outros, simplesmente por não ter a mesma cor da pele ou a mesma religião,
você faria tudo o que estivesse ao seu alcance para salvá-lo, mesmo que fosse perigoso. E se você não tivesse coragem, o que todos podem compreender, você admitiria sem dúvida, lá no fundo, que, moralmente, era o que você deveria fazer. Se a pessoa que estivesse sendo assassinada fosse alguém que você ama, talvez, provavelmente até, você assumisse riscos enormes para salvá-la.
Dou-lhe esse pequeno exemplo — que certamente não acontece com frequência hoje em dia na França, mas que é, não se esqueça, diário nos países que estão em guerra atualmente, a algumas horas de avião do nosso — para que você reflita sobre o seguinte: ao contrário do que deveriam ser as consequências lógicas de um materialismo por fim radical, continuamos, materialistas ou não, a considerar que alguns valores poderiam, em último caso, nos levar a assumir o risco de morte.
Talvez você seja muito jovem para se lembrar, mas no início dos anos 1980, na época em que o totalitarismo soviético vigorava, os pacifistas alemães alardeavam um slogan detestável: Lieber rot als tot — “Mais vale o vermelho do que a morte”. Em outras palavras, é melhor se curvar diante da opressão do que arriscar a vida resistindo a ela. No fim, esse slogan não convenceu a todos os contemporâneos e, evidentemente, inúmeros, não obrigatoriamente “crentes”, ainda pensam que a preservação da própria vida, por menos preciosa que seja, não é, necessariamente em todas as circunstâncias, o único valor que vale a pena. Tenho mesmo a certeza de que, se fosse preciso, nossos concidadãos ainda seriam capazes de pegar em armas para defender seus próximos, ou para resistir às ameaças totalitárias, ou que, pelo menos, tal atitude, mesmo que eles não tivessem coragem para levá-la a termo, não lhes pareceria nem indigna nem absurda.
O sacrifício, que remete à ideia de valor sagrado, possui, paradoxalmente, mesmo para um materialista convicto, uma dimensão que poderíamos chamar de quase religiosa. Ele implica, de fato, que se admita, mesmo ocultamente, que existem valores transcendentes, já que superiores à vida material ou biológica.
Apenas, e é aí que quero chegar para identificar, enfim, o que a moral humanista pode ter de novo no espaço contemporâneo em relação à dos Modernos, os motivos tradicionais do sacrifício falharam.
Em nossas democracias ocidentais, pelo menos, são muito pouco numerosos os indivíduos que estariam dispostos a sacrificar a vida para a glória de Deus, da pátria ou da revolução proletária. Em compensação, sua liberdade e, mais ainda, sem dúvida, a vida dos que eles amam poderiam lhes parecer, em certas circunstâncias extremas, merecer que eles ainda aceitassem combates.
Em outros termos, as transcendências de outrora — as de Deus, da pátria ou da revolução — não foram absolutamente substituídas pela imanência radical prezada pelo materialismo, pela renúncia ao sagrado e pelo sacrifício, mas sim por formas novas de transcendência, transcendências “horizontais” e não mais verticais: enraizadas em seres que estão no mesmo plano que nós, e não mais em entidades situadas acima de nossas cabeças. Eis aí em que me parece que o movimento do mundo contemporâneo é um movimento durante o qual duas tendências pesadas se cruzaram.
De um lado, uma tendência à humanização do divino. Para lhe dar um exemplo, poderíamos dizer que nossa grande Declaração dos Direitos do Homem não é nada mais — e Nietzsche também percebeu isso muito bem — do que um cristianismo “secularizado” — quer dizer, uma retomada do conteúdo da religião cristã sem que a crença em Deus seja por isso uma obrigação.
De outro lado, vivemos, sem dúvida alguma, um movimento inverso de divinização ou de sacralização do humano no sentido em que acabo de definir: agora é para o outro homem que podemos, eventualmente, aceitar assumir riscos, não para defender as grandes entidades de antigamente, como a pátria ou a revolução, porque ninguém acredita mais, como no hino cubano, que “morrer por ela é entrar na eternidade”. Podemos ainda, é claro, ser patriotas, mas a pátria mudou de sentido: designa menos o território do que os homens que vivem nele, menos o nacionalismo do que o humanismo.
Você quer um exemplo, para não dizer uma prova? Basta ler o pequeno e importante livro de Henri Dunant intitulado Un Souvenir de Solferino. Henri Dunant, como você talvez saiba, foi o criador da Cruz Vermelha e, para além dessa instituição específica, o fundador do humanismo moderno ao qual ele dedicou toda a vida. Em seu pequeno livro, ele conta o nascimento desse extraordinário engajamento. Tendo atravessado sem querer, devido ao acaso de uma viagem de negócios, o campo de batalha de Solferino, ele descobre o horror absoluto. Milhares de mortos e, pior ainda, inúmeros feridos que agonizam lentamente em meio a sofrimentos atrozes, sem a menor ajuda nem assistência de espécie alguma. Dunant desce da diligência e passa 48 horas terríveis, com as mãos mergulhadas em sangue, acompanhando os moribundos.
