Quando “caio” de amores, não há dúvida de que, a menos que eu seja Narciso, estou mesmo seduzido por um ser exterior a mim, por uma pessoa que me escapa e até porque, além do mais, sou muitas vezes dependente dela. Há, pois, nesse sentido, transcendência. Mas é claro também que essa transcendência do outro é em mim que sinto. Mais ainda: ela se situa naquilo que, dentro de mim, é o mais íntimo na esfera do sentimento, ou, como se diz, do “coração”. Não se poderia encontrar metáfora mais bonita da imanência do que essa imagem do coração. Este é, por excelência, ao mesmo tempo o lugar da transcendência — do amor do outro como irredutível a mim — e da imanência do sentimento amoroso ao que minha pessoa tem de mais íntimo. Transcendência na imanência, portanto.
(Luc Ferry - Aprender a Viver)
...Uma terceira forma de transcendência, diferente das duas primeiras, pode ainda ser pensada. Ela já fixa raízes no pensamento de Kant, em seguida caminha até nós por intermédio da fenomenologia de Husserl. Trata-se do que Husserl, que gostava bastante do jargão filosófico, chamava de “transcendência na imanência”. A fórmula não é muito eloquente, mas encobre uma ideia de grande profundidade.
Eis como, segundo contam, o próprio Husserl gostava de explicar a seus alunos — pois, como muitos grandes filósofos, Kant, Hegel, Heidegger, que foi seu aluno, e tantos outros, ele era antes de tudo um grande professor.
Husserl tomava de um cubo — ou um paralelepípedo retangular, pouco importa —, por exemplo, uma caixa de fósforos, e o mostrava aos alunos fazendo-os observar o seguinte: não importando a maneira como se mostrasse o cubo em questão, não veríamos nunca mais que três faces ao mesmo tempo, embora ele tivesse seis.
E daí?, você me dirá. O que isso significa e o que se pode concluir no plano filosófico?
Antes de tudo, o seguinte: não há onisciência, não há saber absoluto, pois todo visível (no caso, o visível é simbolizado pelas três faces expostas do cubo) se apresenta sempre sobre um fundo de invisível (as três faces escondidas). Em outras palavras, toda presença supõe uma ausência, toda imanência, uma transcendência escondida, toda doação de objeto, alguma coisa que se tira.
(Luc Ferry - Aprender a Viver)
Eis como, segundo contam, o próprio Husserl gostava de explicar a seus alunos — pois, como muitos grandes filósofos, Kant, Hegel, Heidegger, que foi seu aluno, e tantos outros, ele era antes de tudo um grande professor.
Husserl tomava de um cubo — ou um paralelepípedo retangular, pouco importa —, por exemplo, uma caixa de fósforos, e o mostrava aos alunos fazendo-os observar o seguinte: não importando a maneira como se mostrasse o cubo em questão, não veríamos nunca mais que três faces ao mesmo tempo, embora ele tivesse seis.
E daí?, você me dirá. O que isso significa e o que se pode concluir no plano filosófico?
Antes de tudo, o seguinte: não há onisciência, não há saber absoluto, pois todo visível (no caso, o visível é simbolizado pelas três faces expostas do cubo) se apresenta sempre sobre um fundo de invisível (as três faces escondidas). Em outras palavras, toda presença supõe uma ausência, toda imanência, uma transcendência escondida, toda doação de objeto, alguma coisa que se tira.
(Luc Ferry - Aprender a Viver)
Apesar de mais velho, o roqueiro Bruce Springsteen preservou sua vitalidade criativa e de desempenho. Suas novas canções são tão boas quanto seus clássicos, e ele as canta por generosas três horas sem perder o prazer e a alegria. Mas o jovem casal que está sentado ao meu lado é a imagem congelada da desolação. Na fileira da frente, quatro homens se levantam de repente com cara de quem vai reclamar com o administrador do evento. Será que essas pessoas estão genuinamente decepcionadas? O que mais elas podiam querer? E os que ainda parecem estar de bom humor conversam, riem e bebem cerveja durante todo o show como se estivessem num bar e a música tocasse numa tela num canto distante. Esse concerto está sendo apresentado num estádio, e dos milhares de pessoas que estão de pé no meio do campo, mais perto do palco e com muito espaço livre, poucas estão dispostas a dançar. É um clima muito diferente dos primeiros tempos do rock, quando a plateia enlouquecia, lotava teatros e se descontrolava nas ruas. Uma imagem da noite é dada por uma família algumas fileiras à minha frente, todos loiros e vestidos com roupas da moda, que ignoram totalmente o show para fotografar uns aos outros com as câmeras dos celulares.
