“É mais saudável caminhar pelas estradas do campo que pelas ruas da cidade.”
Um dos melhores diálogos de Platão se passa em um belo dia de verão em Atenas. É o fim do século V a.C., um período que costuma ser mencionado como a era de ouro da Grécia, dada a enorme quantidade de grandes artistas, poetas, dramaturgos, filósofos e estadistas vivendo e trabalhando lá ao mesmo tempo. Um dos mais famosos dentre eles, o professor de Platão, Sócrates, nota um jovem1 descendo a rua e grita para ele.
“Fedro, meu amigo! Por onde você andou? E para onde você está indo?”2
Essa saudação alegre capta a essência de Sócrates, um homem que dava valor aos amigos e tinha uma curiosidade enorme sobre a vida deles. Sócrates era ávido por conexões no sentido cara a cara, um traço que aparece repetidamente nas conversas filosóficas que ele teve com seus companheiros atenienses, as quais formam a espinha dorsal dos escritos de Platão.
Esse diálogo, conhecido simplesmente como Fedro, explora a conectividade humana em uma época de mudança tecnológica dramática. Uma nova forma revolucionária de comunicação, a linguagem escrita, tinha chegado à Grécia, que era uma sociedade oral havia muito tempo. A moda estava começando a pegar e as pessoas mais pensativas estavam preocupadas com os efeitos que ela poderia ter nos vários aspectos da vida, principalmente na vida da mente. Em outras palavras, embora essa história se passe há mais ou menos 2.400 anos, trata de uma era um tanto quanto análoga à nossa. Escrevendo no ponto de virada entre duas eras tecnológicas, Platão examinou questões que hoje estão no ar mais uma vez.
Fedro conta para Sócrates que acabara de passar a manhã inteira com o famoso orador Lísias, ouvindo seu último discurso. Para o leitor moderno, pode parecer um jeito esquisito para um jovem gastar o tempo, mas em uma sociedade amplamente organizada em torno da palavra falada, aquilo era completamente natural. Assim como as redes sociais e videoclipes virais causam furor hoje, na Grécia obcecada pela retórica não havia nada mais legal do que se sentar ao pé de um orador brilhante, sorvendo cada palavra.
O discurso era sobre um tópico que sempre foi de interesse urgente: sexo. Particularmente, era sobre a questão de se é melhor dormir com alguém que está apaixonado por você ou com alguém que não está. Lísias defendia a última hipótese, mostrando que, quando se faz sexo por pura luxúria, há bem menos complicações emocionais.
Fedro achou o discurso engenhoso e estava dando uma volta enquanto o revirava na cabeça, tentando fixá-lo na memória. Em busca dessa meta, ele rumava para fora dos muros da cidade, seguindo o conselho de um médico proeminente chamado Acumeno de que “é mais saudável caminhar pelas ruas do campo do que pelas da cidade”.3 Ele convida Sócrates para se juntar a ele e ouvir mais sobre o discurso, e o homem mais velho aceita prontamente. Eles partem, possivelmente abandonando o caminho para andarem descalços por um riacho. Seguem até encontrar um belo lugar ao lado do riacho, onde podem sentar debaixo de um plátano e conversar.
Sócrates fica maravilhado com o lugar, que é encantador e sereno, incitando Fedro a observar que o filósofo parece um completo estranho diante daquele ambiente natural: “Pelo que posso ver, você nunca pôs os pés além dos muros da cidade”.4
Sócrates admite que é verdade. “Perdoe-me, meu amigo, sou dedicado ao aprendizado, paisagens e árvores não têm nada a me ensinar – só posso aprender com as pessoas na cidade.”5 Ele só viera até ali, diz, porque Fedro o seduziu com um convite para o que ele mais gosta de fazer em Atenas, discutir sobre uma questão filosófica, como a que foi abordada no mencionado discurso. Com isso, ele se deita na grama e pede que Fedro recite os argumentos de Lísias a favor do sexo sem compromisso.
Quando foi a última vez que você saiu com um amigo e deixou o resto do mundo para trás? Sócrates e Fedro estão aproveitando um tipo de conexão humana – em pessoa, dedicada, completamente particular – que é muito rara hoje. Mesmo quando se está fisicamente com outra pessoa, é difícil dar sua atenção por inteiro durante um período considerável, ou receber a mesma coisa. Se há um aparelho digital por perto, é provável que um ou ambos sejam interrompidos ou distraídos.
