Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]




A vitória subtil de Francisco

por Thynus, em 18.10.14
A própria palavra "cristianismo" é um mal-entendido - no fundo só existiu um
cristão, e ele morreu na cruz. 0 "Evangelho" morreu na cruz. 0 que, desse
momento em diante, chamou-se de "Evangelho" era exatamente o oposto do que
ele viveu: "más novas", um Dy sangelium. É um erro elevado à estupidez ver
na "fé", e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do
cristão: apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é
cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o
cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas...
(Nietzsche - O Anticristo)


Na sua loucura lúcida, Nietzsche escreveu que cristão só houve um, Jesus, mas morreu na cruz, e o Evangelho tornou-se um Disangelho. Evangelho é palavra grega que quer dizer notícia boa, feliz e felicitante. Essa foi a mensagem de Jesus, que arrastou multidões em busca de saúde, libertação, vida expandida, salvação. Depois, tornou-se, tantas vezes e para muitos, uma má notícia, uma notícia de desgraça, um Disangelho. Só quem anda distraído ou não pode ou não quer saber é que não sabe disso.
O Papa Francisco pugna pelo regresso ao Evangelho do Jesus da vida, como notícia felicitante, por palavras e obras. Também na família. Ele sabe que, no meio das transformações culturais profundas, a sociedade e a Igreja continuam a precisar de "famílias felizes". E o contributo da Igreja é fundamental.
Assim, quis que, no Sínodo, com bispos de todo o mundo, casais, peritos e observadores, se falasse com liberdade e sem tabus. No relatório-síntese da primeira semana, é já possível antever o essencial dos novos caminhos, que, apesar das oposições, estão na linha pastoral de Francisco, que é a do Evangelho da alegria, antepondo a pessoa e a misericórdia ao dogma e à lei.
Claro que o ideal de família enquanto "escola de humanidade" continua a ser a união de amor fiel entre um homem e uma mulher por toda a vida e aberta à procriação. Mas a vida é o que é. E a Igreja reconhece a "urgência de novas opções pastorais" para as "famílias feridas". Haverá, pois, uma nova atitude face aos divorciados que voltaram a casar-se civilmente. O cardeal W. Kasper acaba aliás de declarar que uma "maioria crescente" do Sínodo é favorável à sua proposta de poderem aceder à comunhão. Por outro lado, entre as consequências da separação e do divórcio, sublinha-se, com razão, a necessidade de pensar nos filhos, que devem crescer do modo mais humano possível, não podendo, portanto, ser transformados num "objeto de contenda".
Há a valorização do casamento civil e da coabitação: "Uma nova dimensão da pastoral familiar atual consiste em captar a realidade dos casamentos civis e, com as devidas diferenças, também da coabitação ou uniões de facto. Na realidade, quando a união alcança uma notável estabilidade através de um vínculo público, está marcada por um afeto profundo, pela responsabilidade em relação aos filhos, com a capacidade de resistir às provas, podem ser vistos como um gérmen para acompanhar o desenvolvimento para o sacramento do matrimónio." Aliás, numa das intervenções, o geral dos jesuítas, Adolfo Nicolás, afirmou que "pode haver mais amor cristão numa união canonicamente irregular do que num casal casado pela Igreja"; assim, "a nossa tarefa é aproximar as pessoas da graça e não rejeitá-las com preceitos". Já antes, o Papa Francisco, constatando que "a juventude não se casa; é uma cultura da época; muitíssimos jovens preferem coabitar sem se casar", tinha perguntado: "Que deve a Igreja fazer? Expulsá-los do seu seio?"
Põe-se, inevitavelmente, a questão da contraceção dita artificial. Afinal, o que é natural e o que é artificial? Não pode o ser humano intervir racional e razoavelmente na natureza, que não é estática nem fixa?
Também a linguagem em relação à homossexualidade muda. "As pessoas homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã. Estamos em condições de receber estas pessoas, garantindo-lhes um espaço de fraternidade nas nossas comunidades?" E continua o documento: "A questão homossexual interpela-nos para uma reflexão séria sobre como elaborar caminhos realistas de crescimento afetivo e de maturidade humana e evangélica integrando a dimensão sexual: portanto, apresenta-se como um importante desafio educativo." Mas, por outro lado, "a Igreja afirma que as uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser equiparadas ao matrimónio entre um homem e uma mulher". Faço notar que, na terminologia eclesiástica, não se fala em casamento, que vem de casa, mas matrimónio, cujo étimo é matris, que é o genitivo de mater, mãe, o que quer dizer que, para a Igreja, o casamento está intimamente vinculado à possibilidade da procriação. No entanto, o texto refere que "a Igreja tem atenção especial para com as crianças que vivem com casais do mesmo sexo, reiterando que se deve pôr sempre em primeiro lugar as exigências e direitos dos mais pequenos".
Há ainda um longo caminho até à Exortação do Papa, com as decisões finais, em princípios de 2016. Entretanto, hoje ser-lhe-á entregue um relatório de trabalho desta assembleia, para o debate que continuará nas dioceses do mundo inteiro - outra vez W. Kasper: "Vivemos num mundo globalizado e não se pode governar tudo a partir da Cúria" -, até à nova assembleia sinodal, de 4 a 25 de outubro de 2015.

(Anselmo Borges)

publicado às 22:34



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2017
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2016
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2015
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2014
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2013
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2012
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2011
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2010
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2009
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2008
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2007
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D