É fácil entender por que tantos comentaristas falam da tendência niveladora da cultura contemporânea. A constante exposição ao entretenimento tornou muita gente incapaz de manter o interesse, quanto mais a transcendência.
Há uma indiferença equivalente na alta cultura, causada pelos efeitos neutralizadores do relativismo, que torna tudo igualmente significativo e portanto igualmente insignificante. Fazer elogios entusiasmados a escritores, músicos ou artistas é considerado ingênuo, infantil, com certeza embaraçoso. Para um crítico, expressar uma simples aprovação seria uma falta de tato imperdoável. Na cultura popular, a tirania do “legal” tem o mesmo efeito dissuasivo. A linguagem é diferente, mas a estratégia é a mesma – considerar a indiferença o máximo de sofisticação. O entusiasmo não é aceitável porque é uma afronta à indiferença.
Além da crônica e generalizada indiferença, há a crônica e generalizada ingratidão – uma consequência inevitável da nossa era de prerrogativas de direitos. Se tudo é merecido, não há por que ser grato. Mas a gratidão é a base da afirmação e da transcendência. Mas o que é transcendência? O termo abrange um grande número de crenças, sentimentos, atitudes e estados imprecisamente definidos e sobrepostos, que incluem fé religiosa, misticismo, exaltação, alegria, êxtase e prazer, descendo ao simples entusiasmo e à absorção, depois descendo mais ainda ao ato de beber uma jarra de margaritas e dançar em cima da mesa numa noite de sábado.
O mundo de ninguém |
A transcendência é importante porque parece ser necessária para escapar de vez em quando ao fardo da consciência de si. Até as culturas mais antigas procuravam essa válvula de escape. Nas sociedades “primitivas” de todo o mundo havia rituais muito semelhantes que envolviam pintar o rosto e dançar com acompanhamento rítmico.1 Eram especialmente comuns as danças em círculo ou em fila – e é reconfortante saber que, quando os parentes de minha mulher curtem uma das suas “grandes noitadas” que culminam num hokey-cokey(Dança folclórica de longa tradição, muito conhecida nos países de língua inglesa. Além da melodia e do ritmo, o hokey-cokey tem uma letra própria que vai sugerindo os gestos da dança. (N. da T.)) e numa conga, estou participando de um ritual que tem no mínimo 10.000 anos. Os observadores ocidentais das danças “primitivas” em geral ficavam assustados com o que interpretavam como abandono e frenesi destinados a criar um clima propício à orgia – mas muitos dos rituais eram cuidadosamente planejados e disciplinados, comportados, e ocorriam apenas em certas épocas do calendário, em agradecimento pelo esforço da comunidade. As culturas primitivas entendiam que o êxtase não é fácil nem vem de graça, mas tinha que ser aprendido e merecido.
Na Europa esse êxtase ritual persistiu nos festejos de carnaval da Idade Média, mas foi violentamente reprimido tanto pelo calvinismo quanto pela Contrarreforma. A dança, originalmente praticada em grupo, reduziu-se no século XIX a uma atividade praticada por casais e, no final do século XX, era praticamente uma performance solo. Agora a pessoa precisa ser seu próprio xamã e inventar sua própria dança xamânica.
No mundo moderno, as religiões monoteístas tornaram-se a forma aceitável de transcendência – e quando isso desapareceu, no século XX, surgiu a religião laica do socialismo internacional. Mas foi ficando cada vez mais difícil acreditar num paraíso acima do mundo ou numa utopia à frente dele.