O que é interessante é que essa conversa isolada era uma experiência rara para Sócrates. Ele admite que odeia deixar a cidade movimentada, onde seu ofício de filósofo gira em torno de conversas com estudantes e outros intelectuais, normalmente em grupos maiores. De fato, esse é o único dos muitos diálogos de Platão no qual Sócrates sai de Atenas para um tête-à-tête particular.6
O filósofo tinha uma intensa necessidade de conexão oral, que era dominante na época dele. Podemos dizer que ele era um maximalista antigo e que Atenas era a “tela” que possibilitava seus hábitos. E, nesse episódio, tal como um moderno guerreiro da estrada que anda munido de um aparelho móvel de banda larga, ele se aventura rumo a um lugar com a esperança de que será capaz de encontrar uma boa conexão lá também. E espera que Fedro a providencie, com uma interpretação daquela palestra libidinosa. Embora a vida na Grécia antiga fosse obviamente diferente da vida do século XXI, o desejo humano básico de conexão era o mesmo. Sócrates estava buscando o que todo mundo com uma tela digital quer: contato, amizade, estimulação, ideias, crescimento profissional e pessoal.
Esse impulso para o exterior vai muito mais longe do que o século V a.C.Incontáveis milhares de anos atrás, nossos ancestrais pré-históricos não conheciam nada do mundo além de seu ambiente próximo e não tinham ferramentas de conexão com as quais transcender o isolamento. Na verdade, houve um tempo em que eles não podiam sequer conversar com seus companheiros mais próximos, porque não sabiam fazer isso.
Em algum ponto do caminho, ninguém sabe exatamente quando, uma coisa fantástica aconteceu – ou melhor, duas coisas fantásticas: os humanos pré-históricos arranjaram duas das ferramentas de conexão mais poderosas já concebidas, como E. H. Gombrich conta em seu livro A Little History of the World [Breve história do mundo]:7
Eles inventarama fala. Ou seja, ter conversas reais uns com os outros, usando palavras. Claro que os animais também fazem barulhos – choram quando sentem dor e clamam por ajuda quando o perigo ameaça, mas eles não dão nomes para as coisas como os seres humanos fazem. E as pessoas da pré-história foram as primeiras criaturas a fazer isso.Eles inventaram outra coisa maravilhosa: figuras. Muitas delas ainda podem ser vistas hoje, gravadas e pintadas nas paredes das cavernas. Nenhum pintor vivo faria melhor.
Encontrei esse trecho enquanto lia o livro para o meu filho dormir, em um inverno recente. Gombrich o escreveu para crianças, mas aprendi mais com ele do que com a maioria dos livros de história para adultos, porque trata a tecnologia e as outras facetas do passado como as histórias humanas que de fato são, livres de jargão de especialista e sem motivo para complexidade. Ele chama as pessoas pré-históricas de “os maiores inventores de todos os tempos”,8 e tem razão. Eles quiseram e precisaram alcançar além de si mesmos e encontraram um par de jeitos brilhantes de fazer isso: palavras e imagens.
A história revê essa história o tempo todo. As pessoas estão constantemente tentando diminuir as distâncias entre elas inventando novas ferramentas de conexão e dedicando tempo para melhorá-las. Os humanos são os únicos animais que concebem vários usos para uma única ferramenta, e somos particularmente bons em encontrar novas aplicações para nossas ferramentas de conexão. Se a “tecnologia” da conversa foi originalmente criada para suprir as necessidades práticas de pessoas lutando para sobreviver em um ambiente hostil, por volta do século V a.C. havia evoluído para algo mais rico e interessante: um caminho para a verdade e para o esclarecimento.
