Para começar, uma observação sobre terminologia: na filosofia contemporânea, adquiriu-se o hábito de chamar de “pós-modernas” as ideias que, a partir dos meados do século XIX, se empenharam em fazer a crítica do humanismo moderno e, em especial, da filosofia das Luzes. Do mesmo modo que esta rompeu com as grandes cosmologias da Antiguidade e inaugurou uma crítica da religião, os “pós-modernos” vão atacar duas das mais importantes convicções que animavam os Modernos do século XVII ao XIX: aquela segundo a qual o ser humano seria o centro do mundo, o princípio de todos os valores morais e políticos; aquela que considera a razão um formidável poder libertador, e que, graças ao progresso das “Luzes”, seremos, enfim, mais livres e mais felizes.
A filosofia pós-moderna vai contestar esses dois postulados. Ela será, pois, ao mesmo tempo crítica do humanismo e crítica do racionalismo. Sem sombra de dúvida, é em Nietzsche que ela vai atingir seu ponto culminante. Por outro lado, qualquer que seja nossa posição — e você verá que é possível fazer restrições a Nietzsche —, o radicalismo, até mesmo a violência de seus ataques contra o racionalismo e o humanismo só se igualam à genialidade com que ele soube apresentá-los.
Mas, afinal, por que essa necessidade de “desconstruir”, como dirá Heidegger, um grande filósofo contemporâneo, o que o humanismo moderno teve tanto trabalho para construir? Por que, mais uma vez, passar de uma visão de mundo a outra? Por que motivos as Luzes vão ser vistas como insuficientes e ilusórias; que razões vão levar a nova filosofia a querer ir “mais longe”?
Se nos ativermos ao essencial, a resposta será breve. Como vimos, a filosofia moderna destituiu o cosmos e criticou as autoridades religiosas substituindo-as pela razão e pela liberdade humana, pelo ideal democrático e humanista de valores morais construídos sobre a humanidade do homem, sobre o que constituía sua diferença específica em relação a todas as outras criaturas, a começar pelo animal. Mas, como você se lembra, isso foi feito com base numa dúvida radical, a mesma dúvida que Descartes apresentou em suas obras, quer dizer, com base numa verdadeira sacralização do espírito crítico, numa liberdade de pensamento que chega a fazer tábula rasa de todas as heranças passadas, de todas as tradições. A própria ciência inspirou-se totalmente nesse princípio, de modo que, desde então, nada a detém na sua busca da verdade.
Ora, foi isso que os Modernos não avaliaram plenamente. Como o aprendiz de feiticeiro que desencadeia forças que logo fugirão ao seu controle, Descartes e os filósofos das Luzes também liberaram um espírito, o espírito crítico, que, posto em ação, não pode ser detido. Ele é como um ácido que corrói os materiais em que toca, mesmo que se tente pará-lo, jogando-lhe água. A razão e os ideais humanistas não se sustentarão, de modo que o mundo intelectual por eles edificado vai finalmente ser vítima dos próprios princípios nos quais repousava. Sejamos um pouco mais precisos.
A ciência moderna, fruto do espírito crítico e da dúvida metodológica, destruiu as cosmologias e enfraqueceu consideravelmente, pelo menos num primeiro momento, as bases da autoridade religiosa. É um fato. Por isso, como vimos no fim do capítulo anterior, o humanismo não chegou a destruir inteiramente uma estrutura religiosa fundamental, muito pelo contrário: a do além, oposta a deste mundo, a do paraíso oposta à realidade terrestre ou, se você preferir, a do ideal oposto à realidade. Eis por que, aos olhos de Nietzsche, quando nossos republicanos herdeiros das Luzes se dizem ateus, ou mesmo materialistas, na verdade, permanecem crentes! Naturalmente, não por rezarem a Deus, mas porque não deixam de venerar quimeras, já que continuam a acreditar que alguns valores são superiores à vida, que o real deve ser julgado em nome do ideal, que é necessário transformá-lo para moldá-lo aos ideais superiores: os direitos do homem, a ciência, a razão, a democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades etc.
Ora, essa visão das coisas é fundamentalmente herdeira da teologia, mesmo e especialmente quando não se dá conta disso e se quer revolucionária ou irreligiosa! Em resumo, aos olhos dos pós-modernos, e particularmente de Nietzsche, o humanismo das Luzes, sem perceber, permanece prisioneiro das estruturas essenciais da religião que ele rechaçou, no ponto mesmo em que supõe tê-las ultrapassado. Eis por que, de algum modo, será necessário dirigir-lhe as críticas que ele havia desencadeado contra os outros, partidários das cosmologias antigas ou dos pensamentos religiosos.
