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Está bastante claro que quando a população pressiona mais e mais fortemente as fontes de recursos, a situação econômica tende a tornar-se mais e mais precária. E como há, nas situações precárias, uma tendência para o governo centralizado assumir mais e mais controle, existe por isso uma tendência para formas totalitaristas de governo, o que certamente nós, do Ocidente, consideramos muito indesejável. Mas se perguntarem se a democracia é possível numa população em que dois terços das pessoas vivem de duas mil calorias diárias, e um terço vive com mais de três mil, a resposta será não, porque as pessoas que vivem com menos de duas mil calorias simplesmente não terão bastante energia para participar da vida política do seu país e por isso serão governadas pelas bem nutridas e cheias de energia. Mais uma vez, a quantidade age contra a qualidade.
Outro resultado para mim muito perturbador e doloroso da quantidade afetando a qualidade na vida humana é que massas cada vez maiores de pessoas vivem confinadas em cidades gigantescas e que por isso mais e mais pessoas vivem sem contato com o ambiente natural, sendo, ao contrário, rodeadas por um ambiente intoleravelmente lúgubre e sórdido. Pensando nisso veremos que provavelmente nunca houve uma cidade bela com mais de dois ou três mil habitantes, porque uma cidade bela é bela em relação ao ambiente natural que a cerca. Podemos ter cidades com magníficas áreas centrais, como Washington; mas quando saímos das áreas centrais, não podemos dizer que Washington seja muito bonita, porque andamos por quilômetros quadrados de cortiços extraordinariamente sombrios e áreas residenciais de classe média de segunda categoria. O mesmo acontece em relação a outras cidades ainda bem maiores, como Nova York, Londres e Tóquio. Há quilômetros e quilômetros de assustadora miséria, onde as crianças jamais vêem um só objeto natural, mas apenas feios objetos produzidos pelo homem. Essa situação é uma chaga no mundo atual, e até onde posso ver se tornará muito pior. Não posso evitar de sentir que é um estado de coisas muito prejudicial ao espírito humano.
Outro resultado para mim muito perturbador e doloroso da quantidade afetando a qualidade na vida humana é que massas cada vez maiores de pessoas vivem confinadas em cidades gigantescas e que por isso mais e mais pessoas vivem sem contato com o ambiente natural, sendo, ao contrário, rodeadas por um ambiente intoleravelmente lúgubre e sórdido. Pensando nisso veremos que provavelmente nunca houve uma cidade bela com mais de dois ou três mil habitantes, porque uma cidade bela é bela em relação ao ambiente natural que a cerca. Podemos ter cidades com magníficas áreas centrais, como Washington; mas quando saímos das áreas centrais, não podemos dizer que Washington seja muito bonita, porque andamos por quilômetros quadrados de cortiços extraordinariamente sombrios e áreas residenciais de classe média de segunda categoria. O mesmo acontece em relação a outras cidades ainda bem maiores, como Nova York, Londres e Tóquio. Há quilômetros e quilômetros de assustadora miséria, onde as crianças jamais vêem um só objeto natural, mas apenas feios objetos produzidos pelo homem. Essa situação é uma chaga no mundo atual, e até onde posso ver se tornará muito pior. Não posso evitar de sentir que é um estado de coisas muito prejudicial ao espírito humano. Por fim, o crescimento ilimitado da população praticamente garante que nossos recursos planetários serão destruídos, e que em cem ou duzentos anos uma espécie humana imensamente hipertrofiada terá se tornado um tipo de câncer neste planeta, arruinando o semi-organismo em que vivemos. É uma previsão muito deprimente. Penso que, desse último ponto de vista, podemos dizer que o problema de quantidade e qualidade é realmente uma questão religiosa. Pois, afinal, o que é a religião senão uma preocupação com o destino do indivíduo e com o destino da sociedade e da raça em geral? Isso está muito bem colocado nos Evangelhos, quando nos dizem que o Reino de Deus está dentro de nós, mas ao mesmo tempo devemos contribuir para que se funde o Reino de Deus na Terra. Não podemos negligenciar nenhum desses dois aspectos do destino humano, pois se negligenciarmos o aspecto populacional, geral e quantitativo do destino, condenaremos a nós próprios ou certamente a nossos filhos e netos como indivíduos. Condená-los-emos a um tipo de vida que nos pareceria intolerável e que certamente eles também acharão intolerável.
Não há objeções teológicas precisas à limitação da população. A maior parte das organizações religiosas do mundo atual, dentro e fora do cristianismo, aceitam-na. Mas a Igreja Católica Romana não admite nenhum método de controle da população, exceto aquele que foi promulgado e permitido em 1932 — o assim chamado método do ciclo mensal. Infelizmente, esse método, experimentado em escala considerável num país subdesenvolvido como. a índia, não se mostrou muito eficaz. O fato de a Igreja reconhecer esse problema foi demonstrado muito claramente em 1954, no primeiro Congresso de População das Nações Unidas, realizado em Roma, quando o falecido papa deixou evidente, numa alocução aos delegados, que o problema da população é muito grave e pediu aos fiéis que se engajassem na luta para resolvê-lo.
Não sei se a presente atitude da Igreja em relação aos métodos do controle de natalidade mudará. Um dos seus principais argumentos contra os métodos atualmente em uso, e possivelmente outros futuros, é que são "antinatu-rais". Precisamente o mesmo argumento foi usado na Idade Média, até 1515, contra o interesse financeiro. O argumento baseava-se em afirmações de Aristóteles de que o dinheiro é algo estéril e não tem direito de se multiplicar. Uma alusão a isso encontra-se no Mercador de Veneza, onde Antônio, falando com Shylock, menciona o "metal estéril" que dá cria e pergunta: "Ou o seu ouro e sua prata são ovelhas e carneiros?"1 Que as criaturas vivas procriassem era certo, mas era errado que o dinheiro se multiplicasse. Essa posição modificou-se gradualmente; a última mudança aconteceu no Concilio de Latrão, em 1515. Não sei se uma mudança similar acontecerá na posição quanto aos métodos "antina-turais" de controle de natalidade. Seja como for, todo mundo concorda em princípio que a superpopulação é um grande perigo, e agora as diferenças são apenas questão de opinião.
Podemos, pois, concluir dizendo que a superpopulação é um dos maiores problemas com que nos defrontamos e que a opção que nos resta é ou deixar o problema ser resolvido pela natureza, da maneira mais pavorosa possível, ou encontrar algum método humano e inteligente de resolvê-lo, aumentando ao mesmo tempo a produção e controlando a taxa de natalidade e a de mortalidade, e, de um modo ou outro, formar uma orientação política internacional comum sobre o assunto. Para mim, os mais importantes pré-requisitos para essa solução são, primeiramente, consciência do problema; depois, compreensão de que esse é um problema profundamente religioso, um problema do destino humano. Nossa esperança é, como sempre, que sejamos realisticamente idealistas.
(Aldous Huxley - A Situação Humana)
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A fome e a guerra não obedecem a qualquer lei natural, são criações humanas |