Sócrates usava a conversa para praticar a filosofia como ninguém tinha feito antes. Ao passo que os filósofos anteriores se passavam por homens sábios dotados de acesso especial à verdade, ele não fazia tal afirmação. Foi “um tipo completamente novo de filósofo grego”, escreve o acadêmico moderno John M. Cooper. “Ele negava ter descoberto alguma sabedoria nova, aliás, negava possuir qualquer sabedoria.”9 Em vez disso, acreditava que o caminho para atingir a verdade era procurar discussões com os outros, como as que promovia em Atenas, usando a técnica de perguntas e respostas, conhecida hoje como método socrático. Para Sócrates, a comunicação oral era a chave para uma boa vida.
Mas havia um lado negativo na conexão da sociedade oral. Falar permitiu o surgimento das primeiras civilizações, como a grega, e as cidades que foram seus centros nevrálgicos jamais teriam sido construídas se as pessoasnão pudessem comunicar seus pensamentos. Essas metrópoles antigas ofereceram muitos benefícios para quem viveu nelas, incluindo o estímulo intelectual que Sócrates prezava. Ao mesmo tempo, elas impunham novos fardos. Eram lugares agitados, embora nem passando perto da agitação das cidades de hoje, mas, para os padrões da época, agitados de verdade. Viver em Atenas significava estar cercado, dia e noite, por algumas centenas de milhares de outras pessoas, portanto, da atividade, dos barulhos e dos cheiros delas, além de outras atrações à atenção de um indivíduo. Era uma multidão permanente e a vida na multidão é uma experiência de dificuldade inerente.
Platão deixa claro que a vida em Atenas podia pôr a mente à prova, quando cita a explicação de Fedro sobre por que decidiu passear fora dos muros da cidade. Como um sujeito moderno que faz ioga e meditação por conselho do médico, ele segue a receita de Acumeno para limpar a cabeça. O rapaz está fazendo um pequeno exercício, e de um jeito bastante peculiar. Para pensar com mais profundidade sobre o discurso, estabelece distância entre si mesmo e a multidão.
Distância. A coisa da qual os seres humanos tem fugido desde as eras pré-históricas, o espaço entre o eu e os outros. O sentido da comunicação oral e das coisas boas que fluíram dela foi o encolhimento das distâncias entre as pessoas. Agora, no lugar onde esse tipo de conexão atingira seu ápice, as pessoas estavam percebendo que, pelo bem-estar pessoal e pela felicidade, era necessário restaurar um pouco daquela distância na vida cotidiana.
O diálogo em questão não é sobre a distância em si. Mas, como Platão era um escritor cuidadoso e de estilo econômico, é improvável que tenha dado tanta atenção ao passeio pelo campo a não ser que tivesse algo a dizer. Fedro era membro do círculo intelectual de Sócrates e, assim como Platão, profundamente interessado em retórica e em filosofia. Assim, enquanto andava pela cidade tentando memorizar o discurso, ele não estava simplesmente devaneando, mas sim desempenhando uma tarefa que era importante para ele. E, para desempenhá-la bem, percebeu que precisava de um pouco de espaço.
Para um paralelo com o século XXI, pense numa ocupante de uma baia, que passou a manhã toda imersa na multidão digital, indo e vindo entree-mails, websites, mensagens de texto e outras atividades eletrônicas. Ela quer dar um tempo e se concentrar em uma única coisa, talvez em um projeto importante que demande pensamento e criatividade contínuos. Embora não seja aspirante a filósofa, essa funcionária de uma empresa está na mesmasituação de Fedro. Ela está empenhada em absorver novas informações, aprendê-las e compreendê-las. Mas, com toda essa tralha rodando dentro da cabeça, é incrivelmente difícil. Como aliviar a mente sobrecarregada?
Em Atenas, Platão sugeriu, uma solução seria estabelecer distância física; sair da multidão e passar umas horas do lado de fora dos muros. Curiosamente, no entanto, Sócrates não capta o sentido. Ele tinha por volta de 60 anos nessa época e anos de experiência tinham-no convencido de que a conversa é o único caminho para a sabedoria e para a felicidade – e quanto mais pessoas disponíveis para conversar, melhor. Por essa lógica, um filósofo (palavra que significa “amigo do conhecimento”) jamais deveria desejar distância entre si e a multidão. É o mesmo princípio básico que guia a vida digital de hoje: quanto mais conectados aos outros através de telas, melhor.