No prefácio de Ecce Homo, um de seus raros livros em forma de confissões, Nietzsche descreveu sua atitude filosófica em termos que marcam perfeitamente a ruptura que estabelece com o humanismo moderno. Este afirmava reiteradamente sua crença no progresso, sua convicção de que a difusão das ciências e das técnicas iria produzir dias melhores, que a história e a política deveriam ser guiadas por um ideal, ou utopia, que permitiria tornar a humanidade mais respeitosa em relação a si mesma etc. Temos aqui exatamente o tipo de crença, de religiosidade sem Deus ou, como diz Nietzsche em seu vocabulário bastante peculiar, de “ídolos”, que ele pretende desconstruir, “filosofando com um martelo”. Vamos ouvi-lo:
Não se trata, pois, de reconstituir um mundo humano, um “reino dos fins” onde os homens seriam finalmente iguais em dignidade como Kant e os republicanos queriam. Na opinião dos pós-modernos, a democracia, qualquer que seja o conteúdo que lhe dermos, não é senão uma nova ilusão religiosa entre outras, e mesmo uma das piores, já que ela se dissimula frequentemente sob a aparência de uma ruptura com o mundo religioso, habitualmente declarando-se “laica”. Nietzsche retoma esse tema, e do modo mais claro possível, como, exemplo entre muitos, na passagem de seu livro intitulado Além do Bem e do Mal:Melhorar a humanidade? Eis a última coisa que eu prometeria. Não esperem de mim que eu erija novos ídolos! Que os antigos aprendam antes quanto custa ter pés de barro! Derrubar “ídolos” — é assim que chamo todos os ideais —, esse é meu verdadeiro ofício. É inventando a mentira de um mundo ideal que se tira o valor da realidade, sua significação, sua veracidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição que pesou sobre a realidade, a própria humanidade se tornou mentirosa e falsa até o mais fundo de seus instintos — até a adoração dos valores opostos àqueles que poderiam lhe garantir um belo crescimento, um futuro...
Nós que reivindicamos uma outra fé, nós que consideramos a tendência democrática não apenas como uma forma degenerada da organização política, mas como uma forma decadente e diminuída da humanidade que ela reduz à mediocridade e cujo valor ela diminui, onde depositaremos nossas esperanças?
Em todo caso, não na democracia! É absurdo tentar negá-lo: Nietzsche é o contrário de um democrata e, infelizmente, não é por acaso que ele foi considerado pelos nazistas um de seus inspiradores.
Contudo, se quisermos compreendê-lo antes de julgá-lo, é preciso ir além, muito além mesmo, e particularmente no seguinte aspecto: se ele detesta os ideais como tais, se quer quebrar os ídolos com seu martelo filosófico, é porque, para ele, todos provêm de uma negação da vida, daquilo que ele chama de “niilismo”. Antes de avançar por sua obra, é essencial que você tenha uma ideia dessa noção central na construção das utopias morais e políticas modernas.
Nietzsche pensa que todos os ideais, explicitamente religiosos ou não, de direita ou de esquerda, conservadores ou progressistas, espiritualistas ou materialistas, possuem a mesma estrutura, a mesma finalidade: fundamentalmente eles partem, como lhe expliquei, de uma estrutura teológica, já que se trata sempre de inventar um além melhor do que este mundo, de imaginar valores pretensamente superiores e exteriores à vida ou, no jargão dos filósofos, de valores “transcendentes”. Ora, para Nietzsche, tal invenção é sempre secretamente, é claro, motivada por “más intenções”. Seu verdadeiro objetivo não é ajudar a humanidade, mas apenas conseguir julgar e finalmente condenar a própria vida, negar o verdadeiro real em nome de falsas realidades, em lugar de assumi-la e aceitá-la tal como é.
É essa negação do real em nome de um ideal que Nietzsche chama de “niilismo”. Como se, graças a essa ficção de pretensos ideais e utopias, nos situássemos fora da realidade, fora da vida, ao passo que o pensamento nietzschiano, seu ponto extremo, é que não há transcendência, que todo juízo é um sintoma, uma emanação da vida que faz parte da vida e nunca se situa fora dela.
Essa é a tese central do pensamento de Nietzsche, e se você a compreender bem, nada o impedirá de lê-lo: não existe nada fora da realidade da vida, nem acima nem abaixo, nem no céu nem no inferno, e todos os célebres ideais da política, da moral e da religião são apenas “ídolos”, inchaços metafísicos, ficções, que não visam nada a não ser fugir da vida, antes de se voltar contra ela. É sempre o que fazemos quando julgamos a realidade em nome do ideal, como se ele fosse transcendente, exterior a ela, enquanto tudo lhe é, do princípio ao fim e sem a menor sobra, imanente.
Vamos voltar a essa ideia, examiná-la com precisão, oferecer exemplos concretos para que você compreenda bem — pois ela não é fácil —, mas, de início, você já pode perceber por que a filosofia pós-moderna inevitavelmente iria criticar a dos Modernos, ainda muito marcada pelo gosto das utopias religiosas.
