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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Os perigos da possessividade
A grande deusa anatólia da terra, Cibele, criadora de todos os reinos da natureza, teve um filho a quem chamou Átis. Desde o momento em que ele nasceu, a deusa ficou extasiada com sua beleza e graça, e não havia nada que não fizesse para deixá-lo feliz. À medida que ele foi crescendo, o amor de Cibele aprofundou-se em todos os níveis e, quando Átis chegou à idade adulta, ela tomou posse também dessa virilidade e se tornou sua amante. Além disso, fez dele sacerdote de seu culto e o prendeu a um juramento de fidelidade absoluta. E assim viviam os dois, fechados num mundo paradisíaco, onde nada podia macular a perfeição desse laço.
Mas era impossível manter Átis afastado do mundo para sempre, e um de seus maiores prazeres era perambular pelos montes. Um dia, quando descansava sob a copa de um enorme pinheiro, Átis ergueu os olhos e avistou uma bela ninfa; imediatamente, apaixonou-se e deitou-se com ela. Porém, não se podia esconder nada de Cibele, e quando ela soube que seu filho-amante fora infiel, teve um terrível acesso de ciúmes. Fez Átis entrar num transe delirante e, em sua loucura, ele se castrou, para garantir que nunca mais tornasse a quebrar seu juramento de fidelidade. Ao se recobrar do delírio, estava mortalmente ferido, e sangrou até a morte nos braços de Cibele, sob o mesmo pinheiro em cuja sombra se havia deitado com sua ninfa. Entretanto, como Átis era um deus, sua morte não foi definitiva: a cada primavera o jovem renasce para sua mãe e passa com ela o tempo rico e fecundo do verão; e a cada inverno, quando o Sol chega a seu ponto mais distante, ele torna a morrer, e a deusa da terra chora até que finalmente chegue a primavera seguinte.
COMENTÁRIO: O incesto entre Cibele e Átis não precisa ser interpretado literalmente. O laço intenso entre mãe e filho constrói-se a partir de muitos sentimentos — sensuais, afetivos e espirituais —, e não é incomum nem patológico a mãe olhar seu bebê recém-nascido e considerá-lo belo. Tampouco é incomum ou patológico que o laço entre mãe e filho tenha repercussões mais tarde, quando o rapaz ou a moça buscam nos braços da pessoa amada certas qualidades e respostas afetivas semelhantes às experimentadas no começo da vida. A maioria dos relacionamentos amorosos tem componentes de proteção e dependência; a questão, no final das contas, é se também há espaço na relação para a igualdade e a distinção entre os parceiros. A tragédia desse mito está no desejo de Cibele de deter a posse absoluta do amado. Embora isso também não seja incomum, tanto nos relacionamentos adultos quanto na relação mãefilho, as consequências psicológicas podem ser profundamente destrutivas, quando a possessividade não é reconhecida e refreada.
Cibele não permite que Átis seja um parceiro em igualdade de condições. Quer prendê-lo unicamente a si, como alguém profundamente dependente e incapaz de ter vida própria longe dela. Podemos ver ecos desse padrão em todo relacionamento em que um dos parceiros — homem ou mulher — ressente-se dos amigos e interesses independentes do outro. Pode haver ciúme da dedicação do parceiro ao trabalho ou a atividades criativas, e pode até haver ressentimento quando o parceiro se recolhe a seus próprios pensamentos. Isso não é relacionamento, mas posse. Tal possessividade absoluta provém, invariavelmente, da profunda insegurança que faz o indivíduo se sentir ameaçado por qualquer sinal de separação nesse vínculo. E essa insegurança profunda pode evocar sentimentos intensamente destrutivos — especialmente quando a pessoa insegura, como Cibele, não tem mais nada na vida além do amado.
A vingança de Cibele pela infidelidade de Átis — infidelidade que é, em essência, uma tentativa dele de criar uma identidade masculina independente — consiste em levá-lo à autocastração. Essa é uma imagem assustadora e brutal, que, felizmente, costuma se restringir ao mundo dos mitos. Mas há níveis mais sutis de autocastração que podem ocorrer na vida cotidiana. Quando alguém procura minar a independência do parceiro pela chantagem emocional, esse homem ou mulher tenta, na verdade, castrar a potência do parceiro na vida; e quando o parceiro compactua com isso, por medo de perder o relacionamento, a autocastração de Átis concretiza-se no plano psicológico.
A loucura de Átis pode ser vislumbrada na confusão afetiva que a manipulação psicológica é capaz de criar, ao ser imposta a qualquer indivíduo que não tenha consciência ou maturidade afetiva suficientes para perceber o que está acontecendo. Impor sentimentos de culpa, criticar, negar-se ao outro em termos afetivos e sexuais, num jogo de poder, e isolar o parceiro, mediante uma interferência sutil em suas amizades e interesses externos: tudo isso são métodos pelos quais as Cibeles de hoje, homens ou mulheres, levam seus parceiros a um estado de insegurança e dúvida a seu próprio respeito.
Paixão intensa e insegurança são uma mistura nociva, pois dela brota o tipo de amor possessivo que é claramente ilustrado por esse mito sombrio. Talvez a insegurança tenha que existir dos dois lados, pois, de outro modo, Átis se libertaria e buscaria uma vida nova. Cibele tem o poder de enlouquecê-lo porque o rapaz tem uma necessidade absoluta dela; Átis ainda é um bebê no plano psicológico, não suportando separar-se da mãe. A dependência que sente é a de um filho em relação aos pais. Quando levamos esses sentimentos intensos de dependência para as relações adultas, estamos abrindo as portas para enormes sofrimentos. A menos que saibamos lidar com a separação, não conseguimos resistir às tentativas de manipulação e aprisionamento de outra pessoa, nem conseguimos nos abster de manipular e aprisionar os outros, para mantê-los junto de nós. Presos nessa rede, não conseguimos viver plenamente a vida e temos de abrir mão do poder de moldar nosso destino, por medo de ficarmos sós. Nem Cibele nem Átis suportam o desafio humano fundamental da existência afetiva independente. Por isso, não podem se tornar amantes que realmente respeitam e valorizam a alteridade do outro; condenam-se a um estado psicológico de fusão, que resulta numa repetição cíclica de traição, mágoa, confusão e autodestrutividade. Esse mito nos ensina que não é apenas a paixão que desencadeia a tragédia, mas a mistura doentia de paixão e incapacidade de existir como um ser humano separado.
(Liz Greene, Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)