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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Que lição tirar de tal análise?
Inicialmente, a de que a atitude genealógica e a técnica são, exatamente como pensa Heidegger, apenas duas faces da mesma moeda: a primeira é o duplo ideal, filosófico, da segunda, que não é senão seu equivalente social, econômico e político.
É evidente que se trata de um paradoxo. Aparentemente, nada está mais distante do mundo da técnica — com seu lado democrático, banal e gregário no antípoda de qualquer espécie de “grande estilo” — do que o pensamento aristocrático e poético de Nietzsche. No entanto, quebrando todos os ídolos com seu martelo, deixando-nos, a pretexto de lucidez, praticamente com pés e mãos atados ao real tal como ele é, seu pensamento serve, sem que ele o tenha desejado, ao incessante movimento do capitalismo moderno.
Desse ponto de vista, Heidegger tem razão. De fato, Nietzsche é, por excelência, o “pensador da técnica”, aquele que, como nenhum outro, acompanha o desencanto do mundo, o eclipse do sentido, o desaparecimento dos ideais superiores em proveito da única e exclusiva lógica da vontade de poder. Que na filosofia francesa dos anos 1960 se tenha visto no pensamento de Nietzsche algo semelhante a uma filosofia das utopias radicais continuará, sem sombra de dúvida, um dos maiores equívocos da história das interpretações. Nietzsche é, sim, um vanguardista, mas nem por isso um teórico das utopias. Ao contrário, ele é seu mais ardente e eficaz contendor.
Portanto, grande é o risco — e aqui me afasto nitidamente do pensamento de Heidegger para voltar ao nosso objetivo — de que uma busca indefinida e incansável da desconstrução não venha a arrombar uma porta já aberta. Lamentavelmente, o problema não é mais continuar quebrando pobres “pés de barro” de infelizes ideais que ninguém consegue mais perceber a tal ponto se tornaram frágeis e raros. O urgente não é mais se opor a “poderes”, a partir de agora raros, a tal ponto o curso da história tornou-se mecânico e anônimo, mas, ao contrário, fazer surgir novas ideias, ou mesmo novos ideais, a fim de se reencontrar um mínimo de poder no desenvolvimento do mundo. Pois o verdadeiro problema, na verdade, não é que ele seria secretamente guiado por alguns “poderosos”, mas, ao contrário, que ele escapa, de agora em diante, a todos nós, inclusive aos poderosos. Não é tanto o poder que incomoda, mas antes a ausência de poder — de modo que querer desconstruir ainda e sempre os ídolos, procurar pela enésima vez derrubar o “Poder”, com P maiúsculo, não é mais tanto agir em função da emancipação dos homens, mas se tornar involuntariamente cúmplice de uma globalização cega e insensata.
Em seguida, sem dúvida alguma, e essa é a terceira lição importante, a prioridade, na situação em que estamos, é “recuperar”, tentar, se possível, “dominar a dominação”. O próprio Heidegger não acreditava nisso ou, mais exatamente, duvidava de que a democracia estivesse à altura de tal desafio — e é provavelmente uma das razões que o atiraram nos braços do pior regime autoritário que a humanidade conheceu. Com efeito, ele pensava que as democracias esposam fatalmente a estrutura do mundo da técnica. No plano econômico, porque elas estão intimamente ligadas ao sistema liberal de concorrência entre as empresas. Ora, esse sistema, nós vimos como, induz quase que necessariamente à progressão ilimitada e mecânica das forças produtivas. No plano político também, já que as eleições assumem, do mesmo modo, a forma de uma competição organizada que, insensivelmente, tende a derivar para uma lógica cuja estrutura mais profunda, digamos logo, a da demagogia e do reino sem restrição do medidor de audiência, é o fundamento da técnica, ou seja, da sociedade de competição globalizada.
Heidegger, lamentavelmente, se engajou no nazismo, convencido que estava, sem dúvida, de que apenas um regime autoritário poderia se mostrar à altura dos desafios lançados à humanidade pelo mundo da técnica. Mais tarde, na última parte de sua obra, ele se desligou de todo voluntarismo, de toda tentação de transformar o mundo, em proveito de uma espécie de “retiro” capaz de lhe oferecer alguma serenidade. Embora explicáveis, essas duas atitudes são imperdoáveis, ou mesmo absurdas — o que prova que se pode ser genial na análise e trágico quando se trata de chegar a
conclusões. Grande parte da obra de Heidegger é, pois, terrivelmente decepcionante, por vezes insuportável, embora o cerne de sua concepção da técnica seja realmente esclarecedor. É assim mesmo.
Mas deixemos de lado as conclusões a que Heidegger chegou sobre as constatações que ele tão acertadamente fez. O que me parece essencial é que você perceba como, neste mundo tecnológico, a filosofia pode se engajar em duas direções.
Dois caminhos possíveis para a filosofia contemporânea: tornar-se uma “disciplina técnica” na universidade ou dedicar-se a pensar o humanismo depois da desconstrução
Pode-se, inicialmente, de acordo com o ambiente “tecnicista” no qual agora vivemos e respiramos permanentemente, fazer da filosofia uma nova escolástica, no sentido próprio do termo: uma disciplina escolar na universidade e na escola. O fato é que, após uma fase intensa de “desconstrução” inaugurada pelo martelo de Nietzsche e continuada por outros de diferentes modos, a filosofia, dominada pela paixão da técnica, especializou-se em setores particulares: filosofia das ciências, da lógica, do direito, da moral, da política, da linguagem, da ecologia, da religião, da bioética, da história das ideias orientais ou ocidentais, continentais ou anglo-saxônicas, de determinado período, de tal país... A bem dizer, nunca terminaríamos de enumerar as “especialidades” que os estudantes são forçados a escolher para serem considerados “sérios” e “tecnicamente competentes”.