Poderíamos dizer que os Modernos são como o regador regado: eles inventaram o espírito crítico, a dúvida e a razão lúcida... e todos esses ingredientes essenciais à filosofia deles se voltam contra eles! Os principais pensadores “pós-modernos”, Nietzsche, certamente, mas ainda pelo menos em parte Marx e Freud, vão ser justamente definidos como “filósofos da suspeita”: o fim da filosofia agora é desconstruir as ilusões que embalaram o humanismo clássico. Os “filósofos da suspeita” são os pensadores que adotam como princípio de análise o pressentimento de que há sempre, por trás das crenças tradicionais, por trás dos “velhos e bons valores” que se pretendem nobres, puros e transcendentes, interesses escusos, escolhas inconscientes, verdades mais profundas... e frequentemente inconfessáveis. Como o psicanalista, que procura buscar e compreender o inconsciente por trás dos sintomas de seu paciente, o filósofo pós-moderno aprende, antes de qualquer outra coisa, a desconfiar das evidências primeiras, das ideias prontas, para ver o que há por trás, por baixo, de viés se for preciso, a fim de detectar os preconceitos dissimulados que os fundamentam em última instância.
Eis por que Nietzsche não gosta das grandes avenidas nem dos “consensos”. Ele prefere os atalhos, as margens e os sujeitos que se zangam. No fundo, como os pais fundadores da arte contemporânea, como Picasso na pintura ou Schönberg na música, Nietzsche é um vanguardista, alguém que pretende acima de tudo inovar, fazer tábula rasa do passado. O que vai caracterizar com perfeição o ambiente pós-moderno é o lado irreverente, o estar enjoado dos bons sentimentos, dos valores burgueses, seguros de si e bem-estabelecidos: curvamo-nos diante da verdade científica, da razão, da moral de Kant, da democracia, do socialismo, da república... Que não seja por isso! Os vanguardistas, Nietzsche à frente, vão se empenhar em quebrar tudo, para desvendar diante do mundo o que se esconde por trás! Eles têm, por assim dizer, um lado um pouco hooligan (em versão mais culta...) tanto mais audacioso quanto para eles o humanismo perdeu todos os poderes de destruição e de criação que ainda possuía na origem, quando quebrava os ídolos da cosmologia grega ou da religião cristã, antes, se ouso dizer, de, por sua vez, aburguesar-se.
Isso também explicará o radicalismo, a brutalidade e mesmo os terríveis desvarios da pós-modernidade filosófica: sim, é preciso que se diga tranquilamente, sem polemizar, não foi por acaso que Nietzsche foi o pensador fetiche dos nazistas, tampouco que Marx se tornou o dos stalinistas e dos maoistas... Nem por isso o pensamento de Nietzsche, às vezes insuportável, deixa de ser genial, tão abrasivo quanto possível. Podemos não partilhar suas ideias; podemos até detestá-las, mas, depois dele, não podemos mais pensar como antes. O que é a marca incontestável do gênio.
Para lhe expor os principais motivos de sua filosofia, vou me apoiar mais uma vez nos três grandes eixos aos quais você já se habituou: theoria, praxis e doutrina da salvação.
Alguns especialistas em Nietzsche — ou que se pensam como tais — não deixarão de afirmar que é absurdo querer encontrar alguma coisa semelhante a uma theoria nele que foi por excelência — acabo, aliás, de lhe dizer por quê — o espancador do racionalismo, o crítico incansável de toda “vontade de verdade”, num pensador que sempre caçoou do que chamava de “homem teórico” — filósofo ou cientista — animado pela “paixão do conhecimento”. Parecerá ainda mais sacrílego aos nietzschianos ortodoxos — pois essa estranha espécie, que teria feito Nietzsche rir muito, existe — falar a respeito de uma “moral”, quando Nietzsche sempre se autodenominou “imoralista”, de uma sabedoria tal e a respeito de quem as pessoas têm o prazer de lembrar que morreu louco. E o que dizer de uma doutrina da salvação no pensador da “morte de Deus”, num filósofo que teve a audácia de se comparar ao Anticristo e de zombar explicitamente de qualquer espécie de “espiritualidade”?
Dou-lhe novamente este conselho: não ouça tudo o que lhe dizem, e julgue antes por si mesmo. Leia as obras de Nietzsche — sugiro que comece por Crepúsculo dos Ídolos, e especialmente pelo pequeno capítulo intitulado “O problema de Sócrates” do qual lhe falarei adiante. Compare as diferentes interpretações, depois forme sua própria opinião.
Apesar disso, vou lhe contar um segredo que com certeza é uma evidência que salta aos olhos do primeiro leitor que aparece: não encontramos em Nietzsche uma theoria, uma praxis e uma doutrina da salvação no sentido em que as encontramos nos estoicos, nos cristãos ou mesmo em Descartes, Rousseau e Kant. Nietzsche é o que chamamos de “genealogista” — é assim que ele próprio se designava —, um “desconstrutivista”, alguém que passou a vida dando surras nas ilusões da tradição filosófica, o que não escapa a ninguém.
Isso significa que não encontramos em sua obra um pensamento que pudesse ocupar o lugar das ideias antigas, que substituísse os “ídolos” da metafísica tradicional? Evidentemente que não, e, como você vai ver, Nietzsche não desconstrói a cosmologia grega, o cristianismo ou a filosofia das Luzes pelo simples prazer de negar ou destruir, mas para abrir espaço a pensamentos novos, radicais, que vão efetivamente constituir, embora em sentido inédito, uma theoria, uma praxis e até mesmo um pensamento da salvação de novo gênero.
