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“As crianças do futuro precisam ter mente aberta. O lar deve parar de advogar causas éticas ou crenças religiosas através de sorrisos ou olhares severos, carícias ou ameaças. Deve-se ensinar às crianças como pensar, e não o que pensar [...]”

— Margaret Mead (1901-1978)

 

Em 1925, uma jovem estudante de graduação em Antropologia, Margaret Mead, embarcou para a ilha de Tau, na Samoa americana, a fim de testar uma hipótese deveras interessante: se a rebelião, o tumulto e a angústia tipicamente adolescentes eram naturais ou culturais. Mead publicou suas descobertas em 1928, somando-as à pilha crescente de confusão que já incluía o livro O eixo da civilização (1922), de Margaret Sanger, e toda a sua fé no poder libertador de nossas glândulas sexuais; o Minha luta (1925), de Adolf Hitler, e sua identificação dos judeus como o maior problema para o progresso genético do mundo; e O futuro de uma ilusão (1927), de Freud, e suas declarações de que nós somos selvagens amorais por natureza e de que a moralidade é apenas uma série de tabus erigidos pelo homem em nome da religião (que é, em si, uma ilusão). O período entre-guerras foi mesmo um bom momento para os livros ruins, que contribuiu imensamente para aumentar o arcabouço de pseudociências do Ocidente. A contribuição de Mead foi impingir aos pobres samoanos polinésios a sua própria visão de um paraíso sexual radiante em Adolescência, sexo e cultura em Samoa.

O modus operandi que Mead adota – o de recolher alguns “fatos” de mitos originários e encaixá-los nos próprios devaneios filosóficos –, como já vimos, tem um pedigree bem conhecido. Hobbes pintou um quadro bem vivo da nossa condição natural baseado inteiramente num desses mitos. Rousseau e Freud fizeram o mesmo. Todos esses autores usaram evidências seletivas ou imaginárias para argumentar que a natureza humana é mais bem compreendida quando vista em seu estado primitivo. Seu pressuposto subjacente pode ser expresso numa fórmula simples: natural = primitivo = bom. Que o selvagem fosse nobre ou tosco, um moleque travesso ou uma besta feroz, fato é que ele era o Adão à cuja imagem foi feita primordialmente a nossa natureza, imagem essa que devemos resgatar e inspecionar, não sem antes esfregar para fora dela os acréscimos da nossa civilização.

Eu digo “Adão” de propósito, já que, como vimos, uma das preocupações da modernidade, especialmente dos seus espíritos mais entregues à secularização, é a tentativa incansável de conjurar um contra-mito ao relato bíblico do Gênesis. Quando Hobbes, Rousseau ou Freud imaginaram o estado pré-civilizado do homem, eles não o fizeram baseando-se em evidências históricas, mas em suposições. Subjacente a essas suposições estava a crença de que o que é melhor é o que é natural e original. Isso é verdadeiro até para Thomas Hobbes, para quem o estado natural era um estado de guerra, porque, por mais que escapemos dessa condição nefasta e rumemos à sociedade civil, ainda assim sempre desejamos que fosse possível fazer ou ter o que quer que queremos.

Margaret Mead realmente tentou achar um exemplo vivo do humano primitivo, mas seu famoso retrato dos samoanos libidinosos e despreocupados era, na verdade, mais uma ficção moderna – e isso seria válido inclusive se os samoanos fossem mesmo da exata forma como ela os descreveu em Adolescência, sexo e cultura em Samoa (suas descobertas são hoje uma questão em debate na academia).

A busca de Mead era falha desde o princípio, porque mesmo que um “povo primitivo” seja libidinoso e despreocupado, não se pode inferir que, simplesmente porque ele aparenta ser mais primitivo, ele está, de algum modo, mais perto do que é natural e bom, e pode, portanto, nos oferecer correções para o nosso próprio estilo de vida. Ele pode ser, ao mesmo tempo, mais primitivo e mais perverso. Sua sociedade pode ter decaído ao invés de ter avançado. O ponto fundamental é: a habilidade técnica é moralmente neutra. Um ladrão é um ladrão, esteja ele armado com um porrete ou com uma AK-47; há bárbaros primitivos e bárbaros sofisticados.

