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Não posso deixar de observar aqui um fato que pode merecer a atenção dos que fazem da natureza humana o objeto de sua investigação. É certo que, em toda religião, por mais sublime que seja a definição verbal que ela ofereça de sua divindade, muitos adeptos, talvez a maioria, procurarão, não obstante, obter o favor divino, não por suas virtudes nem por seus bons costumes, únicas coisas que podem ser agradáveis a um ser perfeito, senão por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença em opiniões misteriosas e absurdas. Só uma pequena parte do Saddas,63 bem como do Pentateuco,64 consiste em preceitos morais, e podemos estar certos de que essa parte foi sempre a menos observada e respeitada.
Quando os antigos ROMANOS foram atacados pela peste, eles nunca atribuíram seus sofrimentos aos seus vícios, nem pensaram em se arrepender ou em se emendar. Eles nunca pensaram que eram os grandes ladrões do mundo, cuja ambição e avareza tornaram a Terra desolada e reduziram nações opulentas à necessidade e à miséria. Eles simplesmente nomearam um ditador a fim de cravar um prego numa porta, e pensaram que por esse meio tinham apaziguado suficientemente sua divindade enfurecida.
Em EGINA, urna facção formou uma conspiração e assassinou selvagem e perfidamente setecentos de seus concidadãos, levando sua fúria ao extremo de cortar as mãos de um miserável fugitivo que tinha se refugiado num templo, com as quais ele agarrava as portas, e, carregado para fora do chão sagrado, imediatamente foi assassinado. 'Por essa impiedade', diz HERÓDOTO (e não por muitos outros assassinatos cruéis), 'eles ofenderam os deuses e contraíram uma culpa inexpiável'.
Além disso, suponhamos, o que nunca acontece, que se encontre uma religião popular que declare expressamente que só a moralidade pode obter o favor divino; suponhamos também que uma ordem de eclesiásticos seja instituída para inculcar essa opinião nos homens por meio dos sermões diários, com toda a arte da persuasão; apesar disso, os preconceitos das pessoas estão tão profundamente arraigados que, por necessidade de alguma outra superstição, eles tornariam o comparecimento das pessoas a esses sermões a parte essencial da religião, em vez de colocá-las no caminho da virtude e dos bens morais. O sublime prólogo das leis de ZALEUCUS não inspirou os LOCRENSES,65 tanto quanto podemos saber, noções mais sólidas dos meios de agradar à divindade do que as noções que eram familiares a outros GREGOS.
Essa observação, então, vale universalmente. Mas podemos ter ainda alguma dificuldade em explicá-la. Não é suficiente observar que em todos os lugares as pessoas rebaixam suas divindades até torná-las semelhantes a si mesmas, e que as consideram simplesmente uma espécie de criaturas humanas de algum modo mais poderosas e inteligentes. Isso não eliminará a dificuldade, pois não existe homem nenhum tão estúpido que não estime, a julgar por sua razão natural, que a virtude e a honestidade são as qualidades mais valiosas que uma pessoa pode possuir. Por que não atribuir o mesmo sentimento à divindade? Por que não fazer com que toda religião, ou sua parte principal, consista nessa realização?
Não é satisfatório dizer que a prática da moralidade é mais difícil que a da superstição - e é, portanto, rejeitada. Pois - para não mencionar as penitências excessivas de Brachmans e de Talapoins - é certo que o ramadã66 dos TURCOS, durante o qual os pobres infelizes, dia após dia, frequentemente nos meses mais quentes do ano e num dos climas mais quentes do mundo, permanecem sem comer nem beber, do nascimento ao pôr do sol - é certo, dizia eu, que o ramadã deve ser muito mais severo que a prática de qualquer dever moral, mesmo para os homens mais corrompidos e depravados. As quatro quaresmas dos MOSCOVITAS e as austeridades de alguns católicos romanos parecem mais desagradáveis que a brandura e a benevolência. Em suma, toda virtude, quando nos reconciliamos com ela sem muito esforço, é agradável. Toda superstição é quase sempre odiosa e opressiva. Talvez possamos aceitar a seguinte explicação como a verdadeira solução dessa dificuldade. Os deveres que um homem cumpre como amigo ou como pai parecem referir-se simplesmente a seu benfeitor ou a seus filhos, e ele não pode faltar a esses deveres sem romper todos os vínculos da natureza e da moralidade. Uma forte inclinação pode impulsioná-lo a cumpri-los. Um sentimento de ordem e de obrigação moral une sua força à força desses vínculos naturais, e o homem por inteiro, se é verdadeiramente virtuoso, é conduzido ao seu dever sem qualquer esforço ou violência. Ainda no caso das virtudes que são mais austeras e mais dependentes da reflexão, como o espírito público, o dever filial, a