Apesar disso, ele continua sendo um filósofo.
Analisemos com atenção, sem nos deixar impressionar por inúteis advertências, retomando nossos três eixos: theoria, praxis, doutrina da salvação, para ver o que Nietzsche pôde inventar de novo em lugar e na situação delas, para modificá-las de dentro para fora.
I. Para além da theoria: um “alegre saber” livre do cosmos, de Deus e dos “ídolos” da razão
Perdoe-me por voltar a esse ponto, mas é tão importante que preciso ter certeza de que você compreendeu que há sempre, na theoria filosófica, dois aspectos. Há o theion e o orao, o divino que tentamos encontrar no real e o ver que o contempla; o que queremos conhecer e aquilo com o qual tentamos alcançá-lo (os instrumentos dos quais nos servimos para consegui-lo). Em outras palavras, a teoria compreende sempre, de um lado, a definição da essência mais íntima do ser, daquilo que é mais importante no mundo que nos cerca (o que chamamos de ontologia — onto remete à palavra grega que significa “ente”) e do outro, a da visão ou, pelo menos, dos meios de conhecimento que nos permitem apreendê-lo (o que chamamos de teoria do conhecimento).
Por exemplo, nos estoicos, você deve se lembrar, a “ontologia” consiste em definir a essência mais íntima do Ser, aquilo que, no real, é mais real ou mais “divino”, como harmonia, cosmos, ordem harmoniosa, justa e boa. Quanto à teoria do conhecimento, ela reside nessa contemplação que, graças à atividade do intelecto, consegue captar o lado “lógico” do universo, o logos do universo que estrutura o mundo todo. Para os cristãos, o Ser supremo, o que é mais “ente”, não é o cosmos, mas um Deus pessoal, e o instrumento adequado para pensá-lo, a bem dizer o único meio de encontrá-lo, não é mais a razão, e sim, a fé. Ou ainda, para os Modernos, notadamente em Newton e Kant, o universo deixa de ser cósmico ou divino para se tornar um tecido de forças que o sábio tenta pensar racionalmente, extraindo dele as grandes leis, como a da causalidade, por exemplo, que governam as relações entre os corpos...
São esses dois eixos constitutivos da theoria que vamos acompanhar em Nietzsche para ver que distorções ele lhes impõe e como ele os reordena de modo inédito.
Como você verá, sua theoria, sem trocadilho, é antes uma “a-theoria” — no sentido em que se diz que um homem que não crê em Deus é a-teu: sem Deus (em grego, o prefixo a quer dizer simplesmente “sem”). Porque para Nietzsche, de um lado, o fundamento do real, a essência mais íntima do ser, nada tem de cósmico nem de divino, ao contrário; de outro, o conhecimento não parte das categorias de visão — do orao grego. Não é uma contemplação ou um espetáculo passivo como para os Antigos. Também não é, como para os Modernos, uma tentativa de, apesar de tudo, estabelecer relações entre as coisas com o fim de encontrar uma nova forma de ordem e de sentido. Mas, como eu já havia proposto, é, ao contrário, uma “desconstrução” à qual o próprio Nietzsche chamou de “genealogia”.
A palavra é em si bastante sugestiva: como na atividade que consiste em recuperar as filiações de uma família, a raiz, o tronco e os ramos de sua árvore, a verdadeira filosofia deve, segundo Nietzsche, trazer à tona a origem escondida dos valores e das ideias que se acreditam imutáveis, sagrados, vindos do céu... para devolvê-los à Terra e desvendar o modo, o mais das vezes efetivamente bem terrestre (é um dos motivos favoritos de Nietzsche), como eles foram engendrados.
Vamos considerar o fato com atenção, antes de voltarmos à ontologia.
A. Teoria do conhecimento: como a “genealogia” assume o lugar da theoria
Como já comecei a lhe explicar, a tese mais profunda de Nietzsche, a que vai fundamentar toda a sua filosofia — todo o seu “materialismo”, se com isso se entende a rejeição de todos os “ideais” —, é que não existe absolutamente nenhum ponto de vista exterior e superior à vida, nenhum ponto de vista que tenha, no que quer que seja, o privilégio de se abstrair do tecido de forças que constituem o fundamento do real, a mais íntima essência do ser.
Consequentemente, nenhum juízo sobre a existência em geral tem o menor sentido, a não ser como ilusão, puro sintoma exprimindo apenas certo estado das forças vitais daquele que o carrega consigo.