Ele tira daí uma lição magnífica que estará na origem da verdadeira revolução moral que representa o humanitário contemporâneo: aquela segundo a qual o soldado, uma vez derrubado, desarmado e ferido, deixa de pertencer a uma nação, a um campo, para voltar a ser um homem, um simples humano que, enquanto tal, merece ser protegido, assistido, tratado, independentemente de todos os engajamentos vividos no conflito do qual participou. Dunant adere à aspiração fundamental da grande Declaração dos Direitos do Homem de 1789: todo ser humano merece ser respeitado independentemente de todos os pertencimentos comunitários, étnicos, linguísticos, culturais, religiosos. Mas ele vai mais longe ainda, pois nos convida a abstrair também os pertencimentos nacionais, de modo que o humanitário, nisso herdeiro do cristianismo, nos pede agora para tratar nosso próprio inimigo, quando reduzido a estado de ser humano inofensivo, como se fosse nosso amigo.
Como você vê, estamos longe de Nietzsche — cuja aversão pela ideia de piedade o levava a odiar todas as formas de ação caridosa, suspeita a seus olhos de exalar um cheiro de cristianismo, de restos de ideal. A ponto de literalmente pular de alegria no dia em que ficou sabendo que um tremor de terra tinha acontecido em Nice ou que um ciclone tinha devastado as ilhas Fidji.
Nietzsche se perde, não há por que duvidar. Mas, sobre o fundamento do diagnóstico, ele não deixa de ter razão: mesmo tendo rosto humano, o sagrado, de fato, não deixa de subsistir, como subsiste a transcendência, embora alojada na imanência, no coração do homem. Mas, em vez de lamentar com ele, é isso, exatamente isso que se tem de fazer, pensar em termos novos, se quisermos deixar de viver, como o materialismo tem de decidir fazer, nessa insustentável e permanente denegação que consiste em reconhecer na experiência íntima a existência de valores que comprometem absolutamente, mas que no plano teórico se empenham em defender uma moral relativista, rebaixando esse absoluto a uma simples ilusão a ser ultrapassada.
Baseados nisso podemos agora chegar à análise da salvação, ou pelo menos do que a substitui, num universo voltado a uma exigência de lucidez até então desconhecida.
III. Repensar a questão da salvação: para que serve crescer?
Gostaria, para terminar, de lhe propor três elementos de reflexão sobre o modo como o humanismo não metafísico pode hoje reinvestir na problemática da sabedoria: eles dizem respeito à exigência do pensamento alargado, à sabedoria do amor e à experiência do luto.
A exigência do pensamento alargado
Comecemos pelo “pensamento alargado”.
Essa noção, que tive a oportunidade de evocar no fim do capítulo sobre a filosofia moderna, assume um significado novo no quadro do pensamento pós-nietzschiano. Ela não designa simplesmente, como em Kant, uma exigência do espírito crítico, uma imposição argumentativa (“colocar-se no lugar dos outros para melhor compreender seu ponto de vista”), mas um novo modo de responder à questão do sentido da vida. Gostaria de lhe dizer uma palavra a respeito, a fim de indicar algumas relações que ela mantém com a problemática da salvação ou, pelo menos, com o que está em seu lugar na perspectiva humanista pós-nietzschiana, liberada dos ídolos da metafísica.
Por oposição ao espírito “limitado”, o pensamento alargado poderia ser definido, num primeiro momento, como aquele que consegue arrancar-se de si para se “colocar no lugar de outrem”, não somente para melhor compreendê-lo, mas também para tentar, num momento em que se volta para si, olhar seus próprios juízos do ponto de vista que poderia ser o dos outros.
É o que exige a autorreflexão de que falávamos há pouco: para que se tome consciência de si, é preciso situar-se a distância de si mesmo. Onde o espírito limitado permanece envisgado em sua comunidade de origem a ponto de julgar que ela é a única possível ou, pelo menos, a única boa e legítima, o espírito alargado consegue, assumindo tanto quanto possível o ponto de vista de outrem, contemplar o mundo como espectador interessado e benevolente. Aceitando descentrar sua perspectiva inicial e arrancar-se ao círculo do egocentrismo, ele pode penetrar nos costumes e nos valores diferentes dos seus; em seguida, ao se voltar para si mesmo, tomar consciência de si de modo distanciado, menos dogmático, e com isso enriquecer suas próprias ideias.
É também nesse ponto que eu gostaria que você observasse e avaliasse a profundidade das raízes intelectuais do humanismo: a noção de “pensamento alargado” dá seguimento à “perfectibilidade” que vimos em Rousseau. Ele encontrava nela o próprio do humano, por oposição ao animal. Ambas supõem, de fato, a ideia de liberdade entendida como a faculdade de arrancar-se da condição particular para aceder a uma maior universalidade, para entrar numa história individual ou coletiva — de um lado, a da educação, de outro, a da cultura e da política — no curso da qual se efetua o que poderíamos chamar de humanização do humano.
Ora, é também esse processo de humanização que dá todo sentido à vida e que, na acepção quase teológica do termo, a “justifica” na perspectiva do humanismo. Gostaria de lhe explicar o porquê, tão claramente quanto possível.