temperança ou a integridade, a obrigação moral, tal como a compreendemos, descarta toda a pretensão a um mérito religioso; e a conduta virtuosa não é mais que aquilo que devemos à sociedade ou a nós mesmos. Em tudo isso um homem supersticioso nada descobre que tenha realizado especialmente por causa de sua divindade ou que possa recomendá-lo de um modo particular ao favor e à proteção divina. Não lhe ocorre que o melhor método de servir à divindade é promover a felicidade de suas criaturas. Ele ainda espera por uma assistência mais imediata do ser supremo, a fim de diminuir os terrores que o oprimem. E qualquer prática que se lhe recomende, ainda que não tenha utilidade nenhuma na vida ou ofereça a mais forte resistência às suas inclinações naturais, ele a abraçará logo, graças àquelas mesmas circunstâncias que deveriam fazer com que ele a rejeitasse completamente. Parece-lhe que isso é o mais puramente religioso, na medida em que não deriva da mistura de qualquer outro motivo ou consideração. E se, por sua causa, sacrifica boa parte de seu bem-estar e de sua tranquilidade, crê que seus méritos aumentam conforme se manifesta seu fervor e sua devoção. Se ele devolve algo emprestado ou paga uma dívida, sua divindade não lhe deve obrigação nenhuma, pois tais atos de justiça são os que estava obrigado a cumprir e o que muitos teriam cumprido mesmo que não houvesse deus nenhum no universo. Mas se ele jejua um dia ou se dá a si mesmo uns bons açoites, isso tem, na sua opinião, uma relação direta com a assistência de Deus. Nenhum outro motivo pode levá-lo a tais austeridades. Por meio desses extraordinários sinais de devoção obtém, pois, o favor divino, e pode esperar, como recompensa, proteção e segurança neste mundo - e felicidade eterna no outro.
É por isso que o maior dos crimes tem sido considerado, em muitos casos, compatível com uma piedade e devoção supersticiosas. É por isso, justamente, que se considera arriscado fazer qualquer inferência a favor da moralidade de um homem, a partir do fervor ou do rigor de sua prática religiosa, ainda que ele mesmo acredite na sinceridade desta. Mais ainda: observou-se que as atrocidades mais negras têm sido mais apropriadas para produzir terrores supersticiosos e para aumentar a paixão religiosa. BOMILCAR, tendo formado uma conspiração para assassinar de uma só vez todo o senado de CARTAGO e violar as liberdades de seu país, perdeu a oportunidade por causa de uma preocupação contínua com os presságios e com as profecias. 'Os que empreendem as ações mais criminosas e mais perigosas são em geral os mais supersticiosos', como oportunamente observa um historiador da antiguidade.* Sua devoção e sua fé espiritual aumentam com seus temores. Catilina67 não se satisfez com as divindades estabelecidas e com os ritos aceitos pela religião nacional. Seus terrores inquietos o fizeram procurar novas invenções dessa espécie,* e ele provavelmente nunca teria sonhado com elas se tivesse permanecido um bom cidadão, obediente às leis de seu país.
A isso podemos acrescentar que, depois da execução do crime, surgem remorsos e terrores secretos que não deixam nenhum repouso ao espírito, mas o fazem recorrer a ritos e a cerimônias religiosas como expiação de suas faltas. Tudo o que enfraquece ou perturba as disposições interiores do homem favorece os interesses da superstição; e nada os destrói mais do que uma virtude viril e constante, que nos preserva dos acidentes desastrosos e melancólicos ou que nos ensina a suportá-los. Quando resplandece essa serenidade de espírito, a divindade jamais aparece sob falsas aparências. Porém, quando nos abandonamos às sugestões naturais e indisciplinadas de nossos corações tímidos e ansiosos, atribuímos ao ser supremo, em virtude dos terrores que nos agitam, toda espécie de barbárie; e, em razão dos métodos que adotamos a fim de apaziguá-lo, todas as formas de arbitrariedade. Barbárie e arbitrariedade: essas são as qualidades, ainda que dissimuladas com outros nomes, que formam, como podemos observar do ser supremo, a fim de diminuir os terrores que o oprimem. E qualquer prática que se lhe recomende, ainda que não tenha utilidade nenhuma na vida ou ofereça a mais forte resistência às suas inclinações naturais, ele a abraçará logo, graças àquelas mesmas circunstâncias que deveriam fazer com que ele a rejeitasse completamente. Parece-lhe que isso é o mais puramente religioso, na medida em que não deriva da mistura de qualquer outro motivo ou consideração. E se, por sua causa, sacrifica boa parte de seu bem-estar e de sua tranquilidade, crê que seus méritos aumentam conforme se manifesta seu fervor e sua devoção. Se ele devolve algo emprestado ou paga uma dívida, sua divindade não lhe deve obrigação nenhuma, pois tais atos de