Quem estava certo, um dos pensadores mais celebrados de todos os tempos ou um jovem lembrado sobretudo como figurante no trabalho desse pensador? A resposta surge no fim do diálogo.
De volta à margem do riacho, Fedro se lança no discurso com a ajuda de uma ferramenta surpreendente. Mais cedo, logo antes de chegarem ali, Sócrates disse que não ficaria satisfeito com um mero resumo do argumento de Lísias. Ele queria ouvi-lo palavra por palavra, como proferido originalmente. Fedro protestou que seria incapaz de fazer isso, pois não havia memorizado. Sócrates observa, então, que Fedro parece estar escondendo alguma coisa embaixo do manto, que o filósofo suspeita ser uma cópia escrita do discurso. A essa altura, Fedro, intimidado, saca exatamente isso, o registro em papel da apresentação oral.
Algumas traduções chamam o objeto de “livro”, outras de “pergaminho”. Seja lá qual for o nome (vou usar “pergaminho”),10 a questão é que, ao se dirigir para sua caminhada meditativa, o homem mais jovem havia levado consigo uma ferramenta que se valia da tecnologia de comunicação mais recente, a língua escrita baseada em um alfabeto. De fato, a escrita não era completamente nova. Os egípcios e outras civilizações antigas possuíamsistemas de escrita pré-alfabéticos. E, naquele ponto, o alfabeto grego já existia há várias centenas de anos, mas emplacou com muita lentidão. Foi só durante a vida de Sócrates e a de Platão que ele realmente se firmou. Em termos contemporâneos, o pergaminho de Fedro era mais ou menos o que um telefone celular era em 1985, uma tecnologia ainda nos primeiros estágios de adoção e ainda pouco compreendida.
A razão para que ele tivesse levado o pergaminho é óbvia: era útil. Permitiria que ele continuasse pensando no discurso de Lísias e trabalhasse em sua memorização mesmo enquanto vagava pelo campo. Com o registro em papel em mãos, ele poderia se dedicar às ideias do orador longe do lugar onde o discurso foi proferido, e até mesmo muito tempo depois. Ele poderia sair da cidade tumultuada e, ainda assim, desempenhar a tarefa que queria desempenhar. Se ele estava um pouco envergonhado pelo pergaminho, como parecia estar, talvez seja porque estivesse na companhia do maior comunicador oral de todos os tempos, um homem que nunca leu um texto e, como logo se verá, não tinha esse meio de comunicação em alta estima.
Quando Fedro termina de proferir o discurso, Sócrates aplaude largamente a performance, pronunciando-se jocosamente “em êxtase”. Em seguida, eles discutem sobre os argumentos apresentados e, no meio do caminho, Sócrates molda uma das metáforas mais famosas da história da filosofia. Já que o argumento essencial de Lísias é que o amor enlouquece as pessoas, Sócrates analisa exatamente o que é a loucura e por que a mente às vezes vai além do limite.
Ele compara a alma a uma biga voadora, puxada por um par de cavalos alados. Um dos cavalos significa nosso lado bom e virtuoso; o outro significa o lado ruim e corrupto. A meta de qualquer um na condução desse veículo é guiar os cavalos com habilidade, de forma que a biga plane rumo “ao lugar além do paraíso”,11 onde o “conhecimento puro” – a iluminação e a felicidade – reside. Mas os cavalos são difíceis de controlar, especialmente o mau, e às vezes eles puxam em direções diferentes. Quando isso acontece, a biga perde o rumo e se choca com a Terra.
A imagem ainda tem ressonância porque captura algo essencial em relação ao desafio de ser humano. Sócrates intencionava ser um filósofo prático, e o que ele descreve é realmente a viagem cotidiana do eu interior. Todos estamos guiando nossas bigas pelo caos, lutando para harmonizar as forças que nos atraem de todos os lados. Você sabe como é. Corremos de um lado para o outro na busca de coisas que o mundo afirma serem a chave da felicidade: dinheiro, sucesso, posição social, diversão. Mesmo assim, essas coisas não funcionam, não de forma duradoura. De certo modo, sabemos que poderíamos empregar nosso tempo e nossos talentos para buscar uma existência mais segura, mais autêntica, mas não sabemos como fazer isso. Como Sócrates expõe, conduzir uma biga “é uma empreitada inevitavelmente perigosa”.12
As pessoas tolas são fisgadas pela corrida de biga em si, ele diz, “menosprezando e agredindo uns aos outros, enquanto todos tentam chegar na frente”.13 Outros conseguem ficar calmos e manter suas bigas no rumo, habilmente evitando os choques em cadeia. E, embora essas almas sortudas não atinjam o “conhecimento puro”14 – reservado aos deuses –, elas de fato se elevam a alturas impressionantes e encontram satisfação genuína.