Uma alternativa é localizar a transcendência ideal nem acima nem à frente, mas no próprio mundo – o panteísmo. Para escapar à ira dos fiéis, o panteísmo quase sempre pretendeu ser uma versão do monoteísmo – mas essencialmente pagão. A tradição sufi, uma versão do islamismo que floresceu na Pérsia no fim do primeiro milênio e ainda é uma presença contemporânea, justifica seu panteísmo com o argumento de que Deus criou o mundo para ser conhecido através dele, explicando a Seu profeta: “Sou um Tesouro Escondido e desejei ser conhecido, e por isso fiz a Criatura, para poder ser conhecido!”2 Afinal, talvez esse anseio por reconhecimento não seja tão moderno – Deus pode ter criado o mundo para ser venerado como a suprema celebridade. Para os sufis, tudo no mundo era uma epifania, e o mundo não era apenas encantado, mas divino – uma crença que inspirou o poeta Jelaluddin Rumi a criar a dança giratória dos dervixes e poemas igualmente frenéticos.
“Há uma incandescente semente interior.
Você a preenche com seu próprio ser, ou ela morre.
Sou apanhado nesta energia circulante! Seus cabelos!
Qualquer um calmo e sensato fica insano!”3
Spinoza também era panteísta e falou desse “ser eterno e infinito que chamamos de Deus ou Natureza”,4 embora a palavra “Deus” possa ter sido acrescentada à frase para aplacar os crentes. E muitos poetas, de Wordsworth a Rilke, adotaram formas de panteísmo que inspiram uma afirmação extática, porque a fuga do self se dá numa união mística com tudo o que existe.
As formas intensas e duradouras de felicidade parecem derivar do panteísmo. Eu deveria fundar uma Igreja dos Panteístas Contemporâneos, que teria como profetas Rumi, Spinoza, Wordsworth e Rilke. Essa religião teria a vantagem de criar constantes e sérias dificuldades. Ninguém acharia fácil sentir a presença divina numa sala de espera de cinema ou num saguão de embarque – e só Rumi em pessoa poderia acreditar no Bem-Amado imanente no meio de um shopping center. O mais provável é que esses lugares inspirassem uma crença maniqueísta no homem como criatura decaída e no mundo como reino de trevas eternas. Naturalmente, nossa era prefere o caminho mais rápido e fácil para a transcendência: as drogas. Segundo a neurociência, o problema é que as drogas que causam bem-estar – cannabis, cocaína, heroína, ecstasy – não reproduzem exatamente o êxtase natural, mas produzem efeitos equivalentes ao prolongar ou suprimir outros efeitos, e esses sucessivos prolongamentos e supressões causam dano permanente ao cérebro.5 Os pequenos ganhos de curto prazo resultam em grandes perdas a longo prazo – demonstração psicológica de uma verdade: não existe caminho fácil e livre para o paraíso. Por outro lado, a euforia natural e conquistada cria novas e duradouras associações benéficas.
Acredita-se que outra popular forma de transcendência – a paixão amorosa – produza euforia sem esforço, mas ela também acarreta complicações a longo prazo (veja mais detalhes no capítulo 12).
Para mim, um descrente, o auge da euforia é a exaltação, melhor ainda que o êxtase sexual, que entretanto perde por muito pouco. Felizmente, essas duas supremas excelências não se excluem. É possível experimentá-las ao mesmo tempo, e aquele que for abençoado com tal graça não só se fundirá misticamente na Grande Cadeia do Ser como também será uno com Deus no paraíso eterno.
Mas a exaltação é fugidia e rara, uma entre várias experiências de alta intensidade que incluem a inspiração artística, a epifania (no sentido de uma significância mística, mas laica, como foi descrita por Joyce e Proust), o insight, a solução de problemas e a intuição. São experiências que não podem ser alcançadas pela vontade, mas que surgem abrupta e inesperadamente, oferecem certeza absoluta sem necessidade de explicação e são intensamente prazerosas, mas breves. Parecem aleatórias e gratuitas – mas a dádiva aparentemente imerecida é em geral a recompensa por um esforço árduo, persistente e paciente. No caso da inspiração artística, esse esforço é a disciplina de aprender e praticar o ofício. No caso do insight e da solução de problemas, é um pensamento prolongado e inconsciente.
No caso da intuição, é a observação e análise da experiência. No caso da epifania, é o hábito da atenção intensa ao mundo físico. Mas o que prepara a mente para a exaltação, uma experiência que oferece o êxtase da revelação sem a revelação? Minha hipótese é que o cérebro oferece a exaltação como recompensa por esforços anteriores – uma espécie de cartão de fidelidade. Em recompensa pela concentração no passado, o cérebro oferece o prêmio de um sentimento de descoberta triunfante sem o produto dessa descoberta. Portanto, de certa maneira, até a exaltação tem que ser conquistada.