Nos grandes organismos de pesquisa, como o CNRS (sigla em francês para Centro Nacional da Pesquisa Científica), os jovens que não se dedicam a um tema ultra-avançado — sobre o “cérebro da sanguessuga”, zombava Nietzsche — não têm a menor chance de serem considerados autênticos pesquisadores. Não apenas a filosofia é obrigada a imitar a todo custo o modelo das ciências “duras”, mas também estas, por sua vez, se tornaram “tecnociências”, quer dizer, ciências frequentemente mais preocupadas com os resultados concretos, econômicos e comerciais do que com questões fundamentais.
Quando a filosofia universitária deseja tomar impulso, quando o filósofo é convidado a se pronunciar enquanto “especialista” a respeito deste ou daquele assunto relativo à vida da cidade (e são inúmeros), ela leva em conta que sua principal função é difundir o espírito crítico e as “Luzes” na sociedade, a respeito de questões que ela própria não produziu, mas que são de interesse geral. Sua mais alta finalidade seria assim, em sentido lato, uma finalidade moral: iluminar o debate público, encorajar as argumentações racionais, pretendendo agir de modo a que se caminhe no bom sentido. E para consegui-lo, ela pensa, por honestidade intelectual, que é preciso se especializar em temas bem precisos, temas sobre os quais o filósofo, na verdade transformado em professor de filosofia, acabe adquirindo uma competência específica.
Por exemplo, novos universitários atualmente se interessam no mundo todo pela bioética ou pela ecologia, a fim de refletir a respeito dos impactos das ciências positivas sobre a evolução de nossas sociedades, para buscar respostas sobre o que convém ou não
fazer, autorizar ou proibir, no tocante a questões como a clonagem, os organismos geneticamente modificados, a eugenia, ou a reprodução clinicamente assistida...
Evidentemente, tal concepção da filosofia nada tem de indigno ou desprezível. Ao contrário, ela pode ter utilidade, e eu absolutamente não penso em negá-la. Nem por isso ela deixa de ser terrivelmente redutora em relação ao ideal de todos os grandes filósofos, de Platão a Nietzsche. Com efeito, nenhum deles chegou a renunciar a pensar na vida boa — nenhum decidiu acreditar que a reflexão crítica e a moral fossem os horizontes últimos do pensamento filosófico.
Diante dessa evolução, que para mim não é um progresso, as grandes interrogações filosóficas apresentam-se aos novos especialistas tomados pela paixão do sério como futilidades de outros tempos. Nada de falar de sentido, de vida boa, de amor à sabedoria, muito menos de salvação! Tudo o que durante milênios constituiu o essencial da filosofia parece jogado às urtigas para dar lugar apenas à erudição, à “reflexão” e ao “espírito crítico”. Não que esses atributos não sejam qualidades, mas, enfim, como dizia Hegel, “a erudição tem início com as ideias e termina com a imundície...”: tudo, qualquer coisa, pode se tornar objeto de erudição, as tampas dos potes de iogurte assim como os conceitos, de modo que a especialização técnica pode engendrar competências incontestáveis associadas à mais desoladora ausência de sentido.
Quanto à “reflexão crítica”, já tive a oportunidade de lhe dizer o que penso desde as primeiras páginas deste livro: é uma qualidade indispensável, uma exigência essencial em nosso universo republicano, mas não é, repito, não é o apanágio da filosofia. Todo ser humano digno do nome reflete sobre seu trabalho, seus amores, suas leituras, sua vida política ou suas viagens sem nem por isso ser filósofo.
Eis por que atualmente alguns de nós se situam longe das grandes aventuras do pensamento acadêmico bem como dos atalhos da desconstrução. Alguns de nós não querem restaurar as antigas questões — pois, como já lhe disse, as “voltas a” não têm nenhum sentido —, mas não desejam perdê-las de vista, com o fim de repensá-las com novo empenho. É nessa ótica, nos interstícios, por assim dizer, que debates puramente filosóficos continuam vivos. Depois da fase da desconstrução e à margem da erudição vazia, a filosofia, pelo menos uma certa filosofia, lança-se novamente rumo a outros horizontes, mais promissores, a meu ver. Estou convencido de que a filosofia pode e deve ainda, na verdade mais do que nunca, devido ao fundo tecnicista no qual mergulhamos, sustentar a interrogação, não apenas sobre a theoria e a moral, mas insistir sobre a questão da salvação, arriscando-se a renová-la de alto a baixo.
Não podemos mais nos contentar com um pensamento filosófico reduzido ao estado de disciplina universitária especializada e não podemos mais nos prender apenas à lógica da desconstrução, como se a lucidez corrosiva fosse um fim em si. Porque a erudição privada de sentido não nos basta. Porque o espírito crítico, mesmo quando serve ao ideal da democracia, não é senão uma condição necessária, mas não suficiente da filosofia: ele permite que nos livremos das ilusões e das ingenuidades da metafísica clássica, mas nem por isso responde às questões existenciais que a aspiração à sabedoria inerente à ideia de filosofia colocava no cerne das antigas doutrinas da salvação.