A falácia de se pensar que o primitivo é superior porque é alegadamente mais natural é especialmente perniciosa quando usada da forma como a usa Mead: como um meio para contrabandear uma teoria sofisticada e altamente questionável a respeito da natureza humana. “Eis a minha teoria. Veja, esses nativos conformam-se exatamente à minha teoria. Portanto, minha teoria deve estar correta”.

Devemos ser capazes de ver mais claramente a falácia do trabalho de Mead se traçarmos um paralelo um tanto imaginário com Hobbes, permitindo-o ser um antropólogo viajante por alguns momentos. Hobbes argumentava que o ser humano é amoral por natureza, e que, no estado natural, ele tinha o direito de preservar-se por qualquer meio possível, inclusive o canibalismo. Agora, imagine Hobbes trabalhando em pleno feriado. Ele entra num barco e sai velejando em direção ao Caribe, onde encontra caribenhos antropófagos; aí então escreve Adolescência, sexo e cultura no Caribe, que descreve precisamente uma sociedade primitiva, livre de qualquer náusea em relação à ingestão de seres humanos. Como eles são mais primitivos, então estão mais próximos do estado natural; e como são canibais, eles confirmam que o canibalismo é algo natural. Portanto, declara Hobbes, minha teoria deve ser verdadeira. Os seres humanos são amorais por natureza.

Se quisermos colocar a coisa de um modo mais politicamente correto, essa falácia é uma forma de colonialismo intelectual e cultural imposta sobre os pobres nativos, contra suas vontades, uma tentativa levemente disfarçada de fazê-los úteis, junto dos pós-primitivos, para ainda outra agenda estrangeira ou um programa revolucionário de ponta.

Qual era a agenda de Mead? Aparentemente, ela tinha viajado para a Samoa para descobrir se “a rebelião contra a autoridade, as perplexidades filosóficas, o aflorar do idealismo, o confronto e a luta” eram “dificuldades inerentes à adolescência ou se à adolescência americana”.[ Margaret Mead, Coming of Age in Samoa: A Psychological Study of Primitive Youth for Western Culture. American Museum of Natural History Special Members Edition, 1928, 1973, cap. 1, p. 3 ] Todo o tumulto da adolescência era natural ou era mera coisa de ocidental?

É claro que essa era uma pergunta perfeitamente legítima, apesar de certamente não ser das mais simples, daquelas que uma simples viagem à Polinésia poderia resolver. Mas, mesmo reconhecendo a legitimidade da questão, o famoso parágrafo de abertura do Capítulo 2 deveria fazer soar o alarme de que a autora havia embrulhado uma agenda escondida em sua bagagem:


A vida do dia começa ao amanhecer, ou, se a lua manteve seu brilho até a luz do dia, pode-se ouvir os gritos dos homens jovens antes mesmo do amanhecer, vindos do declive na montanha. Inquietos à noite, povoada de fantasmas, eles gritam vigorosamente uns para os outros enquanto aceleram seu trabalho. Conforme a aurora começa a cair, suave, por entre os telhados marrons, e as palmeiras, esbeltas, destacam-se contra o mar reluzente e sem cor, os amantes esgueiram-se de volta para casa de seus encontros privados, deslizando entre as palmeiras ou pelas sombras das canoas encalhadas, para que a luz então só os encontre onde deveriam ter dormido.[ Ibid., cap. 2, p. 8 ]


Isto parece mais ser uma abertura de uma novela romântica, das mais ardentes, que o início de um livro de pesquisa antropológica, diligentemente concebida e executada. Para ser mais exato, Mead escreveu-a como um romance mesmo, a fim de que sua agenda oculta tivesse o maior apelo popular possível (o que, de fato, aconteceu). Seu objetivo era convencer o Ocidente de que os rigores da moral sexual cristã eram antinaturais, e de que seríamos bem mais felizes sem suas proibições angustiantes.