Naturalmente, nossa era de prerrogativas de direitos gostaria de uma duradoura versão da experiência a custo zero. Uma neurocientista americana, Jill Bolte Taylor, teve de fato essa experiência duradoura, embora não tenha sido totalmente gratuita.6 Certa manhã, ela despertou com um sentimento de extrema euforia. Esta é a parte boa. A parte ruim é que ela também estava parcialmente paralisada e incapaz de falar. Tinha acabado de sofrer um derrame que nocauteara o hemisfério esquerdo de seu cérebro, mas preservara o hemisfério direito. O hemisfério esquerdo opera de uma maneira mais sequencial, é responsável por analisar o passado e preparar para o futuro, e mantém o constante resmungo mental que constitui a consciência. Assim sendo, o derrame ofereceu a Taylor uma transcendência natural, afastando-a de seu self ao desabilitar o local do cérebro onde ele reside. O hemisfério direito, que até recentemente se acreditava ser inerte e sem propósito, processa a informação de uma maneira mais paralela e oferece coerência e significado às informações sensoriais do presente. É essa combinação de baixa carga de trabalho e maior capacidade de fazer novas conexões que permite ao hemisfério direito produzir experiência mística, epifania, inspiração, insight e intuição. E porque o lado direito também processa as informações sensoriais do meio imediato, o sentimento de descoberta incandescente torna o mundo exterior vívido e sublime. É por isso que as experiências místicas são tão semelhantes à inspiração e ao insight, e que, quanto mais intensa a experiência, mais forte o assombro panteísta que o acompanha. Taylor descreveu sua euforia como um profundo sentimento de unidade com todas as coisas.
Mas, à medida que começou a reagir ao tratamento, o cérebro esquerdo de Taylor reativou o circuito das emoções negativas do hemisfério esquerdo, como ansiedade, medo, inveja, ressentimento e raiva. Como os psicólogos descobriram, as emoções negativas são mais fortes que as positivas. Mas Taylor não estava preparada para entregar seu recém-descoberto sentimento de unidade e bem-estar e lutou para suprimir os maus efeitos do lado esquerdo, chegando, através de um derrame e da neurociência, à conclusão a que os estoicos já tinham chegado milhares da anos antes: “Nada que seja exterior a mim tem o poder de me tirar a paz do coração e da mente. [...] Posso não estar em total controle do que acontece, mas sou eu que escolho como percebo minha experiência”.7 Sua técnica é permitir a essas reações instintivas do velho cérebro traiçoeiro seus noventa segundos de vida, mas depois usar o isolamento e a análise para identificálas e evitar que elas dominem sua mente. E ela acrescenta que, quando tenta ensinar a seus alunos essa técnica, eles se queixam veementemente de que ela exige demasiado esforço mental – mais um exemplo da rejeição da dificuldade.
A reação de Taylor a seu infortúnio também é a clássica estratégia estoica de tirar vantagem de qualquer coisa que aconteça. Ela talvez seja a única vítima de derrame a expressar entusiasmo pela experiência. Mas como liberar o lado direito do cérebro sem estar paralisado por um derrame no lado esquerdo?
Uma possibilidade é a meditação. Vários estudos do cérebro de pessoas que meditam regularmente chegaram a uma conclusão semelhante: a meditação aumenta a atividade no córtex pré-frontal, responsável por focar e manter a atenção, e diminui a atividade no hemisfério esquerdo.8 Mas não há menção a um aumento de atividade no hemisfério direito (embora os próprios praticantes de meditação tenham se referido a um aumento da consciência do ambiente circundante). Isso talvez ocorra porque quem medita se concentra intensamente numa única coisa – um mantra, uma imagem, a respiração – e com isso consegue suprimir a preocupação irritante do hemisfério esquerdo, mas não consegue usar o sonhador que é liberado do lado direito. Portanto, a grande vantagem da ruminação talvez não seja apenas a redução dos pensamentos incomodativos, mas um estímulo ao sonhador. Se imaginasse um ritual e um jargão adequados, eu poderia fazer fortuna como guru da Ruminação Transcendental (RT).