justiça são os que estava obrigado a cumprir e o que muitos teriam cumprido mesmo que não houvesse deus nenhum no universo. Mas se ele jejua um dia ou se dá a si mesmo uns bons açoites, isso tem, na sua opinião, uma relação direta com a assistência de Deus. Nenhum outro motivo pode levá-lo a tais austeridades. Por meio desses extraordinários sinais de devoção obtém, pois, o favor divino, e pode esperar, como recompensa, proteção e segurança neste mundo - e felicidade eterna no outro. E por isso que o maior dos crimes tem sido considerado, em muitos casos, compatível com uma piedade e devoção supersticiosas. E por isso, justamente, que se considera arriscado fazer qualquer inferência a favor da moralidade de um homem, a partir do fervor ou do rigor de sua prática religiosa, ainda que ele mesmo acredite na sinceridade desta. Mais ainda: observou-se que as atrocidades mais negras têm sido mais apropriadas para produzir terrores supersticiosos e para aumentar a paixão religiosa. BOMILCAR, tendo formado uma conspiração para assassinar de tuna só vez todo o senado de CARTAGO e violar as liberdades de seu país, perdeu a oportunidade por causa de uma preocupação contínua com os presságios e com as profecias. 'Os que empreendem as ações mais criminosas e mais perigosas são em geral os mais supersticiosos', como oportunamente observa um historiador da antiguidade.* Sua devoção e sua fé espiritual aumentam com seus temores. Catilina67 não se satisfez com as divindades estabelecidas e com os ritos aceitos pela religião nacional. Seus terrores inquietos o fizeram procurar novas invenções dessa espécie,* e ele provavelmente nunca teria sonhado com elas se tivesse permanecido um bom cidadão, obediente às leis de seu país.
A isso podemos acrescentar que, depois da execução do crime, surgem remorsos e terrores secretos que não deixam nenhum repouso ao espírito, mas o fazem recorrer a ritos e a cerimônias religiosas como expiação de suas faltas. Tudo o que enfraquece ou perturba as disposições interiores do homem favorece os interesses da superstição; e nada os destrói mais do que uma virtude viril e constante, que nos preserva dos acidentes desastrosos e melancólicos ou que nos ensina a suportá-los. Quando resplandece essa serenidade de espírito, a divindade jamais aparece sob falsas aparências. Porém, quando nos abandonamos às sugestões naturais e indisciplinadas de nossos corações tímidos e ansiosos, atribuímos ao ser supremo, em virtude dos terrores que nos agitam, toda espécie de barbárie; e, em razão dos métodos que adotamos a fim de apaziguá-lo, todas as formas de arbitrariedade. Barbárie e arbitrariedade: essas são as qualidades, ainda que dissimuladas com outros nomes, que formam, corno podemos observar universalmente, o caráter dominante da divindade nas religiões populares. E até os sacerdotes, em vez de corrigir essas ideias perversas dos homens, têm-se mostrado dispostos a alimentá-las e a encorajá-las. Quanto mais monstruosa é a imagem da divindade, mais os homens se tornam seus servidores dóceis e submissos, e quanto mais extravagantes são as provas que ela exige para nos conceder sua graça, mais necessário se faz que abandonemos nossa razão natural e nos entreguemos à condução e direção espiritual dos sacerdotes. Pode-se admitir, assim, que os artifícios dos homens agravam nossas enfermidades naturais e as loucuras desse tipo, mas que na origem nunca as engendram. Elas se enraízam mais profundamente no espírito e nascem das propriedades essenciais e universais da natureza humana.
(David Hume - História Natural da Religião)
NOTAS:
61 'Mais populares' em outras edições.
62Toda essa seção é da maior importância para entendermos os argumentos e as opiniões de Hume sobre a relação entre a moralidade e a religião. Ver também Diálogos sobre a religião natural, parte XII; Investigação sobre o entendimento humano, seção XI; e a explicação da moralidade oferecida na Investigação sobre os princípios da moral, seções 1-5 e 9.
63 Livro judaico de preces e orações.
64 O Pentateuco é a coleção dos cinco primeiros livros do Velho Testamento atribuídos a Moisés: o Gênesis, o Êxodo, o Levítico, o Números e o Deuteronômio.
65 Habitantes de Locros, antiga cidade grega localizada na extremidade meridional da atual Itália.
66 O ramadã corresponde ao nono mês do ano muçulmano, considerado sagrado e durante o qual a lei de Maomé prescreve o jejum num período diário entre o alvorecer e o pôr do sol.
67 Lúcio Sérgio Catilina (morto em 62 a.C.), governador da província romana da África entre 67-66 a.C. Foi perseguido por corrupção, mas absolvido. Derrotado por Cícero nas eleições para cônsul em 63 e 62, conspirou num golpe revelado por Cícero em seus discursos no Senado. Foi morto pelo exército de Gaio Antonio.