Eis o que Nietzsche enuncia com a maior clareza nessa passagem decisiva do Crepúsculo dos Ídolos:
Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser, em última instância, verdadeiros: não possuem outro valor senão o de sintomas — em si, tais juízos são imbecilidades. É, pois, necessário estender os dedos para tentar apreender essa fineza extraordinária que reside no fato de que o valor da vida não pode ser avaliado. Não por um vivente, pois ele é parte, e até mesmo objeto de litígio; não por um morto, por uma outra razão. Da parte do filósofo, ver no valor da vida um problema significa uma dúvida contra ele, um ponto de interrogação em relação à sua sabedoria, uma falta de sabedoria.30
Para o desconstrutivista, para o genealogista, não apenas não poderia haver nenhum juízo de valor “objetivo”, “desinteressado”, quer dizer, independente dos interesses vitais daquele que o carrega em si — o que já supõe a ruína das concepções clássicas do direito e da moral —, mas, pelas mesmas razões, não poderia também haver nem “sujeito em si”, autônomo e livre, nem “fatos em si”, objetivos e absolutamente verdadeiros. Pois todos os nossos juízos, todos os nossos enunciados, todas as frases que pronunciamos ou as ideias que emitimos são expressões de nossos estados vitais, de emanações da vida em nós e de modo algum entidades abstratas, autônomas, independentes das forças vitais que nos habitam. E toda a obra da genealogia vai provar essa verdade nova, mais elevada que todas as outras.Eis também por que, segundo uma das fórmulas mais célebres de Nietzsche, “não existem fatos, apenas interpretações”: assim como nunca poderíamos ser indivíduos autônomos e livres, transcendendo o real no seio do qual vivemos, mas apenas produtos históricos, inteiramente imersos nesta realidade que é a vida, da mesma forma, contrariando o que pensam os positivistas ou os cientistas, não existem “estados de fato em si”. O erudito diz habitualmente: “Os fatos aí estão!”, para afastar uma objeção ou simplesmente para manifestar o sentimento que experimenta diante do constrangimento da “verdade objetiva”. Mas os “fatos” aos quais ele pretende se submeter como a um dado intangível e incontestável nunca são, se nos situamos num nível de reflexão mais profundo, nada além do produto, ele próprio flutuante, de uma história da vida em geral e das forças que compõem este ou aquele instante particular.A filosofia autêntica leva, portanto, a um ponto de vista abissal: a tarefa de desconstrução que anima o genealogista acaba constatando que por trás das avaliações não existe fundo, mas um abismo; por trás dos próprios abismos, outros abismos, para sempre inacessíveis. Sozinho, à margem do “rebanho”, cabe então ao filósofo autêntico enfrentar a tarefa angustiante de olhar face a face esse abismo:O solitário [...] duvida até que um filósofo possa ter opiniões “verdadeiras e últimas”; ele se pergunta se não há nele, necessariamente, por trás de cada caverna uma outra que se abre, mais profunda ainda, e abaixo de cada superfície um mundo subterrâneo mais vasto, mais estranho, mais rico, e sob todos os fundos, sob todas as fundações, um âmago mais profundo ainda. “Toda filosofia é uma fachada” — tal é o juízo do solitário [...]. Toda filosofia dissimula uma outra filosofia, toda opinião é um esconderijo, toda palavra pode ser uma máscara.31Mas se o conhecimento jamais alcança a verdade absoluta, se seu horizonte é continuamente recuado, impedindo que atinja a rocha sólida e definitiva, é porque, evidentemente, o próprio real é um caos que não se parece em nada com o sistema harmonioso dos Antigos, nem mesmo com o universo ainda mais ou menos “racionalizável” dos Modernos.É com essa nova ideia que você vai entrar de fato no cerne do pensamento nietzschiano.
B. Ontologia: uma definição do mundo como um caos que nada tem de cósmico ou de divino
Se você quer compreender bem Nietzsche, tem apenas de partir da ideia de que ele pensa o mundo quase que de modo oposto aos estoicos. Estes faziam do mundo um cosmos, uma ordem harmoniosa e boa que nos convidavam a tomar como modelo para que nela encontrássemos nosso justo lugar. Nietzsche, ao contrário, pensa o mundo tanto orgânico quanto inorgânico, tanto em nós quanto fora de nós, como um vasto campo de energia, um tecido de forças ou de pulsões cuja multiplicidade infinita e caótica é irredutível à unidade. Em outras palavras, o cosmos dos gregos é para ele a mentira por excelência, uma bela invenção, de fato, mas simplesmente destinada a consolar e a tranquilizar os homens:
Sabem o que é o “mundo” para mim? Querem que eu o mostre em meu espelho? Esse mundo é um monstro de forças, sem começo nem fim, uma soma fixa de forças, dura como o bronze, [...] um mar de forças tempestuosas, um fluxo perpétuo.32
Você talvez me diga, depois de ter lido a citação, que o cosmos dos gregos havia explodido já com os Modernos, por exemplo, com Newton e Kant. E você me perguntará em que Nietzsche vai ainda mais longe que eles na desconstrução da ideia de harmonia.
Respondendo brevemente, posso dizer que a diferença entre o pós-moderno e o moderno, a diferença entre Nietzsche e Kant (ou Newton e Claude Bernard), é que estes ainda procuram com todas as forças encontrar unidade, coerência e ordem no mundo, nele injetar racionalidade, lógica. Você se lembra do exemplo de Claude Bernard e seus coelhos: o cientista procura desesperadamente explicações; quer dar sentido, razão ao curso das coisas. E o mundo de Newton, mesmo sendo um tecido de forças e de objetos que se entrechocam, não deixa de ser, no fim das contas, um universo coerente, unificado e regido por leis — como a da gravitação universal que possibilita encontrar certa ordenação das coisas.