Outra possibilidade é que, se a transcendência é acompanhada por um sentimento de união com o aqui-e-agora, o reverso também seja verdade, e uma atenção intensamente focada no ambiente imediato possa facilitar a decolagem. Esse é o tipo de atenção estimulado por escritores como Joyce e Proust.
Para quem tem uma disposição ativa, ou desconfia de qualquer coisa mística e estética, a absorção proporciona uma baixa transcendência do self.
O psicólogo americano Mihaly Csikszentmihalyi usa a palavra “fluir” para descrever o estado mental profundamente satisfatório alcançado mediante uma imensa e prolongada concentração em atividades difíceis, que exijam um alto nível de habilidade.9 A experiência é semelhante num grande número de atividades aparentemente desconexas, entre elas o esporte competitivo, o alpinismo, o trabalho profissional, a execução de um instrumento musical, a criatividade artística, a dança, as artes marciais e o sexo.
Como em outros métodos de transcendência, essa satisfação tem que ser conquistada. A habilidade precisa primeiro ser adquirida, lentamente e mediante frustrações. Não há gratificação imediata. De fato, não poderia haver. O aprendiz pode não ter aptidão ou disciplina, mas, quando a habilidade se torna automática, o milagre pode ocorrer: uma absorção tão completa que exclui o ser, o tempo e o lugar. Horas ou até mesmo dias podem passar despercebidos. O self se dissolve e desaparece. E algo estranho ocorre. A atividade parece tornar-se não apenas fácil, mas autônoma – assumir o controle, ser dona de si. Então o instrumento toca sozinho, a espada se empunha, o poema se escreve, o bailarino não dança, mas permite que a música tome conta de seu corpo, e os amantes não fazem amor, mas se entregam ao vertiginoso movimento da Terra.
Existem muitos paradoxos nisso. Um intenso esforço é necessário para produzir a sensação de falta de esforço; intensa consciência para chegar à inconsciência; total controle para experimentar a total falta de controle. E só aqueles que estiverem em plena posse do self poderão se entregar plenamente. Na verdade, quanto mais forte a sensação do self, maior o arrebatamento por escapar à sua tirania. Como na meditação, a experiência fluida é consequência da atenção concentrada e persistente – e “atenção” é uma palavra-chave tanto para Csikszentmihalyi quanto para o zen-budismo. O conceito de fluxo também é familiar ao zen-budismo. Eis o que disse D. T. Suzuki ao explicar como o mestre esgrimista Takuan instruía os novatos: “O conselho de Takuan é manter a mente sempre ‘fluindo’, porque, quando ela para, o fluxo se interrompe, e essa interrupção é danosa para o bem-estar da mente. No caso de um esgrimista, isso significa a morte”.10
Esse reiterado foco numa atividade difícil é exatamente o que cria ou melhora as conexões cerebrais. E o prazer de fluir é tão intenso que reduz as atrações de poder, status, celebridade e, acima de tudo, de entretenimento passivo, estimulando um desejo de experimentar uma satisfação semelhante em outras atividades. É por isso que os físicos teóricos tocam bongô.
O truque é entender que são a atenção e a dificuldade que trazem a recompensa. Quando Csikszentmihalyi pesquisou adolescentes, descobriu que aqueles que tinham menos atividade fluida, que viviam na frente da tevê e perambulavam pelos shopping centers, alcançavam baixos níveis de satisfação, enquanto aqueles que estudavam e praticavam esportes alcançavam altos níveis em todas as avaliações – todas menos uma. Eles acreditavam que os ratos de shopping e viciados em tevê se divertiam mais que eles. Na verdade, estavam demasiado influenciados pela tirania do “legal” para perceber que eles eram os abençoados. Este é um exemplo que confirma a regra: a juventude raramente valoriza o que tem.
Foi emocionante saber, a partir de outra pesquisa de Csikszentmihalyi, que, quanto mais caro e complexo o equipamento, menos prazerosa é a atividade. Talvez exista um Deus justo afinal. Andar e dançar, atividades nas quais o corpo é o equipamento e o instrumento, são muito mais satisfatórias. Andar e dançar, mantendo um ritmo regular e extático, são a prosa e a poesia do corpo.