Podemos, certamente, renunciar à filosofia; podemos declarar em alto e bom som que ela morreu, acabou, definitivamente substituída pelas ciências humanas, mas não podemos pretender seriamente filosofar, agarrando-nos apenas à dinâmica da desconstrução e sem considerar a questão da salvação, qualquer que seja o sentido que lhe dermos. Tanto mais que, se não quisermos mais ceder, pelos motivos que indiquei a partir da análise heideggeriana da técnica, ao cinismo do amor fati, precisamos também tentar ultrapassar o materialismo filosófico onde ele atinge seu ponto culminante. Em resumo, para quem não crê, para quem não quer se contentar com “voltas a” nem se fechar no pensamento “às marteladas”, é necessário aceitar o desafio de uma sabedoria ou de uma espiritualidade pós-nietzschianas.
Semelhante projeto supõe, é claro, manter distância do materialismo contemporâneo, quer dizer, da rejeição de todos os ideais transcendentes, de sua redução, pela genealogia, a produtos ilusórios da natureza e da história. Para tanto, é preciso demonstrar como, mesmo em seu melhor nível, ele não responde de modo satisfatório à questão da sabedoria ou da espiritualidade. É isso o que eu gostaria de lhe explicar, a meu modo — o que um materialista poderia contestar, mas que eu considero correto —, antes de assinalar como um humanismo pós-nietzschiano consegue pensar em termos novos a theoria, a moral e a problemática da salvação ou aquilo que, a partir de agora, pode ocupar seu lugar.
Por que procurar pensar, depois da desconstrução, as bases de um humanismo livre dos “ídolos” da metafísica moderna? A derrota do materialismo
Mesmo quando ele quer, com talento, reassumir claramente o projeto que leva a uma moral, a uma doutrina da salvação ou da sabedoria — o que Nietzsche, por exemplo, só fazia de modo sub-reptício, implícito —, o materialismo contemporâneo não consegue, pelo menos ao que me parece, coerência suficiente para obter aprovação. Isso não significa que não exista algo de verdadeiro nele, nem elementos de reflexão profundamente estimulantes, mas apenas que, no todo, as tentativas para acabar com o humanismo resultam em fracasso.
Gostaria de lhe dizer uma palavra a respeito dessa renovação do materialismo — que reúne o estoicismo, o budismo e o pensamento de Nietzsche —, porque, de alguma forma, como acabo de sugerir, é exatamente devido a seu fracasso que um novo humanismo deve, como que por oposição, ser pensado com novo empenho.
No espaço da filosofia contemporânea, é sem dúvida André Comte-Sponville quem leva mais longe, com mais talento e vigor, a tentativa de fundar uma nova moral e uma nova doutrina da salvação com base na desconstrução radical das pretensões do humanismo à transcendência dos ideais. Nesse sentido, embora André Comte-Sponville não seja nietzschiano — ele rejeita veementemente as nuances fascistas das quais Nietzsche nem sempre escapa —, ele se solidariza com a ideia nietzschiana de que os “ídolos” são ilusórios; tem certeza de que eles devem ser desconstruídos, devolvidos pela genealogia a seu modo de produção, e que somente uma sabedoria da imanência radical é possível. Seu pensamento vai culminar também em inúmeras figuras do amor fati, num apelo à reconciliação com o mundo tal como ele é ou, o que dá no mesmo, numa crítica radical da esperança. “Esperar um pouco menos, amar um pouco mais” é, em sua opinião, a chave da salvação. Pois a esperança, ao contrário do que pensa o comum dos mortais, longe de nos ajudar a viver melhor, nos faz perder o essencial da vida, que deve ser abraçado aqui e agora.
Como para Nietzsche e os estoicos, do ponto de vista do materialismo renovado, a esperança é mais uma desgraça do que uma virtude benéfica. Assim André Comte-Sponville resumiu numa fórmula tão sintética quanto expressiva: “Esperar” diz ele, “é desejar sem fruir, sem saber e sem poder.” Portanto, é um grande malogro e de modo algum uma atitude que dá, como se repete tantas vezes, gosto à vida.
A fórmula pode ser comentada da seguinte maneira: esperar é, antes de tudo, desejar sem fruir, já que, por definição, é claro que não possuímos os objetos de nossas esperanças. Esperar enriquecer, ser jovem, ter boa saúde etc. certamente não é já sê-lo. É situar-se na falta do que gostaríamos de ser ou possuir. Mas é também desejar sem saber: se soubéssemos quando e como os objetos de nossas esperanças iriam se realizar, nós nos contentaríamos, sem dúvida, em aguardá-los, o que, se as palavras têm sentido, é muito diferente. Enfim, é desejar sem poder, visto que, ainda por comprovação, se tivéssemos a capacidade ou o poder de atualizar nossas aspirações, de realizá-las aqui e agora, não nos privaríamos delas. Limitar-nos-íamos a agir, sem passar pelo atalho da esperança.
O raciocínio é impecável. Frustração, ignorância, impotência, são essas as características maiores da esperança — nesse ponto, a crítica que ele faz da esperança se liga a uma espiritualidade que, como você se lembra, já tínhamos encontrado tanto no estoicismo como no budismo.
Com efeito, a doutrina da salvação materialista retoma naturalmente das sabedorias gregas a ideia do celebre carpe diem — “aproveita o dia de hoje” — dos Antigos, ou seja, a convicção de que só vale a pena viver a vida que se situa no aqui e no agora, na reconciliação com o presente. Tanto para ele quanto para elas, os dois males que estragam nossa existência são a nostalgia de um passado que não existe mais e a espera de um futuro que ainda não existe; com isso, em nome desses dois nadas, perdemos a vida tal como é, a única realidade que vale porque é a única verdadeiramente real: a do instante que deveríamos aprender a amar tal como ele é. Como na mensagem estoica, e da mesma forma que em Spinoza e Nietzsche, é preciso chegar a amar o mundo; é preciso elevar-se até o amor fati, o que é também a palavra-chave do que poderíamos chamar, mesmo parecendo algo paradoxal, de “espiritualidade” materialista.