Em meu livro O que É uma Vida Bem-sucedida?, citei longamente um discurso pronunciado por ocasião da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, em dezembro de 2001, pelo escritor indo-britânico V. S. Naipaul. Pareceu-me, com efeito, que ele descrevia perfeitamente essa experiência do pensamento alargado e dos benefícios que ele pode trazer, não apenas na escrita de um romance, como também, mais profundamente, na conduta de uma vida humana. Gostaria de retomá-lo mais uma vez com você.
Nesse texto, Naipaul conta sua infância na ilha de Trinidad e evoca as limitações inerentes à vida das pequenas comunidades, fechadas sobre si mesmas e fechadas em seus particularismos, em termos nos quais gostaria que você refletisse:
Nós, indianos, emigrados da Índia [...] levávamos basicamente vidas ritualizadas e não éramos ainda capazes da autoavaliação necessária para começar a aprender [...] Em Trinidad, onde, recém-chegados, formávamos uma comunidade inferior, a ideia de exclusão era uma espécie de proteção que nos permitia, por pouco tempo, viver à nossa maneira e segundo nossas próprias regras, viver em nossa própria Índia que se apagava. Daí um extraordinário egocentrismo. Olhávamos para dentro; vivíamos nossos dias; o mundo de fora existia numa espécie de escuridão; não nos interrogávamos sobre nada...
E Naipaul explica de que modo, quando se tornou escritor, “essas zonas de trevas” que o cercavam em criança — quer dizer, tudo o que estava mais ou menos presente na ilha, mas que o fechamento em si impedia de ver: os nativos, o Novo Mundo, o universo muçulmano, a África, a Inglaterra — tornaram-se temas de predileção que lhe permitiram, estabelecida certa distância, escrever um dia um livro sobre sua ilha natal. Você já viu que todo o seu itinerário de homem e de escritor — os dois são inseparáveis, no caso — consistiu em alargar o horizonte por meio de gigantesco esforço de “descentramento”, de afastamento de si com o objetivo de conseguir apropriar-se das “zonas de sombra” em questão.
Em seguida ele acrescenta algo que talvez seja fundamental:
Mas quando o livro foi concluído, tive a sensação de que tinha tirado tudo o que podia de minha ilha. Inutilmente refleti, nenhuma outra história me vinha. O acaso veio então em meu socorro. Tornei-me um viajante. Viajei pelas Antilhas e compreendi bem melhor o mecanismo colonial do qual havia feito parte. Estive na Índia, pátria de meus ancestrais, durante um ano; essa viagem dividiu minha vida ao meio. Os livros que escrevi durante essas duas viagens me alçaram a novos reinos de emoção, deram-me uma visão do mundo que nunca havia tido, ampliaram-me tecnicamente.
Nenhuma rejeição, nenhuma renúncia às peculiaridades da origem. Apenas um distanciamento, uma ampliação (e é significativo que o próprio Naipaul utilize o termo) que permite percebê-las de outra perspectiva, menos imersa, menos egocêntrica — por isso a obra de Naipaul, longe de permanecer, como o artesanato local, apenas no registro folclórico, pôde elevar-se ao nível de “literatura mundial”. Quero dizer que ela não está limitada ao público dos “naturais” de Trinidad, nem mesmo ao dos ex-colonizados, porque o itinerário que ela descreve não é apenas particular: ele possui um significado humano universal que, para além da particularidade da trajetória, pode comover e levar a refletir todos os seres humanos.
No fundo, o ideal literário e existencial que Naipaul esboça aqui significa que precisamos sair do egocentrismo. Precisamos dos outros para nos compreender a nós mesmos, precisamos de sua liberdade e, se possível, de sua felicidade para realizar nossa própria vida. Nesse aspecto, a moral por si só indica uma problemática mais alta: a do sentido.
Na Bíblia, conhecer significa amar. Falando mais rudemente: quando se diz que alguém “a conheceu biblicamente”, significa que “ele fez amor com ela”. A problemática do sentido é uma secularização dessa equivalência bíblica: se conhecer e amar são uma só coisa, então, o que acima de tudo dá sentido a nossas vidas, ao mesmo tempo orientação e significado, é exatamente o ideal do pensamento alargado. Só ele, de fato, nos permite, ao nos convidar, em todos os sentidos do termo, para a viagem, ao nos exortar a sair de nós mesmos para melhor nos encontrar — e é o que Hegel chamava de “experiência” —, conhecer melhor e amar mais os outros.
Para que serve envelhecer? Para isso, e talvez para mais nada. Para alargar a visão, aprender a amar a singularidade dos seres assim como a das obras e às vezes, quando esse amor é intenso, viver a supressão do tempo que sua presença nos dá. Com isso conseguimos, mas apenas em alguns momentos, como nos sugeriam os gregos, nos libertar da tirania do passado e do futuro para habitar esse presente por fim sem culpa e sereno. Agora você compreendeu que esse presente é como que um “momento de eternidade”, como que um instante no qual o temor da morte finalmente não significa mais nada para nós.
É nesse ponto que a questão do sentido e da salvação se unem.
Mas não quero parar aqui, pois essas fórmulas, que anunciam um pensamento, são ainda insuficientes para que você possa compreender. Precisamos ir mais longe e tentar perceber que existe, de fato, uma “sabedoria do amor”, uma visão do amor que permite captar plenamente as razões pelas quais só ele, pelo menos na perspectiva do humanismo, dá sentido às nossas vidas.
