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Neste capítulo inicial de Além do bem e do mal (1886), Nietzsche retoma algumas das questões discutidas em “Sobre a verdade e a mentira em um sentido extramoral”, usando seu estilo iconoclasta contra alguns dos conceitos tradicionais da filosofia introduzidos pelos “grandes filósofos” como Descartes (o cogito) e Kant (os juízos sintéticos a priori). Ao ironizar a importância desses conceitos nos sistemas desses filósofos, procura mostrar que não resistiriam a um questionamento mais agudo, consistindo, no fundo, em meros postulados e não em verdades profundas sobre o ser humano ou a natureza do pensamento.

"2. Como poderia algo nascer do seu oposto? Por exemplo, a verdade do erro? Ou a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do egoísmo ou a pura e radiante contemplação do sábio da concupiscência? Semelhante gênese é impossível; quem com ela sonha é um tolo, ou algo pior; as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja outra, própria — não podem derivar desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo, desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’ — nisso, e em nada mais, deve estar sua causa!” — Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença” que eles procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de “verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores. Nem aos mais cuidadosos dentre eles ocorreu duvidar aqui, no limiar, onde mais era necessário: mesmo quando haviam jurado para si próprios de omnibus dubitandum [de tudo duvidar]. Pois pode-se duvidar, primeiro, que existam absolutamente opostos; segundo, que as valorações e oposições de valor populares, nas quais os metafísicos imprimiram seu selo, sejam mais que avaliações-de-fachada, perspectivas provisórias, talvez inclusive vistas de um ângulo, de baixo para cima talvez, “perspectivas de rã”, para usar uma expressão familiar aos pintores. Com todo o valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente em serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais, a essas coisas ruins e aparentemente opostas. Talvez! — Mas quem se mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos “talvez”? Para isso será preciso esperar o advento de uma nova espécie de filósofos, que tenham gosto e pendor diversos, contrários aos daqueles que até agora existiam — filósofos do perigoso “talvez” a todo custo. — E, falando com toda a seriedade: eu vejo esses filósofos surgirem.
4. A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez nesse ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais os juízos sintéticos a priori) nos são os mais indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver — que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida, negar a vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal."

(Danilo Macondes - Textos Básicos de Filosofia)

publicado às 22:10



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