O ser verdadeiramente solitário não é o que foi abandonado pelos homens, mas o que sofre no meio deles, o que arrasta seu deserto nas feiras e exige seus talentos de leproso sorridente, de comediante do irreparável. Os grandes solitários de outrora eram felizes, não conheciam a duplicidade, não tinham nada que ocultar: só se relacionavam com sua própria solidão.
Entre todos os laços que nos unem às coisas, não há um só que não afrouxe e não pereça sob a influência do sofrimento, que nos liberta de tudo, salvo da obsessão de nós mesmos e da sensação de ser irrevogavelmente indivíduo. É a solidão hipostasiada em essência. Sendo assim, por que meios comunicar-se com os outros senão pela prestidigitação da mentira? Pois se não fôssemos saltimbancos, se não houvéssemos aprendido os artifícios de um charlatanismo sábio, se enfim fôssemos sinceros até o despudor ou a tragédia –, nossos mundos subterrâneos vomitariam oceanos de fel, onde desaparecer seria nosso ponto de honra: fugiríamos assim da inconveniência de tanto grotesco e sublime. Em um certo grau de desgraça, toda franqueza torna-se indecente. Jó se deteve a tempo: um passo adiante e nem Deus nem seus amigos lhe teriam mais respondido.
(Somos “civilizados” na medida em que não proclamamos nossa lepra, em que damos prova de respeito pela elegante falsidade forjada pelos séculos. Ninguém tem o direito de curvar-se sob o peso de suas horas... Todo homem esconde em si uma possibilidade de apocalipse, mas todo homem sujeita-se a nivelar seus próprios abismos. Se cada um desse livre curso à sua solidão, Deus deveria recriar este mundo, cuja existência depende inteiramente de nossa educação e deste medo que temos de nós mesmos... – O caos? – É rejeitar tudo o que se aprendeu, é ser você mesmo...)
(CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)
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Sou tudo e não sou nada, sou alguém e ninguém |