A sabedoria do amor
Proponho que você parta, para melhor delimitá-la, de uma análise muito simples do que caracteriza toda grande obra de arte.
Em qualquer campo, a obra de arte é sempre, de início, caracterizada pela particularidade de seu contexto cultural de origem. Ela é sempre marcada histórica e geograficamente pela época e pelo “espírito do povo” do qual ela se origina. Esse é justamente seu lado “folclórico” — a palavra folclore vem de folk, que quer dizer “povo” —, sua dívida para com o artesanato popular, ou, melhor dizendo, local. Vê-se, imediatamente, mesmo quando não se é um grande especialista, que uma tela de Vermeer não pertence nem ao mundo asiático, nem ao universo árabe-muçulmano, que visivelmente ela também não é localizável no espaço da arte contemporânea, mas que seguramente tem mais a ver com o norte da Europa do século XVII. Do mesmo modo, às vezes bastam apenas alguns compassos para indicar que uma música vem do Oriente ou do Ocidente, que ela é mais ou menos antiga ou recente, destinada a uma cerimônia religiosa ou à dança etc. Aliás, mesmo as maiores obras da música clássica se inspiram em cantos e danças populares dos quais o caráter nacional nunca está ausente. Uma polonesa de Chopin, uma rapsódia húngara de Brahms, as danças populares romenas de Bartok demonstram-no explicitamente. Mesmo quando não manifesta, a particularidade da origem sempre deixa suas marcas e, por maior que ela seja, por mais universal que seja seu alcance, a grande obra nunca rompeu inteiramente os laços com seu lugar e sua data de nascimento.
No entanto, é verdade que o próprio à grande obra, diferentemente do folclore, é que ela não está presa a um “povo” em particular. Ela se eleva ao universal ou, melhor dizendo, mesmo que a palavra provoque medo, ela se dirige potencialmente a toda a humanidade. É o que Goethe chamava, referindo-se aos livros, de “literatura mundial” (Weltlitteratur). A ideia de “globalização” não estava absolutamente associada em seu espírito à de uniformidade: o acesso da obra a um patamar mundial não se obtém ultrajando-se as características de sua origem, mas aceitando-se o fato de que ela parte delas e delas se nutre para transfigurá-las no espaço da arte. Para fazer delas algo diferente do simples folclore.
Consequentemente, as particularidades, em vez de serem sacralizadas como se fossem destinadas a encontrar sentido somente nas comunidades de origem, são integradas a uma perspectiva mais ampla, a uma experiência bastante vasta para ser potencialmente comum à humanidade. É por isso que a grande obra, diferentemente das outras, fala a todos os seres humanos, não importando nem o tempo nem o lugar onde eles vivem.
Vamos agora dar mais um passo.
Para compreender Naipaul, você verá que mobilizei dois conceitos, duas noções-chave: o particular e o universal.
O particular, na experiência descrita pelo grande escritor, é o ponto de partida: a pequena ilha, e até, mais exatamente, o interior da ilha, a comunidade indiana à qual Naipaul pertence. E, de fato, trata-se de uma realidade particular, com sua língua, suas tradições religiosas, sua cozinha, seus rituais etc. Em seguida, do outro lado da corrente, por assim dizer, há o universal. Não se trata apenas do vasto mundo, dos outros, mas também da finalidade do itinerário que Naipaul segue quando enfrenta as “zonas de sombra”, os elementos de alteridade que ele não conhece nem compreende à primeira vista.
O que eu gostaria que você entendesse, pois é crucial para perceber como o amor dá sentido, é que entre as duas realidades, o particular e esse universal que se confunde, a rigor, com a própria humanidade, existe lugar para o meio-termo: o singular ou o individual. Ora, é este, só este, o objeto de nosso amor e o portador de sentido.
Tentemos analisar isso com mais atenção, a fim de tornar perceptível essa ideia que nada mais é do que a viga mestra do edifício filosófico do humanismo secularizado.
Para nos ajudar a ver com clareza, partirei de uma definição da singularidade herdada do romantismo alemão, cujo interesse para nosso objetivo você vai poder avaliar.
Se a lógica clássica, desde a Antiguidade grega, designa pelo nome de “individualidade” uma particularidade que não se prendeu apenas ao particular, mas se fundiu num horizonte superior para aceder ao universal, então você pode avaliar que nesse ponto a grande obra de arte oferece-nos seu mais perfeito modelo. É porque eles são, nesse exato sentido, autores de obras singulares, ao mesmo tempo enraizados na cultura de origem e na sua época, mas capazes de se dirigir a todos os homens de todas as épocas, que lemos Platão ou Homero, Molière ou Shakespeare, ou ouvimos ainda Bach ou Chopin.
O mesmo acontece com todas as grandes obras e até com os grandes monumentos da história: pode-se ser francês, católico, e, no entanto, profundamente deslumbrado pelo templo de Angkor, pela mesquita de Kairouan, por uma tela de Vermeer ou uma caligrafia chinesa... Porque eles se elevaram ao nível supremo da “singularidade”, porque aceitaram não mais se prender ao particular que formava, como para qualquer homem, a situação inicial, nem a um universal abstrato, desencarnado, como, por exemplo, o de uma fórmula química ou matemática. A obra de arte digna do nome não é nem o artesanato local nem o universal descarnado e insosso que o resultado de uma pesquisa científica pura representa. E é isso, essa singularidade, essa individualidade nem apenas particular, nem inteiramente universal, que amamos nela.