Esse convite ao amor não tem como nos deixar indiferentes. Estou convencido de que ele tem certa dose de verdade que corresponde a uma experiência que todos nós já tivemos: a dos momentos de “graça” em que, por felicidade, o mundo tal como é não nos parece hostil, desengonçado ou feio, mas, ao contrário, acolhedor e harmonioso. Pode ser por ocasião de um passeio à beira de um rio, diante de uma paisagem cuja beleza natural nos encanta, ou até mesmo no mundo humano, quando uma conversa, uma festa, um encontro nos preenchem — todas essas situações tiro de Rousseau. Cada um pode naturalmente recuperar a lembrança de um desses momentos felizes de leveza quando experimentamos o sentimento de que o real não está ali para ser transformado, aperfeiçoado laboriosamente, com esforço e trabalho, mas para ser saboreado no instante, tal como é, sem preocupação com o passado ou com o futuro, na contemplação e na fruição mais do que na luta engendrada pela esperança de dias melhores.
Já lhe disse tudo isso, ao dar, se você se lembra, o exemplo do mergulho submarino. Portanto, não insistirei mais.
É claro que nesse sentido o materialismo é uma filosofia da felicidade; quando tudo vai bem, quem não seria tentado a ceder a seus encantos? Uma filosofia para tempo bom, no final das contas. Sim, mas aí é que está: quando a tempestade se levanta, ainda podemos segui-la?
Nesse aspecto, ele poderia ser de alguma ajuda, mas logo se esquiva de nós — o que, de Epicteto a Spinoza, os maiores foram obrigados a conceder: o sábio autêntico não é deste mundo, e a beatitude nos é, lamentavelmente, inacessível.
Em face da iminência da catástrofe — a doença de uma criança, a possível vitória do fascismo, a urgência de uma escolha política ou militar etc. —, não conheço nenhum sábio materialista que não se torne logo um vulgar humanista sopesando as possibilidades, convencido de repente de que o curso dos acontecimentos poderia de algum modo depender de suas livres escolhas. Que seja preciso se preparar para a desgraça, antecipá-la, como dissemos, no modo do futuro do pretérito (“quando acontecer, pelo menos eu me terei preparado”), concordo de boa vontade. Mas que seja preciso amar em qualquer circunstância o real, parece-me simplesmente impossível, para não dizer absurdo, e até obsceno. Que sentido pode ter o imperativo do amor fati em Auschwitz? E de que valem nossas revoltas ou nossas resistências se estão inscritas por toda a eternidade no real com o mesmo valor daquilo a que elas se opõem? Sei que o argumento é trivial. Nem por isso jamais vi materialista algum, antigo ou moderno, que tivesse encontrado meios de dar uma resposta.
Eis por que, levando tudo isso em consideração, prefiro me engajar na via de um humanismo que tenha a coragem de assumir plenamente o problema da transcendência. Pois, no fundo, é disso que se trata: da incapacidade lógica em que nos encontramos de evitar a questão da liberdade tal como aparece em Rousseau e Kant — quer dizer, da ideia de que existe em nós algo que é como um excesso em relação à natureza e à história.
Não. Contrariamente ao que pretende o materialismo, não conseguimos nos pensar como totalmente determinados por elas; não conseguimos erradicar totalmente o sentimento de que somos de alguma forma capazes de nos afastar para observá-las de modo crítico. Pode-se ser mulher e não se fechar naquilo que a natureza parece ter previsto em matéria de feminilidade: a educação dos filhos, a esfera privada, a vida em família; pode-se nascer num meio desfavorecido socialmente e se emancipar, progredir, graças à escola, por exemplo, para entrar em outros mundos diferentes dos que um determinista social teria programado para nós.
Para que você se convença, ou pelo menos para que perceba o que estou tentando explicar, reflita um pouco no que forçosamente você sente — a bem da verdade, nós todos, sempre que fazemos o menor julgamento de valor. Como todos nós, sem dúvida, você não pode deixar de pensar, para tomar um exemplo entre mil outros possíveis, que os militares que ordenaram o massacre dos muçulmanos bósnios em Srebrenica são verdadeiros canalhas. Antes de matá-los, eles se divertiram amedrontando-os, dando tiros de metralhadora em suas pernas, obrigando-os a correr antes de abatê-los. Às vezes, eles lhes cortaram as orelhas, torturaram-nos antes de matá-los. Em resumo, não vejo como dizer ou pensar de outro modo, a não ser com palavras como a que acabo de empregar: são uns canalhas.
Mas, quando digo isso, e você pode tomar qualquer outro exemplo, à vontade, é evidentemente porque suponho que, enquanto seres humanos, eles poderiam ter agido de outro modo, eles possuíam liberdade de escolha. Se os generais sérvios fossem ursos ou lobos, eu não faria nenhum julgamento de valor. Eu me contentaria em lamentar o massacre dos inocentes por animais selvagens, e não me viria à cabeça a ideia de julgá-los de um ponto de vista moral. Faço isso justamente porque os generais não são animais, e sim humanos aos quais atribuo a capacidade de escolher entre possibilidades.
