O debate entre aqueles que afirmam que o universo foi criado por Deus e aqueles que pensam que ninguém o criou tem como objecto algo que ultrapassa o nosso entendimento e a nossa experiência. Bem mais real é a diferença entre aqueles que contestam o ser tal como foi dado ao homem (pouca importa como e por quem) e aqueles que a ele aderem sem reservas de espécie nenhuma.
Todas as crenças europeias, sejam elas religiosas ou políticas, têm por detrás de si o primeiro capítulo do Génesis, do qual se infere que o mundo foi criado tal como devia ser, que o ser é bom e, por consequência, que procriar é uma coisa boa. Chamemos a esta crença fundamental acordo categórico com o ser.
Se, ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros por três pontinhos, não era seguramente por uma questão de moral. Apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda seja imoral! O desacordo com a merda é metafísico. O instante da defecção é a prova quotidiana do carácter inaceitável da criação. Das duas, uma: ou a merda é aceitável (então porque é que se fecham na casa de banho?) ou a maneira como nos criaram é que é inadmissível.
Daqui se infere que o acordo categórico com o ser tem como ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde todos se comportam como se ela não existisse. Esse ideal estético chama-se kitsch.
É uma palavra alemã que apareceu em meados do século XIX sentimental e que depois se vulgarizou em todas as línguas. Mas a sua utilização frequente fê-la perder todo o valor metafísico original: o kitsch é, por essência, a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal como no sentido figurado, o kitsch exclui do seu campo de visão tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.
(Milan Kundera - A Insustentável Leveza do Ser)