Lidar habilmente com a vida rende sabedoria e felicidade. É um ótimo ideal, mas, quanto mais repletos de ocupações nossos dias se tornam e quanto mais os outros controlam as rédeas, mais difícil é imaginar atingi-lo. Ultimamente, com a demanda implacável dos aparelhos digitais, o desafio parece muitas vezes insuperável. Se você é um conectado fiel, que passa o dia todo interagindo com telas, você provavelmente sabe, assim como eu, o que é ter sua biga atolada no pior lugar. “O resultado é terrivelmente barulhento, muito cansativo, uma inteira desordem,”15 diz Sócrates, e aqueles que vivem assim acabam “insatisfeitos”.
O que podemos fazer a respeito? Não vivemos na Grécia antiga e Sócrates e Fedro nunca precisaram lidar com e-mails abarrotados de mensagens. Mas o admirável em Platão, e a razão pela qual é amplamente lido até hoje, é que ele aborda as questões fundamentais da vida de uma maneira que transcende o tempo e o espaço. A metáfora da biga é um lembrete útil para a relação entre o eu exterior – como gastamos o tempo interagindo com o mundo, administrando nossos relacionamentos e a vida profissional – e o interior. Na Atenas antiga havia uma maneira muito eficaz para aquietar a vida externa movimentada de alguém e retomar o controle da biga: uma simples caminhada no campo.
É verdade que a estrela dessa história, Sócrates, fez pouco caso da ideia de colocar qualquer distância entre si e sua cidade amada. No entanto, Sócrates não é o único filósofo envolvido. Platão escreveu esse e outros diálogos de Sócrates depois da morte do mestre. São baseados em conversas reais, mas, como o tempo passou e Platão estava se tornando ele mesmo um filósofo, é largamente presumido que ele tenha tomado liberdades e organizado muitas vezes o material de modo a expressar seus próprios argumentos. Embora nunca tenha declarado seus pontos de vista pessoais diretamente, de vez em quando ele parece criticar implicitamente o que Sócrates diz.
As falas de Fedro estão repletas de indícios de que Platão discordava de seu professor sobre essa questão do distanciamento.
Primeiro, há o fato de caminharem para fora da cidade. Embora Sócrates tivesse saído de Atenas com relutância, uma vez que ele e Fedro haviam se adaptado ao local à beira do riacho, eles tiveram uma conversa que, mesmo para os padrões socráticos, é extraordinária. Após o “êxtase” pela performance de Fedro, Sócrates profere algumas considerações próprias impressionantes, sendo tão absorvido pela tarefa que fica em uma espécie de enlevo. Ele entra no clima, por assim dizer, e atribui esse estado agradável ao refúgio rural. “Há algo realmente divino quanto a este lugar”,16 diz. Ele usa a palavra “divino” literalmente, sugerindo que os deuses o inspiram. Mas note que ele relaciona a divindade a esse lugar, à locação isolada à qual Platão dedicou atenção especial. A mensagem é inconfundível: a distância que Sócrates menosprezou como um incômodo sem sentido desempenhou um papel importante em ajudar a mente dele a voar.
Segundo, a ferramenta que Fedro levou embaixo do manto permite que eles tirem o melhor da distância. Com o pergaminho em mãos, eles puderam estar longe da cidade, das distrações e dos fardos, e ainda manter acesso completo a uma de suas atrações principais, a retórica estimulante. A engenhoca foi a chave de roda da conversa deles, mas, mais uma vez, Sócrates não percebeu.