Poderíamos, é certo, a partir de um ponto de vista materialista, dizer que esses julgamentos de valor são ilusões. Poderíamos fazer-lhes a “genealogia”, mostrar de onde vêm, como são determinados por nossa história, nosso meio, nossa educação etc. O problema é que nunca encontrei ninguém, materialista ou não, que fosse capaz de evitá-los. Ao contrário, até; a literatura materialista está cheia, como nenhuma outra, de uma incrível profusão de condenações diversas e variadas. Começando por Marx e Nietzsche, os materialistas não se abstêm nunca de julgar permanentemente a deus e o mundo, de pronunciar sentenças morais das quais, no entanto, sua filosofia deveria abster-se. Por quê? Simplesmente porque, mesmo sem perceberem, eles continuam na vida corrente a atribuir aos seres humanos uma liberdade que eles lhes negam na teoria filosófica — de modo que poderíamos chegar a pensar que a ilusão reside, provavelmente, menos na liberdade do que no próprio materialismo, já que seu ponto de vista se revela insustentável.
Para além da esfera moral, todos os julgamentos de valor, até o menor entre eles — uma observação sobre um filme que o agradou, uma música que o emocionou, sei lá mais o quê —, supõem que você se pense livre, que você se represente como falando livremente e não como um ser transpassado por forças inconscientes que falariam por seu intermédio sem que você percebesse.
Em que acreditar, então? Em você mesmo, quando se pensa livre, o que faz implicitamente todas as vezes que emite um julgamento? Ou no materialismo, que afirma (livremente?) que você não o é — mas que não deixa de enunciar, assim que a ocasião se apresenta, julgamentos de valor que supõem sua própria liberdade? Cabe a você escolher...
Quanto a mim, prefiro, em todo caso, não me contradizer continuamente e, para isso, postular, embora ela seja de fato misteriosa — como a vida, como a própria existência —, uma faculdade de desenraizamento da natureza e da história, essa faculdade que Rousseau e Kant chamavam de liberdade ou perfectibilidade, que se encontra em situação de transcendência em relação aos códigos nos quais o materialismo gostaria de nos prender.
Acrescentaria até, para completar e compreender o simples fenômeno do julgamento de valor que acabo de citar, que existe não somente transcendência da liberdade, por assim dizer, em nós, mas também valores fora de nós: não somos nós que inventamos os valores que nos guiam e nos animam, não inventamos, por exemplo, a beleza da natureza e o poder do amor.
Entenda o que estou dizendo: não afirmo absolutamente que temos “necessidade” de transcendência, como um pensamento meio bobo se compraz em proclamar atualmente — acrescentando naturalmente que se tem “necessidade de sentido”, ou “necessidade de Deus”. Essas fórmulas são calamitosas, pois se voltam imediatamente contra quem as utiliza: não é porque temos necessidade de uma coisa que ela é verdadeira. Ao contrário, há fortes possibilidades de que a necessidade nos leve a inventá-la e, em seguida, a defendê-la, mesmo por má-fé, porque nos apegamos a ela. A necessidade de Deus, segundo esse ponto de vista, é a maior objeção que faço a ele.
Não afirmo, de modo algum, que temos “necessidade” da transcendência dos valores. Digo, o que é muito diferente, que não podemos dispensá-la, que não podemos nos pensar por nós mesmos, nem nossas relações com os valores, sem a hipótese da transcendência. É uma necessidade lógica, uma exigência racional, não uma aspiração ou um desejo. Não se trata, nesse debate, de nosso conforto, mas de nossa relação com a verdade. Ou, para formular a ideia em outros termos: se não me deixo convencer pelo materialismo, não é porque ele me pareça desconfortável, muito pelo contrário. Como, aliás, Nietzsche afirmou, a doutrina do amor fati é fonte de um reconforto sem igual, motivo de uma infinita serenidade. Se me sinto obrigado a ultrapassar o materialismo para tentar ir mais longe, é porque o considero “impensável”, no sentido literal, por demais cheio de contradições lógicas para que eu possa nele me instalar intelectualmente.
Para formular mais uma vez o princípio dessas contradições, eu lhe diria apenas que a cruz do materialismo é que ele jamais consegue pensar seu próprio pensamento. A fórmula pode parecer difícil; no entanto, significa algo de muito simples. O materialismo diz, por exemplo, que não somos livres, mas está convencido, é claro, de que afirma tal coisa livremente, que ninguém o obriga de fato a fazê-lo, nem seus pais, nem seu meio social, nem sua natureza biológica. Ele diz que somos inteiramente determinados por nossa história, mas não deixa de nos convidar a nos emancipar dela, a mudá-la, a, se possível, fazer a revolução! Ele diz que é preciso amar o mundo tal como ele é, reconciliar-se com ele, fugir do passado e do futuro para viver no presente, mas, como eu e você quando o presente nos pesa, não deixa de tentar mudá-lo na esperança de um mundo melhor. Em resumo, o materialismo anuncia teses filosóficas profundas, mas sempre para os outros, nunca para ele mesmo. Ele está sempre introduzindo transcendência, liberdade, projeto, ideal, pois, na verdade, ele não pode se acreditar livre e requisitado por valores superiores à natureza e à história.
Donde a questão fundamental do humanismo contemporâneo: como pensar a transcendência sob suas duas formas, em nós (a da liberdade) e fora de nós (a dos valores), sem ficar sujeito à genealogia e à desconstrução materialistas? Ou ainda — é a mesma questão formulada de outra forma —, como pensar um humanismo que esteja, por fim, desembaraçado das ilusões metafísicas que ele ainda carregava consigo na origem, por ocasião do nascimento da filosofia moderna?
Como você deve ter entendido, é esse o meu programa filosófico, pelo menos aquele em que me reconheço plenamente, e sobre o qual gostaria de dizer algumas palavras para terminar.