Com isso você também vê por qual viés a noção de singularidade pode se ligar diretamente ao ideal do pensamento alargado: afastando-me de mim mesmo para compreender o outro, alargando o campo de minhas experiências, eu me singularizo, já que ultrapasso ao mesmo tempo o particular de minha condição de origem para aceder, se não à universalidade, pelo menos ao reconhecimento cada vez maior e mais rico das possibilidades que são da humanidade inteira.
Tomando um exemplo mais simples: quando aprendo uma língua estrangeira, quando me instalo, para fazê-lo, num país que não o meu, não deixo, querendo ou não, de alargar meu horizonte. Não apenas ofereço a mim mesmo os meios de me comunicar com mais seres humanos, mas também toda uma cultura associada à língua que descubro, e, ao fazê-lo, enriqueço-me de modo único com uma contribuição à minha particularidade inicial.
Em outras palavras: a singularidade não é somente a característica primeira dessa “coisa” exterior a mim que é a obra de arte, mas também uma dimensão subjetiva, pessoal, do ser humano. E é essa dimensão, e não as outras, que é o objeto de nosso amor. Nunca amamos o particular enquanto tal, tampouco o universal abstrato e vazio. Quem se apaixonaria por um recém-nascido ou por uma fórmula algébrica?
Se continuarmos a seguir o fio da singularidade, ao qual o ideal do pensamento alargado nos conduziu, devemos acrescentar a ele a dimensão do amor: somente ele dá valor e sentido último a todo esse processo de “alargamento” que pode e deve guiar a experiência humana. Como tal, ele é o resultado de uma soteriologia humanista, a única resposta plausível à questão do sentido da vida — e, nesse aspecto, uma vez mais o humanismo não metafísico pode aparecer como uma secularização do cristianismo.
Um fragmento, magnífico, dos Pensamentos de Pascal (323) o ajudará a melhor compreender. Ele se interroga sobre a natureza exata dos objetos de nossos afetos e sobre a identidade do eu. Aqui vai ele:
O que é o eu?
Um homem se põe à janela para ver os passantes; se eu estiver passando, posso dizer que ele ali está para ver-me? Não: pois ele não pensa em mim em particular. Mas aquele que ama uma pessoa por causa de sua beleza a ama? Não: pois a varíola, que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que ele não a ame mais.
E se me amam por meu juízo, por minha memória, amam a mim? Não, pois posso perder essas qualidades sem me perder. Onde está, pois, esse eu, se não se encontra nem em meu corpo nem em minha alma? E como amar o corpo ou a alma senão por essas qualidades, que não são absolutamente o que faz o eu, já que elas são perecíveis? Pois amariam a substância da alma de uma pessoa abstratamente, e algumas qualidades que nela existissem? Não é possível e seria injusto. Portanto, nunca se ama a pessoa, mas somente qualidades.
Que não se zombe mais, portanto, daqueles que se fazem homenagear por seus cargos e funções, pois só se ama alguém por qualidades de empréstimo.
A conclusão a que em geral se chega desse texto é a seguinte: o eu, que Pascal chama sempre de “detestável”, porque sempre mais ou menos se entrega ao egoísmo, não é um objeto de amor defensável. Por quê? Simplesmente porque nós todos tendemos a nos prender às particularidades, às qualidades “exteriores” dos seres que pretendemos amar: beleza, força, humor, inteligência etc., que de imediato nos seduzem. Mas, como esses atributos são por demais perecíveis, um dia o amor acaba, dando lugar ao cansaço e ao tédio. Segundo Pascal, é a experiência mais comum:
Ele não ama mais a pessoa que amava há dez anos. Acredito! Ela não é mais a mesma, ele também não. Ele era jovem e ela também; ela é outra. Talvez ele ainda a amasse, tal como ela era então. (Pensamentos, 123.)
Pois é. Longe de amar no outro o que era considerado como sua essência mais íntima, o que chamamos aqui de singularidade, só nos prendemos a qualidades particulares e, consequentemente, abstratas no sentido em que poderíamos encontrá-las em qualquer outra pessoa. A beleza, a força, a inteligência etc. não são específicas a este ou àquele; não pertencem de modo íntimo e essencial à “substância” de uma pessoa diferente de todas as outras, mas são intercambiáveis. Se persistir em sua lógica inicial, é provável que o ex-amante do fragmento 123 vá se divorciar para procurar uma mulher mais jovem e mais bonita, nesse aspecto muito semelhante à primeira com quem se casou dez anos atrás...