A mais modesta das atividades fluidas, a caminhada é também uma maneira eficiente de criar prontidão para a exaltação. Uma teoria defende que o bipedalismo é a origem da inteligência humana superior. Quando o animal humano se ergueu sobre as patas traseiras, as patas dianteiras ficaram livres para gesticular, o que evoluiu para a linguagem de sinais e depois para a fala – e essa nova e rica linguagem verbal aumentou enormemente o tamanho do cérebro. Nietzsche, o filósofo da exaltação, era um caminhante fanático. Assim como seu arqui-inimigo, Cristo. Só a iconografia mostra Jesus em repouso.
Leonardo da Vinci o colocou sentado na Última ceia – mas um bom mestre nunca se senta. Ele deve ter se movimentado de um lado para outro com uma palavra de confiança aqui, uma palavra de inspiração ali. E a maioria das representações do Sermão da Montanha mostra Jesus na costumeira pose estática, com olhos tristes e braços estendidos submissamente. Mas o filme de Pier Paolo Pasolini O Evangelho segundo São Mateus mostra Cristo vociferando no alto da montanha, atirando bem-aventuranças recém-cunhadas por sobre o ombro para que os discípulos se arrastem, física e mentalmente, para apanhá-las. Não é o Sermão da Montanha, mas o Sermão do Casco. Nietzsche costumava caminhar por seis a oito horas por dia, durante as quais teve alguns de seus melhores insights. E também adorava a dança: “Eu só acreditaria num Deus que soubesse dançar”.11
Ele se lamentava por não ser mais capaz de dançar: “Só sei proferir a parábola das coisas mais elevadas na dança – e agora minha maior parábola permaneceu indizível em meus membros”.12 E se definiu como o último discípulo do filósofo Dioniso, o deus cornudo do êxtase e primeiro Senhor da Dança, divindade que presidia os primitivos rituais e foi venerado sob vários nomes, entre eles Baco, Pã, Fauno, Osíris e Shiva. Dioniso (conhecido na Irlanda como Satã) chegou a se apresentar perto de minha cidade natal nos anos 1960 – num salão de dança, naturalmente. Uma noite qualquer de sábado no salão Mecca foi galvanizada pela aparição de um estranho de esplêndida beleza, todo vestido de preto, que sabia bailar com surpreendente languidez e facilidade. Todas as mulheres queriam estar com ele, que, naturalmente, escolheu a mais encantadora. Essa jovem dançou a noite toda em êxtase e concordou em sair com ele, mas, quando estavam partindo, ela olhou para baixo e viu o casco fendido. Não podia haver erro sobre a identidade do estranho. Mas, quando ouvi a história, eu me perguntei como, tendo tantos recursos para se parecer com Cary Grant, vestir-se como Johnny Cash e dançar como Elvis Presley, ele não fora capaz de esconder aquele estúpido casco. Em épocas mais remotas, as mulheres teriam seguido de bom grado o deus floresta adentro, mas, na Irlanda dos anos 1960, elas ficavam em casa – e o Mecca foi obrigado a fechar suas portas.
Mais do que qualquer outro pensador, Nietzsche perseguiu a transcendência em todos os níveis de intensidade – entusiasmo, embriaguês, alegria e exaltação –, o que foi ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza. Ele é o grande arejador da vida, a tônica do gim-tônica (Schopenhauer é a fatia de limão). Nietzsche efervesce, dança, salta, mas, quando o borbulhar desaparece, nada resta. Há pouco o que reter e usar. A principal função de Nietzsche é promover a euforia não farmacológica, um pensador mais para ser inalado do que estudado. Ele próprio usava os livros como estimulantes ilegais. O objetivo não era aprender, mas curtir e voar. Assim, seu famoso A vontade de poder, um título que não foi escolhido por ele, mas postumamente por seus editores, era na verdade apenas uma forma de embriaguez pessoal: “O primeiro efeito da felicidade é o sentimento de poder”.13 Note a expressão “sentimento de poder”. Deparei-me com essa expressão nove vezes em sua obra, mas ainda não o vi glorificar o exercício ou a detenção do poder. Na verdade, ele não tinha senão desprezo por aqueles que buscam a supremacia terrena: “Todos lutam pelo trono: é a sua loucura – como se a felicidade se sentasse num trono! Geralmente, é a imundície que se senta no trono”.14 Ele desprezava aqueles que lutavam para conquistar o poder aos outros e admirava os santos e os ascetas, que lutavam para conquistar o poder a si mesmos. O que ele buscava era a pura transcendência pessoal.