Para Nietzsche, tal empreitada é perda de tempo. Ela continua vítima das ilusões da razão, do sentido e da lógica, pois nenhuma reunificação das forças caóticas do mundo é mais possível. Como os homens do Renascimento, que viam o cosmos desabar sob os golpes da física nova, somos tomados de pavor, mas nenhum “consolo” é possível:
O grande frisson se apodera de nós mais uma vez — mas quem teria vontade de recomeçar logo a divinizar este monstro de mundo desconhecido à maneira antiga... Ah, essa coisa desconhecida compreende excessivas possibilidades de interpretações não divinas, diabrura demais, estupidez, palhaçada...33
O racionalismo científico dos Modernos é nada mais que uma ilusão, um modo de, no fundo, perseguir a ilusão das cosmologias antigas, uma “projeção” humana (e Nietzsche já emprega palavras que logo Freud usará), quer dizer, um modo de tomar nossos desejos por realidades, de nos oferecer um simulacro de poder sobre uma matéria insensata, multiforme, caótica, que na verdade nos escapa totalmente.
Há pouco eu lhe falava de Picasso e Schönberg, pais fundadores da arte contemporânea. No fundo, eles estão em sintonia com Nietzsche. Se você olhar para seus quadros ou escutar sua música, verá que o mundo que eles nos apresentam é também um mundo desestruturado, caótico, fragmentado, ilógico, despojado da “bela unidade” que a perspectiva e o respeito às regras da harmonia conferiam às obras de arte do passado. Isso lhe dará uma ideia exata do que Nietzsche tenta pensar cinquenta anos antes deles. E você observará que a filosofia, mais do que as artes, sempre esteve à frente de seu tempo. Como você vê, nessas condições, há poucas chances de que a atividade filosófica consista na contemplação de sei lá que ordem divina, estruturante do universo. É impossível que ela assuma, em sentido estrito — pelo menos se levarmos em consideração a etimologia —, a forma de uma theoria, de uma visão do que quer que seja “divino”. A ideia de um universo único e harmonioso é a ilusão suprema. Para o genealogista, é sem dúvida arriscado, mas, apesar disso, necessário dissipá-la.
Contudo, nem por isso Nietzsche deixa de ser filósofo. Portanto, como todo filósofo, ele deverá tentar compreender o real que nos cerca, apreender a natureza profunda desse mundo no qual, mesmo e sobretudo se ele for caótico, temos de aprender a nos situar!
Mas, em vez de procurar a todo custo uma racionalidade no caos, esse tecido de forças contraditórias que é o universo e que ele chama de Vida, Nietzsche vai propor a distinção entre duas ordens, dois grandes tipos de força — ou, como ele diz, “pulsões” ou “instintos”: de um lado, as forças “reativas”; do outro, as forças “ativas”.
É baseado nessa distinção que todo o seu pensamento vai se fundamentar. É preciso bastante atenção para que você compreenda em profundidade, pois suas raízes e ramificação são muito extensas, mas, como você verá, por isso mesmo tanto mais esclarecedoras.
Numa primeira abordagem, pode-se dizer que as forças reativas tomam como modelo, no plano intelectual, a “vontade de verdade” que anima a filosofia clássica e a ciência; no plano político, elas tendem a realizar o ideal democrático. As forças ativas, ao contrário, agem especialmente na arte, e seu universo natural é o da aristocracia.
Vejamos com atenção.
As forças “reativas” ou a negação do mundo sensível: como elas se exprimem na “vontade de verdade” cara ao racionalismo moderno e culminam no ideal democrático
Comecemos pela análise das forças “reativas”: são aquelas que só podem se expandir no mundo e produzir todos os seus efeitos, reprimindo, aniquilando e mutilando outras forças. Ou melhor, elas só conseguem se instalar opondo-se; elas partem da lógica do “não” mais do que do “sim”, do “contra” mais do que “a favor”. Toma como modelo a busca da verdade, pois esta se conquista sempre mais ou menos negativamente, pela refutação dos erros, das ilusões, das falsas opiniões. E essa lógica vale tanto para a filosofia quanto para as ciências positivas.
O exemplo em que Nietzsche pensa, aquele que tem em mente quando se refere a essas conhecidas forças reativas, é o dos grandes diálogos de Platão. Não sei se você já reparou num desses diálogos, mas é importante saber que eles se desenvolvem quase sempre do seguinte modo: os leitores — ou espectadores, pois eles podiam também ser encenados diante do público, como uma peça de teatro — assistem às conversas entre um personagem central, quase sempre Sócrates, e interlocutores, ora receptivos e ingênuos, ora mais ou menos hostis e ansiosos por contradizer Sócrates. Isso acontece, sobretudo, quando este se opõe aos chamados “sofistas”, quer dizer, os mestres do discurso, da “retórica”, que não pretendem, diferentemente de Sócrates, buscar a verdade, mas apenas ensinar os meios de seduzir e persuadir pela arte da oratória.