Muito antes dos filósofos alemães do século XIX, Pascal descobre que o particular bruto e o universal abstrato não se opõem, “estão presentes um no outro” e são apenas duas faces de uma mesma realidade. Para dizer as coisas com simplicidade, reflita sobre essa experiência bem simples: quando você telefona a alguém e diz apenas “Alô! Sou eu”, ou “Sou eu mesmo”, isso não informa nada. Esse “eu” abstrato não tem nada de singular, pois todos podem dizer “sou eu”, tanto quanto você! Somente a consideração de outros elementos possibilitará a seu interlocutor identificá-lo. Por exemplo, sua voz, mas com certeza não a simples referência ao eu, que pertence paradoxalmente à ordem do geral, do abstrato, do que há de menos amável.
Do mesmo modo, acredito ter conquistado o coração de um ser, o que existe de mais essencial, de absolutamente insubstituível, amando-o por suas qualidades abstratas; mas a realidade é outra: só conquistei da pessoa atributos tão anônimos quanto um cargo ou um título, nada mais. Em outras palavras, o particular não era o singular.
Ora, é preciso que você compreenda bem que só a singularidade, que ultrapassa ao mesmo tempo o particular e o universal, pode ser objeto de amor.
Se nos prendemos apenas às qualidades particulares/gerais, nunca amamos verdadeiramente ninguém e, nesse aspecto, Pascal tem razão. É preciso parar de caçoar dos vaidosos que apreciam as honras. Afinal, se pomos em evidência a beleza ou as medalhas, dá mais ou menos na mesma: aquela é (quase) tão exterior à pessoa quanto estas. O que faz com que um ser seja amável, o que dá a impressão de que poderíamos continuar a amá-lo mesmo que a doença o tivesse desfigurado, não é redutível a uma qualidade, por mais importante que seja. O que amamos nele (e que ele ama em nós, eventualmente) e que, consequentemente, devemos alimentar tanto em relação ao outro quanto em nós mesmos, não é nem a particularidade nem as qualidades abstratas (o universal), mas a singularidade que o distingue e o torna sem igual. Àquele ou àquela que amamos, podemos dizer afetuosamente, como Montaigne, “porque era ele, porque era eu”, mas não: “porque ele era belo, forte, inteligente”...
E essa singularidade, você deve imaginar, não é dada no nascimento. Ela se constrói de mil maneiras, sem que tenhamos sempre consciência, longe disso. Ela se forja ao longo da existência, da experiência, e é exatamente por isso que é insubstituível. Todos os recém-nascidos se parecem. Como gatinhos. São adoráveis, é claro, mas é com a idade de um mês, com o surgimento do primeiro sorriso, que o filhote do homem começa a se tornar humanamente amável. Pois é nesse momento que ele entra numa história propriamente humana, a da relação com outrem.
Nesse momento, podemos também, sempre acompanhando o fio condutor do pensamento alargado e da singularidade, reinvestir o ideal grego desse “instante eterno”, esse presente que, por sua singularidade, justamente porque o consideramos insubstituível e cuja espessura medimos, em vez de anulá-lo em nome da nostalgia do que o precede ou da esperança do que poderia suceder a ele, liberta-se das angústias de morte ligadas à finitude e ao tempo.
É ainda nesse ponto, mais uma vez, que a questão do sentido se une à da salvação. Se o desapego ao particular e à abertura universal constitui uma experiência singular, se esse duplo processo ao mesmo tempo singulariza nossas vidas e nos dá acesso à singularidade dos outros, ele nos oferece, junto com o meio de alargar o pensamento, o de pô-lo em contato com momentos únicos, momentos de graça dos quais o temor da morte, sempre ligada às dimensões do tempo exteriores ao presente, se ausenta.
Você objetará talvez que, em relação à doutrina cristã, em relação especialmente à promessa que ela nos faz, com a ressurreição dos corpos, de reencontrar depois da morte aqueles que amamos, o humanismo não metafísico pesa bem pouco. Concordo de boa vontade: no controle de qualidade das doutrinas da salvação, nada pode concorrer com o cristianismo... desde que acreditemos.
Se não somos crentes — e não podemos nos forçar a sê-lo, nem fingir —, é preciso, então, aprender a considerar diferentemente a questão última de todas as doutrinas da salvação, ou seja, a do luto do ser amado.
A meu ver, seria assim.
O luto do ser amado
Em minha opinião, existem três modos de pensar o luto de uma pessoa que amamos, três modos de enfrentá-lo.
Podemos ser tentados pelas recomendações do budismo — que se identifica, quase que palavra por palavra, às dos estoicos. No fundo, elas se resumem a um preceito primeiro: não se apegar. Não por indiferença — ainda aí o budismo, como o estoicismo, prega a compaixão e os deveres da amizade —, mas por precaução. Se nos deixamos prender pouco a pouco na armadilha dos apegos que o amor sempre nos prepara, predispomo-nos aos piores sofrimentos, já que a vida é mudança, impermanência, e que todos os seres são perecíveis. E mais ainda. Não é apenas da felicidade, da serenidade que nos privamos antecipadamente, mas da liberdade. As palavras são, aliás, significativas: estar apegado é estar ligado, não livre, e, se quisermos nos libertar dos laços que o amor tece, precisamos exercitar o mais cedo possível essa forma de sabedoria que é o não apego.