Contrariamente ao materialismo, ao qual se opõe diametralmente, o humanismo pós-nietzschiano que tenho em mente aqui — cuja longa tradição mergulha as raízes no pensamento de Kant e desabrocha com um de seus maiores discípulos, Husserl, que escreveu a parte fundamental de sua obra no início do século passado — reabilita a noção de transcendência. Mas lhe oferece, no plano teórico especialmente, um significado novo que gostaria que você entendesse. Porque é por essa novidade que vai ser possível escapar às críticas vindas do materialismo contemporâneo e se situar, assim, no espaço de pensamento não “pré”, mas “pós” nietzschiano.
Com efeito, podemos distinguir três grandes concepções da transcendência. Você vai reconhecê-las sem dificuldade, pois, embora não as tendo nomeado, já tivemos a oportunidade de encontrá-las pelo caminho.
A primeira é a que os Antigos já mobilizavam para descrever o cosmos. Fundamentalmente, o pensamento grego é um pensamento da imanência, já que a ordem perfeita não é um ideal, um modelo que se situaria em outro lugar a não ser no universo, mas ao contrário, uma característica totalmente encarnada nele. Como você se lembra, o divino dos estoicos, diferentemente do Deus dos cristãos, não é um Ser exterior ao mundo, mas, por assim dizer, sua própria ordem, visto que é perfeito. No entanto, como eu já havia assinalado de passagem, podemos dizer que a ordem harmoniosa do cosmos não deixa de ser transcendente em relação aos humanos, no sentido exato em que eles nem o criaram nem o inventaram. Eles o descobrem, ao contrário, como um dado exterior e superior a eles. A palavra “transcendente” deve ser entendida aqui em relação à humanidade. Ela designa uma realidade que ultrapassa os homens, mas se situa no universo. A transcendência não está no céu, mas na Terra.
Uma segunda concepção da transcendência, inteiramente diferente e até mesmo oposta à primeira, aplica-se ao Deus dos grandes monoteístas. Ela designa simplesmente o fato de que o Ser supremo é, ao contrário do divino dos gregos, “além” do mundo criado por ele, quer dizer, ao mesmo tempo exterior e superior ao conjunto da criação. Contrariamente ao divino dos estoicos, que se confunde com a harmonia natural e, consequentemente, não se situa fora dela, o Deus dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos é totalmente “supranatural”. Trata-se, no caso, de uma transcendência que não se situa apenas em relação à humanidade, como a dos gregos, mas também ao próprio universo concebido inteiramente como uma criação cuja existência depende de um Ser exterior a ela.
Mas uma terceira forma de transcendência, diferente das duas primeiras, pode ainda ser pensada. Ela já fixa raízes no pensamento de Kant, em seguida caminha até nós por intermédio da fenomenologia de Husserl. Trata-se do que Husserl, que gostava bastante do jargão filosófico, chamava de “transcendência na imanência”. A fórmula não é muito eloquente, mas encobre uma ideia de grande profundidade.
Eis como, segundo contam, o próprio Husserl gostava de explicar a seus alunos — pois, como muitos grandes filósofos, Kant, Hegel, Heidegger, que foi seu aluno, e tantos outros, ele era antes de tudo um grande professor.
Husserl tomava de um cubo — ou um paralelepípedo retangular, pouco importa —, por exemplo, uma caixa de fósforos, e o mostrava aos alunos fazendo-os observar o seguinte: não importando a maneira como se mostrasse o cubo em questão, não veríamos nunca mais que três faces ao mesmo tempo, embora ele tivesse seis.
E daí?, você me dirá. O que isso significa e o que se pode concluir no plano filosófico? Antes de tudo, o seguinte: não há onisciência, não há saber absoluto, pois todo visível (no caso, o visível é simbolizado pelas três faces expostas do cubo) se apresenta sempre sobre um fundo de invisível (as três faces escondidas). Em outras palavras, toda presença supõe uma ausência, toda imanência, uma transcendência escondida, toda doação de objeto, alguma coisa que se tira.
É preciso compreender a ousadia desse exemplo, que é apenas metafórico. Ele significa que a transcendência não é um novo “ídolo”, uma invenção de metafísico ou de crente, a ficção, uma vez mais, de um além que serviria para depreciar o real em nome de um ideal, mas um fato, uma constatação, uma dimensão incontestável da existência humana inscrita no centro mesmo do real. É nisso que a transcendência, ou melhor, essa transcendência, não poderia ser derrubada pelos ataques das críticas clássicas feitas por materialistas ou por diferentes adeptos da desconstrução. Nesse sentido, ela é certamente não metafísica e pós-nietzschiana.
Para melhor delimitar esse novo pensamento da transcendência, antes de apresentar alguns exemplos concretos, um bom meio consiste em refletir, como sugere Husserl, sobre a noção de horizonte. De fato, quando você abre os olhos para o mundo, os objetos aparecem sempre sobre um fundo, e esse mesmo fundo, à medida que você penetra no universo que nos cerca, desloca-se continuamente, como acontece com o horizonte, para um navegador, sem nunca se fechar para constituir um fundo último e intransponível.
Assim, de fundo em fundo, de horizonte em horizonte, você jamais consegue capturar nada que possa considerar como uma entidade última, um Ser supremo ou uma causa primeira que garanta a existência do real em que mergulhamos. E é nisso que existe transcendência, alguma coisa que nos escapa sempre no seio daquilo que nos é dado, que vemos e tocamos, logo, no seio mesmo da imanência.
Por isso, a noção de horizonte, em virtude de sua mobilidade infinita, encerra, de algum modo, a de mistério. Como a do cubo, do qual nunca percebo todas as faces ao mesmo tempo, a realidade do mundo nunca me é dada na transparência e no domínio perfeitos, ou, em outras palavras: se nos limitamos à ideia da finitude humana, a ideia, como disse ainda Husserl, de que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, de que toda consciência é, pois, limitada por um mundo exterior a ela e, consequentemente, nesse sentido finita, é preciso admitir que o conhecimento humano não poderia nunca aceder à onisciência, que não pode jamais coincidir com o ponto de vista que os cristãos atribuem a Deus.