Rumo ao fim do diálogo, ele aborda a nova tecnologia e a questão de se a língua escrita serve a algum propósito útil. Conta a história de um deus egípcio chamado Tot17 que inventou muitas “artes”, incluindo aritmética, geometria e astronomia. Mas sua maior descoberta foi a linguagem escrita. Tot mostrou sua invenção ao rei do Egito, prometendo que ela “tornaria os egípcios mais sábios” e “melhoraria a memória deles”.
O rei não se impressionou. Pelo contrário, ele disse a Tot que a escrita faria com que as pessoas se esquecessem com maior facilidade. Uma vez que algo fosse gravado dessa maneira exterior, com o uso de letras, eles não sentiriam mais a necessidade de “lembrar por dentro, completamente por conta própria”,18 ou seja, pela mente deles. Pior, usariam a escrita para aparentar conhecimento, quando estariam na verdade meramente papagueando o que leram. “Eles seriam irritantes”,19 diz o rei, “obtendo a reputação do conhecimento sem o deter na realidade.”
Sócrates compartilha da visão fosca do rei sobre essa nova ferramenta, e ainda a amplia. A escrita é uma invenção perigosa, ele diz a Fedro, porque não permite que as ideias fluam livremente e mudem em tempo real, como fazem na mente durante a interação oral. Considerando a conversa como bate e volta, a língua escrita é uma via de mão única: uma vez que um pensamento foi escrito, está congelado e é impossível pô-lo à prova ou mudar sua posição. É um registro de ideias que já existem, em vez de uma forma para criar novas. Ele compara os textos escritos às pinturas, que “ficam lá como se estivessem vivas, mas, se alguém dirige a elas alguma pergunta, mantêm o mais solene silêncio”.20 Um trecho escrito “continua a significar exatamente a mesma coisa para sempre”.21 Está, para dizer em uma palavra, morto.
Os pensadores têm analisado e debatido essa passagem ao longo de eras, por que Sócrates teria entendido tão mal. Sua reação à escrita é típica da confusão e da ansiedade que as novas tecnologias costumam causar. Como os luditas de hoje, que acreditam que as tecnologias digitais são irremediavelmente inferiores aos aparelhos mais antigos e até perigosas, ele julgou a nova ferramenta exclusivamente pelas lentes da velha. Porque a escrita não funcionava da mesma maneira que a conversa, ele sentiu que não poderia ter muito valor e que apenas tornaria as pessoas mais idiotas. Para Sócrates, a escrita era útil apenas enquanto apoio para o diálogo oral, um tipo de roteiro, e é exatamente assim que Fedro e ele a usavam.
O que levou Sócrates a essa visão pessimista e estreita da escrita? Ele não conseguiu entender que novas tecnologias de conexão surgem para resolver problemas genuínos, e esses problemas normalmente têm algo a ver com a distância. Nas eras primitivas, o problema foi a distância física; as pessoas ficavam presas em seus próprios pensamentos sem uma forma eficaz para se expressar. A conversa resolveu esse problema, ao permitir que elas colocassem seus pensamentos em palavras que poderiam ser compartilhadas e compreendidas.
A comunicação oral foi um grande sucesso, mas deu lugar a um novo problema de distância física, enraizado no fato de que uma conversa só poderia acontecer em estreita proximidade com os outros. À medida que a civilização se expandia, tornava-se cada vez mais útil e importante que as pessoas se comunicassem a grandes distâncias. Por volta do século Va.C.,mercadores e negociantes desempenhavam negócios que abrangiam montanhas, desertos e mares. Havia cidades-estado e impérios emergentes cujos líderes precisavam enviar mensagens para lugares isolados. Mensageiros humanos cobriram essa necessidade por muito tempo, levando a informação pela voz. Mas esse sistema tinha desvantagens, incluindo as limitações da memória. A língua escrita solucionou o problema da distância física, ao permitir que as palavras e as ideias viajassem para qualquer lugar e chegassem intactas, do jeito exato como foram gravadas originalmente. A escrita também solucionou o problema temporal do armazenamento, tornando possível que a informação permanecesse no longo prazo com maior confiabilidade do que jamais havia permanecido na mente humana.