Uma outra resposta, totalmente inversa, é a das grandes religiões, sobretudo a do cristianismo, já que só ele professa a ressurreição dos corpos e não apenas das almas. Ela consiste, você se lembra, em prometer que, se praticamos com os seres queridos o amor em Deus, o amor que neles carrega o que há de divino e não mortal, teremos a felicidade de reencontrá-los — de modo que o apego não é proibido, desde que seja convenientemente situado. Essa promessa é simbolizada no Evangelho pelo episódio que relata a morte de Lázaro, amigo do Cristo. Como qualquer ser humano, o Cristo chora quando fica sabendo que seu amigo morreu — o que Buda nunca se permitiria fazer. Ele chora porque, tendo assumido a forma humana, experimenta em si a separação como um luto, um sofrimento. Mas ele sabe, é claro, que logo vai reencontrar Lázaro, porque o amor é mais forte do que a morte.
Temos aí duas sabedorias, duas doutrinas da salvação que, embora em todos os pontos, ou quase, opostas, não deixam, como você vê, de tratar o mesmo problema: o da morte dos seres queridos.
Para lhe dizer simplesmente o que penso, nenhuma das duas atitudes, por mais profundas que pareçam para alguns, me convém. Não apenas não posso evitar me apegar, como não tenho vontade de renunciar a isso. Não ignoro quase nada dos sofrimentos que virão — já sei até como são amargos. Mas, como afirma o dalai-lama, o único meio de viver o não apego é a vida monástica, no sentido etimológico do termo: é preciso viver sozinho para ser livre, para evitar os laços, e, para ser franco, acredito que ele tem razão. Preciso então renunciar à sabedoria dos budistas, assim como renunciei à dos estoicos. Com respeito, estima e consideração, no entanto, com uma irremediável distância.
Acho o dispositivo cristão infinitamente mais tentador... a não ser por um único detalhe: não acredito. Mas se fosse verdade, como diz o outro, eu seria candidato. Lembro-me de meu amigo François Furet, um dos maiores historiadores franceses e pelo qual eu tinha grande afeição. Um dia, ele foi convidado a se apresentar no programa de Bernard Pivot, que sempre concluía com o famoso questionário de Proust. Umas dez perguntas, às quais se deve responder brevemente. A última diz respeito ao que gostaríamos que Deus nos dissesse quando o encontrássemos. François, que não podia ser mais ateu do que era, respondeu sem hesitar, como qualquer cristão: “Entra rápido, teus próximos te esperam!”
Eu teria dito o mesmo que ele e, como ele, também não acredito.
Então, o que fazer senão esperar pela catástrofe, pensando nela o menos possível?
Talvez nada, de fato, mas talvez também, apesar de tudo, desenvolver sem ilusão, em silêncio, só para si mesmo, uma espécie de “sabedoria do amor”. Todos sabem muito bem que precisamos nos reconciliar com nossos pais — quase que inevitavelmente, pois a vida cria tensões — antes que eles desapareçam. Porque depois, o que quer que diga o cristianismo, é tarde demais. Se pensamos que o diálogo dos seres que nos são caros não acabou, é preciso chegar a uma conclusão.
Eu lhe aponto uma, rapidamente, para lhe dar uma ideia do que entendo aqui por sabedoria do amor. Penso que os pais nunca devem mentir a seus filhos sobre coisas importantes. Conheço várias pessoas que descobriram, depois da morte do pai, que ele não era seu pai biológico — quer porque a mãe tenha tido um amante, quer porque tenha havido adoção secreta. Em todos os casos, esse tipo de mentira faz estragos consideráveis. Não só porque num momento qualquer a descoberta da verdade vira sempre um desastre, mas sobretudo porque depois da morte do pai, que não o era efetivamente, é impossível para a criança que se tornou adulto explicar-se com ele, compreender um silêncio, uma observação, questionário de Proust. Umas dez perguntas, às quais se deve responder brevemente. A última diz respeito ao que gostaríamos que Deus nos dissesse quando o encontrássemos. François, que não podia ser mais ateu do que era, respondeu sem hesitar, como qualquer cristão: “Entra rápido, teus próximos te esperam!”
Eu teria dito o mesmo que ele e, como ele, também não acredito.
Então, o que fazer senão esperar pela catástrofe, pensando nela o menos possível?
Talvez nada, de fato, mas talvez também, apesar de tudo, desenvolver sem ilusão, em silêncio, só para si mesmo, uma espécie de “sabedoria do amor”. Todos sabem muito bem que precisamos nos reconciliar com nossos pais — quase que inevitavelmente, pois a vida cria tensões — antes que eles desapareçam. Porque depois, o que quer que diga o cristianismo, é tarde demais. Se pensamos que o diálogo dos seres que nos são caros não acabou, é preciso chegar a uma conclusão.
Eu lhe aponto uma, rapidamente, para lhe dar uma ideia do que entendo aqui por sabedoria do amor. Penso que os pais nunca devem mentir a seus filhos sobre coisas importantes. Conheço várias pessoas que descobriram, depois da morte do pai, que ele não era seu pai biológico — quer porque a mãe tenha tido um amante, quer porque tenha havido adoção secreta. Em todos os casos, esse tipo de mentira faz estragos consideráveis. Não só porque num momento qualquer a descoberta da verdade vira sempre um desastre, mas sobretudo porque depois da morte do pai, que não o era efetivamente, é impossível para a criança que se tornou adulto explicar-se com ele, compreender um silêncio, uma observação, uma atitude que os marcaram e aos quais ele gostaria de poder dar um sentido — o que se torna para sempre impossível.