É também pela recusa ao fechamento, pela rejeição de todas as formas de “saber absoluto”, que essa transcendência de terceiro tipo se revela como uma “transcendência na imanência”, só ela passível de conferir um significado rigoroso à experiência humana que tenta descrever e considerar o humanismo liberto das ilusões da metafísica. É “em mim”, em meu pensamento ou em minha sensibilidade que a transcendência dos valores se manifesta. Embora situadas em mim (imanência), tudo acontece como se elas se impusessem (transcendência), apesar de tudo, à minha subjetividade, como se viessem de outra parte.
Com efeito, considere os quatro grandes campos nos quais sobressaem valores fundamentais da existência humana: verdade, beleza, justiça e amor. Os quatro, não importa o que diz o materialismo, continuam fundamentalmente transcendentes para o indivíduo singular, para você, para mim e para todos.
Digamos mais simplesmente ainda: não invento nem as verdades matemáticas, nem a beleza de uma obra, nem os imperativos éticos; e, como se diz tão bem, a gente “cai de amores”, e não por escolha deliberada. A transcendência dos valores é, nesse sentido, bem real. Mas é dada na mais concreta experiência, não numa ficção metafísica, não em forma de um ídolo como um “Deus”, o “paraíso”, a “república”, o “socialismo” etc. Podemos propor, a partir daí, uma “fenomenologia”, quer dizer, uma simples descrição que parte de uma necessidade, da consciência de uma impossibilidade de fazer de modo diferente: não adianta, 2 + 2 são 4, e isso não é questão de gosto ou de escolha subjetiva. É algo que se impõe a mim como se viesse de outro lugar e, no entanto, é em mim que essa transcendência está presente, quase palpável.
Mas, do mesmo modo, a beleza de uma paisagem ou de uma música “cai” literalmente sobre mim, me arrebata, quer queira quer não. Também não estou convencido de que eu “escolha” os valores morais, que eu decida, por exemplo, ser antirracista: a verdade, de preferência, é que não posso pensar diferentemente, e que a ideia de humanidade se impõe a mim com as noções de justiça e de injustiça que ela carrega.
Há mesmo uma transcendência dos valores, e é essa abertura que o humanismo não metafísico, contrariamente ao materialismo que pretende tudo explicar e tudo reduzir, quer assumir — sem, aliás, nunca alcançar. Não por impotência, mas por lucidez, porque a experiência é incontestável, e nenhum materialismo consegue verdadeiramente dar conta dela.
Há, pois, transcendência.
Mas por que “na imanência”?
Simplesmente porque, desse ponto de vista, os valores não são mais impostos a nós em nome de argumentos de autoridade, nem deduzidos de alguma ficção metafísica ou teológica. Certamente descubro, não invento a verdade de uma proposição matemática, tanto quanto não invento a beleza do oceano ou a legitimidade dos direitos do homem. Todavia, é em mim, e não em outro lugar, que elas se revelam. Não há mais céu das ideias metafísicas, não há mais Deus, ou, pelo menos, não sou obrigado a acreditar nele para aceitar a ideia de que me encontro diante de valores que ao mesmo tempo me ultrapassam e, contudo, não estão em nenhum outro lugar, visíveis apenas no interior de minha própria consciência.
Tomemos mais um exemplo. Quando “caio” de amores, não há dúvida de que, a menos que eu seja Narciso, estou mesmo seduzido por um ser exterior a mim, por uma pessoa que me escapa e até porque, além do mais, sou muitas vezes dependente dela. Há, pois, nesse sentido, transcendência. Mas é claro também que essa transcendência do outro é em mim que sinto. Mais ainda: ela se situa naquilo que, dentro de mim, é o mais íntimo na esfera do sentimento, ou, como se diz, do “coração”. Não se poderia encontrar metáfora mais bonita da imanência do que essa imagem do coração. Este é, por excelência, ao mesmo tempo o lugar da transcendência — do amor do outro como irredutível a mim — e da imanência do sentimento amoroso ao que minha pessoa tem de mais íntimo. Transcendência na imanência, portanto.
Onde o materialismo quer a qualquer custo reduzir o sentimento de transcendência às realidades materiais que o engendraram, um humanismo, liberto das ingenuidades ainda presentes na filosofia moderna, prefere se entregar a uma descrição bruta, uma descrição que não contém preconceitos, uma “fenomenologia” da transcendência tal como se instalou no interior de minha subjetividade.
Eis também por que a theoria humanista vai se revelar, por excelência, uma teoria do conhecimento centrado na consciência de si ou, para usar a linguagem da filosofia contemporânea, na “autorreflexão”. Ao contrário do materialismo, sobre o qual lhe disse por que ele nunca consegue pensar seu próprio pensamento, o humanismo contemporâneo vai fazer de tudo para tentar refletir sobre o significado de suas próprias afirmações, para tomar consciência delas, criticá-las, avaliá-las. O espírito crítico que caracterizava a filosofia moderna a partir de Descartes vai dar um passo além: em vez de se aplicar apenas aos outros, ele vai finalmente aplicar-se a si mesmo.
Sobre a theoria como autorreflexão
Poderíamos ainda aí distinguir três idades do conhecimento.