Em outras palavras, Mead estava usando os samoanos para forçar a sua própria moral sexual, mas isto não era tudo que ela estava tentando forçar. Conforme ela deixa claro em sua conclusão, ela buscava toda uma nova abordagem para a educação, a “Educação para a Escolha”, cuja ênfase essencial era evitar toda ênfase e cuja principal convicção era a de que não havia convicção principal alguma:


A educação [...] ao invés de ser uma defesa especial de uma conduta em particular, uma tentativa desesperada de formar um hábito específico de pensar, que irá se opor a todas as influências exteriores, deve ser uma preparação para essas mesmas influências [...]. [As] crianças do futuro precisam ter mente aberta. O lar deve parar de advogar causas éticas ou crenças religiosas através de sorrisos ou olhares severos, carícias ou ameaças. Deve-se ensinar às crianças como pensar, e não o que pensar. E, porque males antigos morrem devagar, deve-se ensiná-las a tolerância, assim como hoje as ensinam a intolerância. Elas devem aprender que muitos caminhos estão abertos para elas, nenhum está canonizado sobre seus alternativos, e que cabe a elas e somente a elas o fardo da escolha. Livres de qualquer preconceito, desprendidas de qualquer condicionamento que desde cedo familiariza certos padrões, elas devem ver às claras as escolhas que jazem diante delas.[ Ibid., cap. 14, p. 137 ]


Uma “mente aberta”, é claro, para as diferentes posições sexuais; uma “tolerância” para com uma multidão de prazeres sexuais alternativos; isso era o que estava no topo da agenda educacional de Mead. Então como foi que ela espremeu dos samoanos uma orientação dessas? Ela tentou demonstrar que a sociedade samoana era majoritariamente pacífica e livre de tormentos – especialmente da “tempestade de estresse [encontrada] nos adolescentes americanos” – porque as fontes de conflito e ansiedade incorporadas em nossa sociedade estavam majoritariamente ausentes na sociedade samoana. Mead raciocina que, se estavam ausentes na sociedade samoana, portanto, elas não devem ser naturais.

Por exemplo, na sociedade samoana há muito pouco conflito entre pais e filhos, porque as crianças samoanas são cuidadas indiferentemente por seus pais, seus tios, suas tias, seus primos e, em geral, por qualquer pessoa da vila que seja mais velha que elas. Se uma jovem garota não gosta de viver debaixo do mesmo teto com seus pais, ela simplesmente embrulha sua esteirinha e vai morar com outro parente. Se um jovem garoto acha sua mãe muito exigente e seu pai pouco convidativo, ele simplesmente desacampa dali e vai acampar-se na companhia de parentes mais agradáveis. “Nenhuma criança samoana [...] tem de lidar jamais com o sentimento de estar presa. Há sempre algum parente para o qual ela pode fugir”.[ Ibid., cap. 4, p. 24 ]

Mead traça a conclusão de que “seria desejável [para nós] que abrandássemos, ao menos em alguma pouca medida, o papel determinante que os pais representam na vida das crianças”,[ Ibid., cap. 13, p. 119] para aí podermos duplicar o efeito débil que os pais samoanos exercem na vida de suas crianças. Um ótimo efeito advindo do fato de que os samoanos não são tão ligados aos seus pais é que, para eles, não há a “especialização do afeto” (ou seja, o amor intenso e pessoal tipicamente familiar) que se pode ver na modernidade ocidental, com suas “famílias biológicas, minúsculas e encravadas”. Nas nossas famílias “encravadas”, existem “fortes laços entre pais e filhos”, mas na vida tribal samoana, grandiosa e tempestuosa, multifamiliar e não-nuclear, “o lar não domina e distorce a vida da criança” como o faz no Ocidente.[ Ibid., p. 118 ] Os filhos, portanto, não criam laços especiais com seus pais biológicos; como seu afeto se dispersa numa pletora de parentes, ele é correspondentemente fraco em relação a qualquer pessoa. Mead considerava isso um plus. Um amor forte gera conflitos fortes; um amor fraco torna os conflitos leves e escassos.

Um dos tipos mais intensos de amor, é claro, é o amor romântico, que gera todo tipo de sobrecarga emocional, angústia e conflito – jovens perdidamente apaixonados jurando alianças eternas até a morte, suplicantes atormentados implorando pela mão de uma moça, esposas traídas tramando vinganças assassinas. Mas aqui Mead encontra outra “diferença gritante entre a sociedade samoana e a nossa”, a saber, vemos uma “falta de especialização dos sentimentos, e particularmente do desejo sexual, entre os samoanos”.[ Ibid., p. 119 ] “O amor romântico, da forma como ocorre em nossa civilização, inextricavelmente ligado às idéias de monogamia, exclusividade, inveja e inflexível fidelidade, não ocorre em Samoa”.[ Ibid., cap. 7, p. 58 ] E por quê? Porque os samoanos agem de modo bem parecido aos amantes despreocupados de Rousseau em seu estado natural, lançando-se desde cedo, e com freqüência, em “experimentações livres e tranqüilas”.[ Ibid., p. 54 ]