Como Platão mostra em Fedro, essa inovação imensamente prática também tinha um benefício menos tangível, mas, em última análise, muito mais significativo. Ela permitiu que os indivíduos tomassem conhecimento de outras pessoas e suas ideias a distância de forma íntima e reflexiva. Um texto escrito em uma cidade agitada poderia “funcionar de novo” em qualquer lugar, até mesmo à margem de um riacho borbulhante. Imediatamente após Fedro tirar o pergaminho do manto, os dois homens mergulham o pé no riacho, que Fedro observa estar “adorável, puro e limpo”22 – uma metáfora, talvez, para o que estava prestes a acontecer com o fluxo do pensamento deles. Ao pôr fim a um tipo de distância, a língua escrita criou outro, dando à mente um novo tipo de liberdade. Como resultado dessa liberdade, a escrita acabou sendo muito mais do que uma gravação estática de pensamentos antigos. Com o passar do tempo, iria se tornar o meio fantástico de troca e de desenvolvimento de ideias que é hoje.
Levando em consideração quem foi Sócrates, um filósofo cujo trabalho estava mergulhado no meio antigo, é compreensível que ele não tenha captado o valor do novo. Embebido na cultura da voz, ele jamais imaginou que alguém poderia sair sozinho com um texto escrito, lê-lo silenciosamente e a partir disso conquistar novas ideias. Suas dúvidas podem também ter se relacionado com o caráter físico da escrita. Ao acreditar que a mente era a fonte de todo significado, ele desconfiava do corpo e, de fato, de todo o mundo físico. Em uma passagem do diálogo em questão, ele se refere ao corpo depreciativamente como uma mera concha do intelecto, “essa coisa que carregamos”.23 Para ele, um texto escrito não passava de mais uma “coisa”, um objeto idiota que pretendia fazer o mesmo que a mente, mas sem a capacidade para tanto.
Platão tinha mais visão que seu professor quanto ao valor do distanciamento. Conforme a ação do diálogo mostra, ele entendia que há muito a ganhar quando alguém se retira fisicamente da multidão. Anos após a morte de Sócrates, quando Platão decidiu abrir sua própria escola, ele a fundou fora de Atenas, no mesmo tipo de campo onde o diálogo se passa. A Academia platônica se tornaria sinônimo do melhor do pensamento grego, além da prova de que de fato há algo divino no distanciamento.
Além disso, embora não haja registro do que Platão em pessoa pensava sobre a língua escrita, ele deixou muitas provas de que a tinha em mais alta conta do que Sócrates. Platão também adotou uma visão contrária a objetos físicos como fonte de conhecimento, mas isso não o impediu de pousar a pena no pergaminho e se tornar um escritor. Só podemos ler esse diálogo hoje em dia porque Platão o escreveu, usando a mesma ferramenta que Sócrates denunciou. Ele era aproximadamente quarenta anos mais novo que Sócrates e evidentemente mais aberto às possibilidades do novo mecanismo. Ao registrar em papel os medos sombrios de Sócrates sobre a escrita, ele estava de fato dizendo: “Desculpe, meu velho, mas isso é melhor do que você pensava”.
Para os nossos objetivos, Platão estabelece em Fedro um princípio básico sobre o qual construir uma nova maneira de pensar sobre a conexão digital: em um mundo agitado, o caminho para a profundidade e para a completude começa com o distanciamento. A paisagem tecnológica é bastante mais complexa hoje, e ao longo dos séculos a distância ganhou novos significados. Mas a dinâmica básica não mudou: para guiar sua biga rumo a uma vida boa, é fundamental criar alguns espaços entre si e todas as outras bigas se chocando nesse mundo em desordem.
A tecnologia é imprevisível e os espaços costumam aparecer em lugares surpreendentes. Até aqui, os aparelhos digitais aumentaram a média geral da nossa correria, criando uma necessidade nova por distanciamento. É um problema que ainda aguarda solução, e vale a pena notar que, por volta de 2.400 anos atrás, as pessoas estavam apenas começando a perceber que poderiam usar a sua tecnologia mais nova para a finalidade oposta: reduzir ou amenizar a correria. Será que, agora na era digital, também vamos conseguir criar uma artimanha para fazer o que queremos?