Depois de ter escolhido um tema de discussão filosófica — do tipo: o que é a coragem, a beleza, a virtude etc. —, Sócrates sugere que seus interlocutores busquem em conjunto os “lugares-comuns”, as opiniões correntes sobre o assunto, a fim de tomá-los como ponto de partida, e se erguerem acima deles, até atingirem, se possível, a verdade. Assim que essa verificação é concluída, a discussão começa: é o que chamamos de “dialética”, a arte do diálogo no decorrer do qual Sócrates não para de fazer perguntas a seus interlocutores, o mais das vezes para lhes mostrar que se contradizem, que suas ideias ou suas convicções primeiras não se sustentam, e que é preciso que eles reflitam mais se quiserem avançar.
Você precisa saber uma coisa sobre os diálogos de Platão, importante para podermos voltar às “forças reativas” que estão em jogo, segundo Nietzsche, na busca da verdade tal como Sócrates a pratica: é que essa troca entre Sócrates e seus interlocutores é, na verdade, desigual.
Sócrates sempre ocupa uma posição deslocada em relação àquele que está sendo interrogado e com quem dialoga. Sócrates finge não saber, faz papel de ingênuo — ele tem, se ouso dizer, um lado de “inspetor Columbo”34 — quando na verdade sabe perfeitamente para onde vai. O deslocamento em relação ao interlocutor se deve ao fato de que eles não estão no mesmo nível; ao fato de que Sócrates pretende se colocar em pé de igualdade com ele, mas de fato está ali como o mestre diante do discípulo. É o que os românticos alemães chamaram de “ironia socrática”: ironia, porque Sócrates joga, porque ele não apenas está deslocado em relação àqueles que o cercam, mas, sobretudo, consigo mesmo, já que ele conhece perfeitamente, ao contrário de quem está diante dele, o papel que representa.
É também nesse ponto que Nietzsche considera sua atitude essencialmente negativa ou reativa: não apenas a verdade que ele busca não consegue se impor senão por meio da refutação de outras opiniões, mas ainda ele próprio não afirma nada de arriscado, ele não se expõe, não propõe nada de positivo. Contenta-se, seguindo o célebre método da “maiêutica” (da “arte do parto”), em pôr o interlocutor em dificuldade, em levá-lo a cair em contradição, a fim de fazê-lo parir a verdade.
No pequeno capítulo do Crepúsculo dos Ídolos dedicado a Sócrates que há pouco o aconselhei a ler, Nietzsche o compara a um treme-treme, peixe elétrico que paralisa suas presas. Porque é na contestação que o diálogo avança, para, afinal, tentar chegar a uma ideia mais acertada. Esta se apresenta, pois, contra lugares-comuns aos quais ela se opõe, considerando o que “se sustenta” ou “não se sustenta”, o que é coerente ou contraditório; ela nunca aparece direta ou imediatamente, mas sempre indiretamente, por meio da rejeição das forças da ilusão.
A essa altura, você já percebe o laço que existe no espírito de Nietzsche entre a paixão socrática do verdadeiro, a vontade de busca da verdade, filosófica ou científica, e a ideia de “forças reativas”.
Para Nietzsche, a busca da verdade revela-se até duplamente reativa, pois o conhecimento verdadeiro não se constrói apenas num combate contra o erro, a má-fé e a mentira, mas numa luta contra as ilusões inerentes ao mundo sensível enquanto tal. A filosofia e a ciência só podem de fato funcionar na oposição do “mundo inteligível” ao “mundo sensível”, de tal sorte que o segundo será inevitavelmente desvalorizado pelo primeiro. É um ponto crucial para Nietzsche, e é importante que você o compreenda bem.
Nietzsche critica todas as grandes tradições científicas, metafísicas e religiosas — ele pensa especialmente no cristianismo — por terem continuamente “desprezado” o corpo e a sensibilidade em benefício da razão. Pode parecer estranho que ele ponha no mesmo saco as ciências e as religiões. Mas o pensamento de Nietzsche não se perde, e essa aproximação não é incoerente. Com efeito, a metafísica, a religião e a ciência, apesar de tudo o que as separa e até mesmo do que as opõe, têm em comum o fato de pretenderem ascender às verdades ideais, a entidades inteligíveis que não se tocam concretamente nem se veem, a noções que não pertencem ao universo corporal. É, pois, também contra ele — aí reencontramos a ideia de “reação” — que elas atuam, pois os sentidos, como sabemos, nos enganam o tempo todo.
Você quer uma prova bem simples? Aqui vai uma: se nos apoiássemos apenas nos dados sensoriais — a visão, o tato etc. —, a água, por exemplo, poderia muito bem se mostrar em formas múltiplas, diferentes e mesmo contraditórias — a água fervente queima; a chuva é fria, a neve é mole, o gelo é duro etc. —, quando, na verdade, trata-se sempre de uma única e mesma realidade. Por isso é necessário saber se elevar acima do sensível, e até mesmo pensar contra ele — o que de novo depende de uma força reativa — se quisermos atingir o “inteligível”, alcançar a “ideia da água”, ou, diríamos hoje, essa abstração científica, puramente intelectual e não sensível, designada por uma fórmula química como H2O.