Segundo Mead, muito da energia típica da fase final da adolescência é gasto saltitando “sob as palmeiras”.[ Ibid., p. 50 ] O foco de sua pesquisa antropológica eram as jovens meninas samoanas, que, ao contrário de suas colegas ocidentais, eram completamente livres de qualquer angústia sexual porque eram completamente livres quanto a tudo que se relacionava a sexo. Tolu, Namu e Fala, representantes comuns das meninas adolescentes samoanas, faziam, todas, “encontros casuais com seus amantes e seus contatos eram freqüentes e animados”.[ Ibid., cap. 10, p. 84 ] Elas desviaram da crise ocidental de tormento e estresse sexual tornando-a inteiramente casual, conforme o relato de Mead:


Com a exceção de alguns casos [...] a adolescência não representava um período de crise e estresse, mas era, ao contrário, uma época de desenvolvimento ordenado de um conjunto de interesses e atividades cada vez mais maduros. As idéias das meninas não eram perturbadas por nenhum conflito, não eram confundidas por nenhum questionamento filosófico, não eram abatidas por nenhuma ambição remota. Viver sendo uma garota com muitos amantes pelo máximo de tempo possível e então se casar na própria vila, perto de seus parentes, e ter muitos filhos – essas eram ambições uniformes e satisfatórias.[ Ibid., p. 87 ]


Mas a dedicação dos samoanos pelo sexo livre começa muito antes de sua adolescência, e sua falta de “especialização” em relação ao sexo os faz descer saltitando por várias avenidas de prazeres animados. Desde muito cedo, as crianças têm “uma compreensão vívida da natureza do sexo. A masturbação é um hábito nada menos que universal, começando na idade dos seis ou sete anos”, apesar de a freqüência com que acontecesse diminuir um pouco “com o começo das atividades heterossexuais”, e porque “as práticas homossexuais entre os garotos e as garotas maiores também acabam tomando seu lugar, em certa medida”. Ibid., p. 76 ] Obviamente, os encontros homossexuais também não são nenhum fardo:


Essas relações casuais entre as garotas nunca assumiram uma importância a longo termo. Da parte das garotas em fase de crescimento e das mulheres que trabalhavam juntas, elas eram consideradas uma diversão prazerosa e natural, apenas tingidas pela falta de pudor. Onde as relações heterossexuais eram tão casuais, canalizadas por tamanha superficialidade, não havia um padrão no qual poderia se encaixar ou não as relações homossexuais.[ Ibid., p. 82]


Enquanto nós, ocidentais, ficamos todos preocupados com a heterossexualidade e com a homossexualidade, os samoanos ignoravam todo o conjunto das nossas ansiedades e discriminações culturais considerando todo tipo de atividade sexual algo como uma mera brincadeira. Nós temos a mente restrita quanto ao sexo; eles têm a mente completamente aberta. Nós perdemos nosso tempo discutindo divórcios nas cortes, desvendando os nós das nossas neuroses nos sofás dos analistas e suando para encontrar os limites aceitáveis para a conduta sexual. Os samoanos passam seu tempo como chimpanzés rousseaunianos, casualmente coçando aquilo que está ardendo. A natureza tão casual de sua sexualidade os mantém distantes do nervosismo a respeito de sua homossexualidade, tão comum a nós, ocidentais puritanos de gola alta.


A preocupação generalizada com o sexo, a atitude que considera as atividades sexuais menores, as danças sugestivas, as conversas estimulantes e impudicas, as músicas indecorosas e as lutas provocadas como sendo diversões aceitáveis e atrativas são majoritariamente responsáveis pela atitude nativa perante as práticas homossexuais. Elas são apenas brincadeiras, não recebem nem reprovação nem muita importância. Como as relações heterossexuais ganham importância não pelo amor e a tremenda fixação sobre o indivíduo, que são as únicas forças capazes de fazer uma relação homossexual durar e tornar-se importante, mas sim pelos filhos e pelo lugar do casamento na estrutura social e econômica da aldeia, é fácil entender porque as práticas homossexuais tão prevalecentes não têm tanta importância nem desfechos escandalosos. O reconhecimento e o uso de todas as variedades secundárias de atividades sexuais nas relações heterossexuais, as quais se agigantam como primárias nas relações homossexuais, serve de instrumento também na minimização de sua importância.[ Ibid., p. 83 ]