A primeira corresponde à theoria grega. Contemplação da ordem divina do mundo, compreensão da estrutura do cosmos, ela não é, como vimos, um conhecimento indiferente aos valores ou, para utilizar a linguagem de Max Weber, o maior sociólogo alemão do século XIX, ela não é “axiologicamente neutra” — o que significa “objetiva”, desinteressada ou desprovida de prevenção. Como vimos no estoicismo, conhecimento e valores estão intrinsecamente ligados, no sentido de que a descoberta da natureza cósmica do universo implica a demonstração de algumas finalidades morais para a existência humana.
A segunda surge com a revolução científica moderna que assiste à emergência, contrariamente ao mundo grego, da ideia de um conhecimento radicalmente indiferente à questão dos valores. Aos olhos dos Modernos, não apenas a natureza não nos indica mais nada no plano ético — ela não é mais modelo para os homens —, mas, além disso, a ciência autêntica deve ser absolutamente neutra no que diz respeito a valores, sob pena de ser partidária e de faltar com objetividade. Em outros termos: a ciência deve descrever o que é; ela não pode indicar o que deve ser, o que devemos moralmente fazer ou não fazer. Como se diz no jargão filosófico e jurídico, ela não possui, enquanto tal, nenhum alcance normativo. O biólogo, por exemplo, pode muito bem demonstrar que é ruim para a saúde fumar e, nesse ponto, ele tem razão, sem a menor dúvida. Em compensação, à pergunta sobre se, do ponto de vista moral, o fato de fumar é ou não um erro, se, consequentemente, parar de fumar é um dever ético, ele nada tem a nos dizer. Cabe a nós decidir, em função de valores que não são mais científicos. Nessa perspectiva, que designamos geralmente como “positivismo” e que domina amplamente os séculos XVIII e XIX, a ciência se interroga menos sobre si mesma, porque busca mais conhecer o mundo tal como ele é.
Não podemos interromper nesse ponto: a crítica não pode valer apenas para os outros. É preciso que um dia, nem que seja por fidelidade a seus próprios princípios, ela evite ficar de lado. É preciso que o pensamento crítico faça autocrítica, o que os filósofos modernos começam a perceber, mas que Nietzsche e os grandes materialistas paradoxalmente se recusam a fazer. O genealogista, o desconstrucionista, faz maravilhas quando se trata de furar os balões da metafísica e da religião, quando se trata de quebrar com o martelo seus ídolos, mas, em se tratando dele mesmo, não há nada a fazer. Sua aversão pela autocrítica, pela autorreflexão, é, por assim dizer, constitutiva de seu olhar sobre o mundo. Sua lucidez é admirável quando se trata dos outros, mas ele é completamente cego quando se trata de si mesmo.
Uma terceira etapa vem questionar tudo de novo, mas ao mesmo tempo completar a segunda: a da autocrítica ou da autorreflexão que caracteriza no mais alto grau o humanismo contemporâneo e pós-nietzschiano. Ela só aparece, de fato, após a Segunda Guerra Mundial, quando começamos a nos interrogar sobre os malefícios potenciais de uma ciência de algum modo responsável pelos terríveis crimes de guerra, representados pelo lançamento de duas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Continuará em todos os campos onde as consequências da ciência podem ter implicações morais e políticas, notadamente no campo da ecologia e da bioética.
Podemos dizer, desse ponto de vista, que, na segunda metade do século XX, a ciência deixa de ser essencialmente dogmática e autoritária para começar a aplicar a si mesma seus próprios princípios, os do espírito crítico e da reflexão — os quais, de imediato, se tornam “autocrítica” e “autorreflexão”. Físicos se interrogam sobre os perigos potenciais do átomo, sobre os possíveis malefícios do efeito estufa; biólogos se perguntam se os organismos geneticamente modificados não apresentam risco para a humanidade, se as técnicas de clonagem são moralmente lícitas, e outras tantas questões da mesma ordem que comprovam uma mudança completa de perspectiva em relação ao século XIX. A ciência não tem mais certeza de si mesma e, dominadora, aprende lentamente, mas com segurança, a se questionar.
Daí também o formidável impulso, ao longo do século XX, das ciências históricas. A história, com certeza, se torna a rainha das “ciências humanas”, e nesse ponto é também útil refletirmos um pouco sobre o significado do crescimento de poder dessa maravilhosa disciplina. A causa de seu incrível sucesso tem para mim uma explicação nesse contexto. Tomando a psicanálise como modelo, ela nos promete que é dominando cada vez mais nosso passado e praticando a autorreflexão em altas doses que vamos compreender melhor nosso presente e melhor orientar o futuro.
Assim, as ciências históricas, em sentido lato, incluindo toda uma parte das ciências sociais, enraízam-se, de modo mais ou menos consciente, na convicção de que a história pesa mais em nossas vidas quando a ignoramos. Conhecer sua história é, consequentemente, trabalhar para a própria emancipação, de modo que o ideal democrático da liberdade de pensamento e da autonomia não possa evitar uma passagem pelo conhecimento histórico, nem que seja para abordar o presente com menos preconceito.
Aproveito para observar que é isso também que explica o erro dominante segundo o qual a filosofia seria inteiramente dedicada à autorreflexão e à crítica. Há, como você vê, um pouco de verdade nesse erro: de fato, a theoria moderna entrou mesmo na idade da autorreflexão. O erro seria simplesmente deduzir que a filosofia deveria ficar nisso, como se, a partir daí, a theoria fosse sua única e exclusiva dimensão, como se a problemática da salvação, em especial, devesse ser abandonada.
Vou lhe mostrar daqui a pouco que não se trata disso, que ela permanece mais do que nunca atual, desde que aceitemos pensar em termos que não pertençam mais ao passado.
Vejamos antes como, na perspectiva de um humanismo não metafísico, a moral moderna se enriquece com novas dimensões.
(continua)