Do ponto de vista da “vontade de verdade”, como diz Nietzsche, do ponto de vista do cientista ou do filósofo que quer alcançar um conhecimento verdadeiro, é preciso, consequentemente, rejeitar todas as forças que provêm da mentira e da ilusão, mas também todas as pulsões que dependem exclusivamente da sensibilidade, do corpo. Em resumo, é preciso desconfiar de tudo o que é essencial à arte. E, com certeza, Nietzsche suspeita que por trás dessa “reação” se esconda uma dimensão inteiramente outra além da preocupação com a verdade. Talvez uma opção ética inconfessada, a escolha de alguns valores em detrimento de outros, um preconceito escondido em benefício do “além” contra “este mundo”...
Em todo caso, o ponto é essencial. De fato, se nos recusarmos não apenas a buscar a verdade, mas, com ela, o ideal do humanismo democrático, então, a crítica da filosofia moderna e dos “valores burgueses” sobre as quais ela repousa estará completa para Nietzsche: teremos desconstruído ao mesmo tempo o racionalismo e o humanismo! Porque as verdades que a ciência quer alcançar são “intrinsecamente democráticas”; são daquelas que pretendem valer para todos, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Uma fórmula como 2 + 2 = 4 não conhece fronteiras, nem a das classes sociais nem as do tempo e do espaço, da geografia e da história. Ela tende, em outras palavras, à universalidade, e nisso — e me parece que o diagnóstico nietzschiano é pouco discutível nesse ponto — as verdades científicas estão no cerne da humanidade, ou, como ele gosta de dizer, elas são “rústicas”, “plebeias”, fundamentalmente “antidemocráticas”. Aliás, é isso que os cientistas, frequentemente republicanos, apreciam na ciência de cada um deles: ela se dirige tanto aos poderosos como aos fracos, tanto aos ricos quanto aos pobres, tanto ao povo quanto aos príncipes. Por isso Nietzsche se diverte, às vezes, sublinhando a origem plebeia de Sócrates, o inventor da filosofia e da ciência, o primeiro promotor das forças reativas orientadas para o ideal do verdadeiro. Por isso também a equivalência que estabelece, no capítulo do Crepúsculo dos Ídolos dedicado ao “problema de Sócrates”, entre o mundo democrático e a recusa da arte, entre a vontade de verdade socrática e a feiura, de fato legendária, do herói dos diálogos de Platão, que assinala o fim de um mundo aristocrático ainda moldado em “distinção” e “autoridade”.
Vou citar uma passagem desse texto para que você reflita. Em seguida, vou explicá-lo detalhadamente para lhe mostrar como é difícil ler Nietzsche mesmo quando parece simples, pois o sentido verdadeiro do que escreve é, às vezes, o contrário do que ele parece dizer. Eis o texto:
Sócrates pertencia, por sua origem, à mais baixa camada do povo: Sócrates era o populacho. Sabe-se, vê-se ainda como era feio... Afinal, Sócrates era grego? A feiura é frequentemente a expressão de uma evolução cruzada, entravada pela mestiçagem... Com Sócrates, o gosto grego se altera em benefício da dialética. O que acontece exatamente? Antes de tudo, é um gosto distinto que é derrotado. Com a dialética, o povo consegue levar vantagem... O que precisa ser demonstrado para convencer não vale grande coisa. Em todo lugar onde a autoridade ainda é de bom-tom, em todo lugar em que não se “raciocina”, mas se ordena, a dialetização é uma espécie de polichinelo. Riem dele, não o levam a sério. Sócrates foi o polichinelo que conseguiu ser levado a sério...
É difícil, hoje, ignorar o que um discurso como esse pode ter de desagradável. Todos os ingredientes da ideologia fascista parecem estar aí entrelaçados: culto da beleza e da “distinção” do qual o “populacho” está por natureza excluído, classificação dos indivíduos segundo suas origens sociais, equivalência entre povo e feiura, valorização da nação, no caso, a Grécia, suspeitas dolorosas de uma impossível mestiçagem, supostamente explicativa não se sabe de que decadência... Não falta nada. Não fique, contudo, com essa primeira impressão. Não que ela seja — que pena! — inteiramente falsa. Como, aliás, já lhe disse, não foi por acaso que os nazistas retomaram Nietzsche. No entanto, a passagem não faz justiça ao que, apesar de tudo, pode haver de profundo na interpretação que ele dá à figura de Sócrates. Antes de rejeitá-la em bloco, sugiro que consideremos juntos, com mais atenção, o sentido de suas palavras, para extrair delas, tanto quanto possível, sua significação profunda.
Para tanto, precisamos enriquecer ainda mais nossa reflexão e levar em conta, agora, o outro componente do real, ou seja, essas célebres forças ativas que completam, ao lado das reativas, a definição do mundo, do real, que Nietzsche tenta alcançar.