O modo de superar as inibições sexuais, portanto, é a saturação sexual da cultura. Se o sexo é inteiramente indiscriminado e as amarras morais que nos aprisionam são todas cortadas, então recuperamos nosso modo natural e nada angustiante de existir – e isso não vale somente para os solteiros. Repetindo a inversão moral de Rousseau, Mead sugere que é o desejo tolo pela fidelidade que cria o conflito matrimonial; os laços antinaturais da monogamia duradoura criam o sofrimento duradouro. Desfaçam-se os laços e o peso será aliviado.


Se [...] uma esposa realmente se cansa de seu marido, ou um marido de sua esposa, o divórcio vem como uma questão simples e informal, o não-residente simplesmente vai para casa, para sua família, e o relacionamento é dito ‘falecido’. Trata-se de uma monogamia muito frágil, freqüentemente trespassada e mais ainda rompida por completo. Mas muitos adultérios ocorrem [...], o que dificilmente ameaça a continuidade dos relacionamentos estabelecidos. A parte das terras da família que cabe a uma mulher torna-a independente de seu marido, e portanto não há casamentos de qualquer duração no qual uma das pessoas está constantemente infeliz. Uma pequena faísca de briga e a mulher vai embora para sua casa e para seu povo; se seu marido não se esforça para conciliar-se com ela, cada um procura outro parceiro.[ Ibid., cap. 7, p. 60 ]


Então, veja, o problema com os ocidentais é que, ao “assumir apenas uma forma restrita de atividade sexual”, nós canalizamos nossa libido muito cedo num tubo muito estreito, o que deve eventualmente “resultar em casamentos insatisfatórios”.[ Ibid., cap. 10, p. 83 ] Se apenas ignorássemos as restrições primárias e deixássemos nossos impulsos sexuais fluírem irrestritos, então quando chegássemos à época do casamento, já poderíamos estar despreocupados e relaxados como os samoanos. A melhor maneira para um divórcio sem culpas é livrarmo-nos das pesadas e antinaturais noções de culpa. Na verdade, toda a noção de que há culpas morais quanto à sexualidade é – como diria Freud – a causa do nosso profundo e neurótico mal-estar. Mas não é assim com os samoanos. Eles nos ensinam que a noção mesma de perversão sexual é uma perversão:


Ao descontar a nossa categoria de perversão, conforme é aplicada na prática, e reservá-la ao caso ocasional do pervertido psíquico, eles legislam todo um campo de possíveis neuroses para fora da existência. Onanismo, homossexualidade, formas estatisticamente incomuns de atividade heterossexual são práticas que não são nem banidas nem institucionalizadas. O espectro mais amplo que elas proporcionam previne o desenvolvimento de culpas obsessivas que são causa freqüente de desconforto entre nós. As práticas mais variadas permitidas heterossexualmente preservam qualquer indivíduo de ser penalizado por determinado condicionamento. Essa aceitação de um espectro mais amplo como “normal” proporciona uma atmosfera cultural na qual a frigidez e a impotência psíquica não ocorrem, e um ajuste sexual satisfatório no casamento pode sempre ser estabelecido. Aceitar tal atitude sem aceitar, de forma alguma, a promiscuidade, seria dar vários passos na direção de resolver muitos impasses matrimoniais e de esvaziar muitos dos bancos de nossas praças e as casas de prostituição.[ Ibid., cap. 13, p. 124 ]


Sem aceitar a promiscuidade de forma alguma? Se isso tudo é normal, que raio de prática poderia ser considerada promíscua? Seja lá como isso for, Mead deixa claro que a atitude casual perante o sexo é só uma parte da filosofia de vida samoana do não-faça-guerra-faça-amor. O que “torna o amadurecimento tão fácil, tão simples, é a casualidade generalizada de toda a sociedade” a respeito de tudo, tanto no Céu quanto na Terra:


Porque Samoa é um lugar onde ninguém aposta muito alto, ninguém paga muito caro, ninguém sofre por suas convicções ou briga até à morte por motivos especiais. Os desacordos entre pais e filhos solucionam-se com a mudança do filho para o outro lado da rua, as rugas entre um homem e toda a vila resolvem-se pela remoção desse para outra vila, as brigas de um marido com o amante de sua esposa acabam em belas esteiras [costuradas, em forma de presente]. Nem a pobreza nem grandes desastres ameaçam a população e a faz agarrar-se à sua vida avidamente, e a tremer pela continuação da existência. Nenhum deus implacável, veloz em sua fúria e poderoso em sua punição, disturba o significado de seus dias.[ Ibid., p. 110 ]


Alguém bem que poderia se perguntar a respeito da implacabilidade dos deuses em Samoa, dado que ali foi um território de missão para os cristãos desde a metade do século XIX. A resposta de Mead – que, é claro, ela queria que fosse bastante instrutiva para os cristãos ocidentais – era a de que os samoanos usaram seu cristianismo como usavam seus andrajos, tão leve e facilmente jogados para trás quando ocasiões apropriadas se apresentavam. Como dizia ela, “os únicos dissidentes” da atitude casual samoana perante os costumes sexuais “são os missionários, que divergem em vão e seus protestos não são relevantes”.[ Ibid., p. 112 ] O “prêmio moral da castidade” introduzido pelos missionários era encarado “com reverência, mas com completo ceticismo, e o conceito de celibato é absolutamente insignificante para eles”.[ Ibid., cap. 7, p. 55 ] A “influência dos missionários [...] falhou em dar ao nativo a noção de pecado”, ainda que tenha “providenciado a ele uma lista de pecados”.[ Ibid., cap. 9, p. 70. ] O resultado é que, em Samoa, “todo o cenário religioso é de formalismos [isto é, ter certas noções, mas nenhuma convicção mais profunda], de certo compromisso e aceitação à meia-medida. O grande número de pastores nativos, com suas interpretações peculiares do cristianismo, tornou impossível o estabelecimento do rigor típico do protestantismo ocidental, sua inseparável associação com as ofensas e sanções sexuais e sua consciência individual do pecado”.[ Ibid., cap. 11, p. 91. ] Isto é tudo para o bem, já que essa versão mais liberal e maleável de cristianismo mostra-se uma religião que produz bem pouca aflição. Outro plus e outra lição para os eclesiásticos causadores de neuroses deste nosso lado do Pacífico.

Qual é, então, a lição de casa de Mead? Nós, ocidentais, “vivemos um período de transição”.[ Ibid., cap. 14, p. 138 ] Ao contrário dos samoanos, que vivem numa sociedade estável, porém promíscua, os ocidentais encontram-se num estado de fluxo, inundado por múltiplos padrões de conduta, vários estilos de vida, numerosas visões religiosas, variadas idéias a respeito da sexualidade. Nosso estresse, em especial o da adolescência, é também multifacetado. Os samoanos são despreocupados porque têm poucas restrições à sua sexualidade, não têm laços atados pela relação familiar, buscam viver uma vida fácil numa cultura simples, que não os aflige com escolhas competitivas, intermináveis, a respeito do que fazer com suas vidas. Os americanos preocupam-se demais com conflitos e escolhas porque o “progresso” abriu-lhes a fenda para um lamaçal de visões de mundo conflitantes. Que fazer?

Obviamente, não podemos voltar à simplicidade nativa, mas podemos importar para a nossa cultura a casualidade samoana a respeito de toda questão sexual e deixar o vapor do nosso estresse para trás através do estabelecimento de algo como um prêmio cultural para a escolha individual e a tolerância completa. Nosso problema é que deparamo-nos com “muitos padrões, mas ainda acreditamos que apenas um deles deve ser o correto”. Não é à toa que estamos estressados. Nós devemos aceitar a idéia de que os padrões são como uma pletora de bugigangas que podemos escolher num bazar – a cada um o que lhe couber, e quanto mais bizarro, melhor. Que haja apenas um padrão: que ninguém interfira no padrão dos outros. Não pode haver um certo porque não pode haver um errado, e não há erros porque ninguém pode estar definitivamente certo.

O grito de guerra de Mead é, portanto, o de que nós precisamos marchar adiante na criação de uma nova era, “na qual nenhum grupo reclama sanções éticas para os seus costumes e todo grupo acolhe em seu meio aqueles que forem temporariamente adequados para filiação”. Só aí, dispara Mead, “teremos conhecido o ponto alto da escolha individual e da tolerância universal ao qual uma cultura heterogênea, e somente uma cultura heterogênea, pode chegar”.[ Ibid ]

Isso tudo deve soar tão familiar que seria supérfluo comentar o fato de que essa é a plataforma mesma das revoluções culturais liberais do século XX. O mesmo vale para a idéia de Mead a respeito das restrições sexuais, que, ao invés de nos salvarem da crueldade e da autodestruição, causam-nos uma insalubre implosão neurótica.