Não insisto — já lhe disse que essa sabedoria do amor deve ser elaborada por cada um de nós e, sobretudo, em silêncio. Mas acredito que devemos, à margem do budismo e do cristianismo, aprender, enfim, a viver e a amar como adultos, pensando, se necessário, todos os dias na morte. Não por fascinação mórbida. Ao contrário, para procurar o que convém fazer aqui e agora, na alegria, com aqueles que amamos e que vamos perder, a menos que eles nos percam antes. Estou certo de que, embora eu esteja infinitamente longe de possuí-la, essa sabedoria existe e constitui o coroamento de um humanismo, enfim, desembaraçado das ilusões da metafísica e da religião.
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A título de conclusão...
Você já entendeu que eu amo a filosofia e, acima de tudo, a ideia do pensamento alargado, que prezo muito. O que talvez seja o essencial da filosofia moderna e do humanismo contemporâneo.
Ela possibilita, na minha opinião, pensar uma theoria que confere à autorreflexão o lugar que merece, uma moral aberta ao universo globalizado que a partir de agora teremos de enfrentar, mas também uma doutrina pós-nietzschiana do sentido e da salvação.
Além desses três grandes eixos, ela permite também pensar de outro modo, ultrapassando o ceticismo e o dogmatismo, a enigmática realidade da pluralidade das filosofias.
Em geral, o fato de que haja vários sistemas filosóficos e que esses sistemas não se coadunem entre si provoca duas atitudes: o ceticismo e o dogmatismo.
O ceticismo sustenta mais ou menos o seguinte discurso: desde a aurora dos tempos, as diferentes filosofias se combatem sem jamais conseguir chegar a um acordo sobre a verdade. Essa pluralidade mesma, por seu caráter irredutível, prova que a filosofia não é uma ciência exata, que essa disciplina é marcada por grande incerteza, por uma incapacidade de manifestar uma posição verdadeira que, por definição, deveria ser única. Já que existem várias visões do mundo e que elas não conseguem se harmonizar, deve-se admitir também que nenhuma poderia pretender seriamente conter em si, mais do que outras, a verdadeira resposta às perguntas que nos fazemos sobre o conhecimento, a ética ou a salvação, de modo que toda filosofia é vã.
O dogmatismo sustenta, é claro, uma linguagem inversa: evidentemente, há várias visões do mundo, mas a minha, ou pelo menos aquela na qual eu me encontro, é, com certeza, superior e mais verdadeira do que as dos outros, que não constituem senão uma longa tecedura de erros. Quantas vezes não ouvi os spinozianos me explicarem que Kant delirava, e os kantianos denunciarem o absurdo estrutural do spinozismo!
Cansado desses velhos debates, minado pelo relativismo, culpado também pela lembrança de seu próprio imperialismo, o espírito democrático frequentemente se alinha com compromissos, em nome da louvável preocupação em “respeitar as diferenças”, que se acomodam a conceitos frouxos: “tolerância”, “diálogo”, “preocupação com o Outro” etc., aos quais é difícil conferir um sentido que se possa referendar.
A noção de pensamento alargado sugere uma outra via.
Afastando-se da escolha entre um pluralismo de fachada e a renúncia de suas próprias convicções, ele sempre nos convida a resgatar o que uma visão de mundo diferente da sua pode ter de verdadeiro, aquilo que pode nos levar a compreendê-la, ou mesmo a assumi-la em parte.
Um dia, escrevi um livro com meu amigo André Comte-Sponville, o filósofo materialista pelo qual tenho o maior respeito e amizade. Tudo nos opunha: tínhamos aproximadamente a mesma idade, poderíamos ter sido competidores. André vinha, politicamente, do comunismo; eu, da direita republicana e do gaullismo. Filosoficamente ele se inspirava completamente em Spinoza e nas sabedorias do Oriente; eu, em Kant e no cristianismo. Encontramo-nos e, em vez de nos odiar, como teria sido simples fazê-lo, começamos a acreditar um no outro, quero dizer, a não supor a priori que o outro estava de má-fé, mas a procurar, com todas as forças, compreender o que poderia seduzir e convencer numa visão de mundo diferente da nossa própria.
Graças a André, compreendi a grandeza do estoicismo, do budismo, do spinozismo, de todas as filosofias que nos convidam a “esperar um pouco menos e amar um pouco mais”. Compreendi também o quanto o peso do passado e do futuro estraga o gosto do presente e até gostei mais de Nietzsche e de sua doutrina da inocência do devir. Nem por isso me tornei materialista, mas não posso mais dispensar o materialismo para descrever e pensar algumas experiências humanas. Em suma, acredito ter alargado o horizonte que era o meu até algum tempo atrás.
Toda grande filosofia resume em pensamentos uma experiência fundamental da humanidade, como toda grande obra artística ou literária traduz os possíveis das atitudes humanas nas formas mais sensíveis. O respeito pelo outro não exclui a escolha pessoal. Ao contrário, a meu ver, ele é sua condição primeira.
(Luc Ferry - Aprender a Viver)