Seu erro foi tentar tornar permanente uma condição temporária. Ele enlouqueceu, se não por causa da, certamente na euforia. Talvez Deus, aborrecido de ter sido considerado morto, tenha decidido mostrar a esse super-homem quem tinha o mais arguto senso de humor e feito esse acusador da misericórdia abraçar, aos prantos, o cavalo moribundo que estava sendo chicoteado por um cocheiro no meio da rua.
Vale lembrar também que Nietzsche fazia teatro com frequência, causando escândalo apenas para chocar. E, do marquês de Sade a William Burroughs, a melhor maneira de chocar é enaltecer a crueldade. Mas ninguém genuinamente cruel faria tal declaração pública. Você não precisa fingir o que você é. Os nazistas, que Nietzsche foi acusado de inspirar, nunca se vangloriaram de ser cruéis. Ao contrário, vangloriavam-se de ser benfeitores da humanidade. Mas o perigo da encenação é que ela é interpretada literalmente pelos ingênuos. O próprio Nietzsche previu esse mal-entendido: “Há uma exuberância na bondade que pode parecer maldade”.15
Nietzsche é como os mestres zen que chamam a atenção de seus discípulos com koans, combinações de paradoxos, ilogicidade, surpresa e choque. Um dos mais famosos, atribuído a Linji, é: “Se encontrar Buda, mate-o”. Às vezes a provocação não era apenas mental, como nesse koan de Toku-san, que eu gostaria de usar para trazer uma instantânea iluminação a meus alunos: “Trinta golpes de minha equipe quando tiverem algo a dizer; os mesmo trinta golpes quando não tiverem nada a dizer”.16
Nietzsche é o único filósofo ocidental a possuir a principal qualidade zen, o entusiasmo – o que por si só já o torna merecedor de ser lido: “Bem cedo pela manhã, ao romper do dia, em toda a frescura e na aurora de sua força, ler um livro – é o que eu chamo de vicioso!17 Este “vicioso” no fim da frase é tão inesperado, mas perfeito, porque provoca uma coisa rara e maravilhosa: uma risada de puro deleite.
Outra forma leve de transcendência, o entusiasmo é mais uma atitude que um estado, e portanto pode ser cultivado. Exige antes de mais nada isolamento e, depois, o envolvimento paradoxal que o isolamento pode facilitar, uma combinação de curiosidade, atenção e análise. O entusiasmo ama o mundo, mas se recusa a aceitá-lo de acordo com sua própria avaliação, porque acha ridícula essa avaliação solene e arrogante. Portanto, o entusiasmo é essencialmente subversivo. É puro divertimento no absurdo da condição humana e um reconhecimento irônico do infinito talento cômico de Deus.
O maior exemplo de personagem entusiasmado é Puck, de Sonho de uma noite de verão – um meio-termo entre seus ridículos e briguentos mestres de magia e os igualmente ridículos e briguentos humanos. Puck é um mero funcionário, um administrador com pouca iniciativa ou poder de controlar – e, como costuma ser o destino dos administradores, não tem um conhecimento completo da situação, e portanto é culpado por atos inadequados. No entanto nunca se queixa. Um exemplo para todos os empregados ressentidos, ele curte tanto seu trabalho quanto as horas de insociabilidade, quando se diverte com o absurdo dos humanos (“Oh, mestre, como são loucos esses mortais!”)18 e a loucura geral (“E não há nada que me agrade tanto quanto ver um comportamento ridículo”)19.
Puck é um sofisticado e irônico Senhor da Desordem, personagem dos festejos carnavalescos medievais que ridicularizava e satirizava a ordem estabelecida. E a sátira e a zombaria eram atitudes quase sempre presentes nos rituais extáticos primitivos. O entusiasmo é há muito tempo um aspecto da transcendência e sempre envolveu um humor irreverente.
Como ser abençoado com o entusiasmo? Procurando-o. Ele é encontrado com maior frequência nas formas de arte que favorecem as breves explosões emocionais. É por isso que ele é raro na filosofia (Nietzsche voltou-se cada vez mais para os aforismos) e nos romances (embora um romance de Terry Southern, The magic Christian, apresente um perfeito Senhor da Desordem da era capitalista na figura do bilionário Guy Grand).