Algo deve ser dito a respeito do trabalho de Mead enquanto pura propaganda científica. Para o canalha, a “ciência”, bem como o patriotismo, pode servir de último refúgio (às vezes até de primeiro). Em 1983, o antropólogo Derek Freeman acusou Margaret Mead (que havia morrido cerca de cinco anos, antes canonizada como ícone cultural e intelectual) de ter representado os samoanos de modo inteiramente errado. “As conclusões principais de Adolescência, sexo e cultura em Samoa”, argumentou ele, “são, na realidade, fantasias de um mito antropológico profundamente em discordância com os fatos da etnografia e da história samoanas”.[ Derek Freeman, Margaret Mead and Samoa: The Making and Unmaking of an Anthopological Myth. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983, p. 109 ] Na realidade, ele dizia, os samoanos estavam muito mais preocupados com a castidade – e, portanto, eram bem menos sexualmente promíscuos – que os ocidentais da época. O ponto feito por Freeman era contundente: Mead impôs sua própria agenda ao tratar dos samoanos.

O argumento de Freeman certamente é plausível. Seja lá o que os samoanos estavam fazendo, a própria Mead agia de modo bem parecido aos alegados nativos descompromissados, o que leva a crer que sua antropologia era, na verdade, uma autobiografia levemente disfarçada, que ela estava prestes a atualizar. Ela era casada quando partiu em viagem para a Samoa, mas largou seu primeiro marido por um homem que conheceu na viagem de volta. Este segundo foi logo substituído por um terceiro, e finalmente esse seu terceiro casamento foi jogado de lado, assim, casualmente. O tempo todo ela mantinha-se em relação com sua amante lésbica, Ruth Benedict. Conforme ela mesma afirma depois, sendo bem franca, “uma heterossexualidade rígida é uma perversão da natureza”. Cf. Hilary Lapsey, Margaret Mead and Ruth Benedict: The Kinship of Women. Amherst, MA: University of Massachusetts Press, 1999, p. 26, 76, 79-80 e 308 ] Em sua sociedade ideal, confidenciava, as pessoas seriam homossexuais quando jovens, aí trocariam para algo mais heterossexual durante a época de reprodução, para então trocarem de volta.[ Jane Howard, Margaret Mead: A Life. New York: Fawcett Crest, 1984, p. 253 ] Estaria Mead pintando os samoanos com suas próprias cores?

A crítica de Freeman causou um belo alarde e uma batalha retórica vem se alastrando desde então. Alguns têm questionado a análise de Freeman sobre a cultura samoana, e portanto também o seu criticismo quanto à de Mead, cujo status de ícone cultural e liberal foi arranhado, mas não sobreposto. Enquanto isso, o antropólogo Martin Orans levantou outra acusação contra Mead, totalmente distinta, mas igualmente danosa. Segundo ele, Freeman não provou realmente que Mead estava equivocada sobre os samoanos; os métodos que ela usou eram tão ruins que suas conclusões não tinham substância suficiente para estarem erradas. Daí o título do livro de Orans, Nem mesmo errada: Margaret Mead, Derek Freeman e os samoanos.[ Tradução livre para Not even wrong: Margaret Mead, Derek Freeman, and the Samoans ] A real questão é: como o livro Adolescência, sexo e cultura em Samoa – que Orans demonstra estar encoberto por “falhas metodológicas extensas” e infectado por uma “escassez ou total ausência de informações de suporte para seu argumento”[ Martins Orans, Not Even Wrong: Margaret Mead, Derek Freeman and the Samoans. Novato, CA: Chandler and Sharp Publishers, Inc., 1996, p. 123-124 ] – tornou-se tão influente? Sendo mais direto, “[c]omo os antropólogos e outros eminentes acadêmicos podem ter ignorado surdamente tantos defeitos ruidosos? Como tantas gerações de professores universitários puderam incluir [esse livro] em suas listas de leituras obrigatórias aos estudantes? Como pôde um trabalho tão falho ter servido de pedra-angular para tanta honra?”.[ Ibid., p. 124 ]

Orans diz que a razão número um é “ideológica”. “Nós queríamos que as descobertas de Mead estivessem certas. Nós acreditávamos que uma moral sexual mais permissiva seria um benefício para todos nós. Mais importante ainda, suas descobertas eram estratégicas para os defensores da importância da cultura frente à biologia. Essa perspectiva propunha a resolução dos problemas humanos através de uma mudança social, enquanto que a outra, de ênfase biológica, insistia que nossos problemas estavam enraizados na natureza humana e não eram, portanto, erradicáveis”. A mensagem de que a permissividade sexual e a engenharia social poderiam nos render uma diversão enorme e ainda eliminar completamente os problemas da sociedade teve pronta audiência no início do século XX (como ainda tem hoje em dia).

A razão número dois encontra-se enraizada na própria disciplina da antropologia cultural – ou, talvez, em sua falta de disciplina. Segundo Orans, ele próprio um antropólogo praticante, “desde sua concepção, essa sua prática vem sendo profunda e freqüentemente não-científica e categoricamente despreparada, à vontade para acolher espontaneamente generalizações sem qualquer embasamento empírico”.[ Ibid., p. 125 ] A antropologia serviu então como manto científico perfeito para cobrir uma análise cultural em nada mais científica do que a teoria do estado natural imaginada por Hobbes e Rousseau.

O desejo de que algo seja verdadeiro, no lugar do desejo pelo que é verdadeiro em si, pode muito bem ser a raiz mesma de todo mal. É certamente a origem de toda ideologia, e as ideologias foram as fontes de uma boa parte do mal perpetrado no século passado.

O que é uma ideologia? Vivemos em uma era tão ideológica que nos é difícil distinguir os bons raciocínios dos maus. A distinção crucial aqui é a de que ideologia não é filosofia. A filosofia é o amor à sabedoria, o amor ao que é real, independentemente de gostarmos dele ou não. É o desejo pela verdade, é a humildade constante de remodelar nossos desejos de acordo com a realidade. A ideologia atinge a verdade pelo outro lado, moldando-a àquilo que porventura desejarmos. Por uma ideologia, não se tem escrúpulos para talhar a verdade a fim de fazê-la caber aos nossos desejos, e por isso mesmo ela não leva a hesitar aqueles que, como Mead, a usam para refazer a realidade conforme suas ânsias. A pseudociência é, portanto, serva da ideologia. A política é sua ferramenta.

Mead dá um belo exemplo do poder que uma ideologia tem de criar e perpetrar uma pseudociência. Conforme Orans deixa claro, o desejo de se criar uma revolução sexual fez vários cientistas altamente qualificados (que deviam ter sido mais espertos) aceitarem e exaltarem o trabalho de Mead, mesmo considerando que, pelos cânones adotados em metodologia científica, o tecido de sua argumentação tinha mais furos que pano. Mas eles queriam que aquilo fosse verdade. “Fosse o livro não-científico na mesma medida, mas com uma ideologia oposta”, Orans nota com sinceridade, “com certeza o teríamos destruído por conta de suas falhas científicas”.[ Ibid., p. 13 ]

É claro que Mead não é a única culpada pelo sucesso de vendas das pseudociências. Marx e Engels consideravam-se eminentemente científicos, assim como Darwin, Freud, Hitler e Sanger. E quando tomarmos Kinsey para analisar, veremos a perversão sexual posando de ciência no traje emprestado e austero de um jaleco de laboratório. Mas não podemos culpar apenas esses autores execráveis. Livros ruins apenas estragam o mundo quando são consumidos ferozmente por aqueles que têm fome de suas mensagens: que seria bom eliminar os “inaptos” ao invés de preocupar-se caridosamente com eles; que todo mal é causado por uma classe ou raça e pode ser eliminado através do extermínio dessas pessoas; que podemos nos tornar gênios se lançarmo-nos aos bacanais e ao sexo-livre; e que o sexo casual, o divórcio casual, a família casual, os padrões casuais e a religiosidade casual podem nos curar dos males que nos afligem.

Em cada um desses casos, a cura é o que mata.

 

 (BENJAMIN WIKER - Dez Livros que estragaram o Mundo e outros cinco que não ajudaram em nada)

publicado às 00:46



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