O entusiasmo sente-se mais à vontade na poesia e no jazz – e não é coincidência que ambos tenham o ritmo como base. Mas o caráter espontâneo, direto e breve dos bons poemas e solos de jazz os faz parecer fáceis. Parece que qualquer pessoa poderia ter feito aquilo. Assim, todo mundo tenta, e por isso 99 por cento da poesia e do jazz são um lixo deprimente. Porque a excelência requer tempo e energia. É especialmente difícil encontrar um bom solo de jazz. Por isso fui a um lendário clube de jazz de Nova York mais com o espírito de um peregrino do que na esperança de ouvir algo inspirador. E o clube não tinha de fato nada que inspirasse – um porão úmido, escuro e decadente onde o vinho era caro e tinha gosto de anticongelante temperado com fel. Os músicos eram negros de meia-idade pesados e desencantados, que deviam inventar e surpreender duas vezes por noite, com três shows nos fins de semana. Quem conseguiria? Então eles faziam o que podiam, desanimados, acompanhados por um baterista de cabelos brancos que algum dia tinha tocado com vários dos grandes, todos mortos, e que agora estava evidentemente conformado de tocar para viver. A plateia, pouca e branca, reagia com entusiasmo equivalente, e os músicos agradeciam ao magro aplauso com um gesto cansado. Assim é a vida. Você se vira com o que tem. Você aguenta.
Mas, pouco antes do final do último show, um dos saxofonistas de repente deu um passo à frente, abriu as pernas, suspirou e, erguendo-se na ponta dos pés, tocou furiosamente, ardentemente, debochadamente, superfluamente. Foi um choque elétrico que sacudiu todo mundo do clima de torpor. Aquela letargia de hábito e rotina não era vida. Isso era vida: complexa, surpreendente, desafiadora e cheia de entusiasmo. Dessa vez a reação da plateia foi sincera – mas o solista estava surdo a ela. Ele se atirou numa banqueta e ouviu o mais doce dos aplausos, o que vem de dentro. Mas também foi bonito quando o velho baterista, até então uma escultura do monte Rushmore,(O parque nacional do estado de Dakota do Sul (Estados Unidos) onde foram esculpidas as grandiosas esculturas da cabeça de quatro presidentes americanos (George Washington, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e Theodore Roosevelt). (N. da T.)) se inclinou e tocou com as baquetas levemente no ombro do companheiro.
(Michael Foley - A era da loucura, Como o mundo moderno tornou a felicidade uma meta (quase) impossível)
Transcendência e o sentido da vida: O sagrado e o profano |
1. Para mais detalhes, ver Barbara Ehrenreich, Dancing in the Streets: A Histoy of Collective Joy, Granta, 2007.
2. Citado por Peter Avery na introdução de The Rubaiyat of Omar Khayyam, Penguin, 1981.
3. Jelaluddin Rumi, The Essential Rumi, HarperCollins, 1995.
4. Spinoza (1966), op. cit.
5. Susan Greenfield, ID: The Quest for Meaning in the 21st Century, Hodder & Stoughton, 2008.
6. Jill Bolte Taylor, My Stroke of Insight, Hodder & Stoughton, 2008.
7. Ibid.
8. Por exemplo, A. Newberg et al., “The measurement of regional cerebral blood flow during the complex cognitive task of meditation: a preliminary SPECT study”, Psychiatry Research: Neuroimaging, 106, 2001; e O. Flanagan, “The colour of happiness”, New Scientist, 178, 2003.
9. Mihaly Csikszentmihalyi, Flow: The Classic Work on How to Achieve Happiness, Rider, 2002.
10. Daisetz Taitaro Suzuki & Erich Fromm, Zen Buddhism and Psychoanalysis, Souvenir Press, 1974.
11. Nietzsche (1885), op. cit.
12. Ibid.
13. Friedrich Nietzsche, Daybreak: Thoughts on the Prejudices of Morality, Cambridge University Press, 1992.
14. Nietzsche (1885), op. cit.
15. Friedrich Nietzsche, Beyond Good and Evil [Além do bem e do mal], Modern Library, 1968.
16. Citado em Suzuki & Fromm, op. cit.
17. Friedrich Nietzsche, Ecce Homo, Modern Library, 2000.
18. William Shakespeare, Sonho de uma noite de verão, ato 3, cena 2.
19. Ibid.