Para que isso aconteça, é necessário ter mais consciência de como os aparelhos de hoje mudam nosso relacionamento com a multidão, o qual, por sua vez, afeta nossa correria e o estado da mente. A conexão humana é fluida e muda o tempo todo. Ao se encontrarem na cidade, Sócrates e Fedro estavam em uma situação de correria e de alta conectividade. Assim que escapam dali, eles se tornam menos conectados à multidão e mais conectados um ao outro – e o pergaminho ajuda a fazer com que tudo aconteça.
Conforme novas tecnologias são acrescentadas à mistura, as permutações e as sutilezas se multiplicam. Em Atenas, a cidade era sinônimo de multidão. Mas, hoje, andar por uma rua urbana movimentada pode ser uma forma de se desconectar da multidão, principalmente se acabamos de sair de um escritório cheio de telas. Enquanto caminhamos por essa rua, se o celular vibrar com uma ligação ou mensagem, nosso relacionamento com a multidão mudará mais uma vez.
Para compreender tudo isso é útil imaginar a conexão como um continuum pelo qual nos movemos o tempo todo. Ele está representado a seguir como uma linha reta entre dois polos, rotulados pelas letras gregas alfa e ômega. Alfa representa a conexão mínima, ou o eu em sua individualidade, enquanto ômega é a conexão máxima com a multidão.
Os polos não representam apenas o fato de estar na multidão ou de estar sozinho, mas os tipos de experiência associados a essas situações. Quando estamos sozinhos, nossos pensamentos e sentimentos se orientam para dentro e a experiência tende a ser relativamente calma e lenta. Em contraste, na multidão – seja física ou virtual – nossa orientação é mais exterior, simplesmente porque há mais acontecimentos, mais demanda pela nossa atenção. A vida na multidão é tipicamente mais agitada e rápida.
O restante do continuum representa a variedade de situações entre os extremos. Da esquerda para a direita, a solidão dá lugar à interação com os outros e a experiência se torna relativamente mais externa e corrida. Da direita para a esquerda, a multidão diminui e a experiência é relativamente menos corrida e mais interior. Quando Sócrates e Fedro saem da cidade, reduzem dramaticamente a intensidade de suas conexões, trocando o extremo ômega do continuum pelo alfa. O distanciamento faz toda a diferença.
Isso é apenas um recurso gráfico e nem sequer pode começar a representar toda a variedade da experiência humana. O temperamento de cada um é único, e todos temos nossas reações pessoais à multidão, assim como à solidão. Há introvertidos natos, assim como extrovertidos, e incontáveis variantes entre eles. Uma situação que parece opressivamente tumultuada e corrida para você pode não me atingir de maneira idêntica. Mesmo assim, há uma correlação aproximada entre quanto cada um está imerso na multidão e em que medida seus pensamentos estão corridos (ou não). E essa ideia é fundamental para entender o funcionamento da conexão humana.
Nos capítulos seguintes, conforme a história avança da era de Platão para o presente, ocasionalmente retomarei esse continuum como ponto de referência. Embora os outros seis filósofos tenham vivido em eras e ambientes tecnológicos diferentes, a questão básica permaneceu a mesma: o indivíduo tentando tirar o melhor da vida em uma sociedade cada vez mais tumultuada e corrida. A meta filosófica – uma maneira prática e útil de pensar sobre a tecnologia de forma que ela satisfaça toda a amplidão de necessidades humanas, de dentro e de fora – também não muda. A ideia não é fugir da multidão e se tornar um eremita. Para a maioria de nós, a vida no alfa puro seria tão desagradável quanto no ômega puro. A ideia é encontrar um equilíbrio satisfatório.
Platão capta essa ideia no fim do diálogo, quando, após terem se refrescado e conversado por muito tempo, os dois homens decidem tomar o caminho de volta para a cidade. Sócrates sugere fazerem uma oração: “Adorado Pã e vós todos outros deuses que vagam por este lugar, deem-me a beleza na alma interior; e que o homem interior e o exterior sejam um só”.24
(Powers, William - O BlackBerry de Hamlet : uma filosofia prática para viver bem na era digital)
NOTAS:
Utilizei principalmente a tradução de Fedro assinada por Alexander Nehamas e Paul Woodruff: Plato: Complete Works, ed. John M. Cooper (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997). Todas as transcrições saíram dessa edição, a não ser em duas passagens, nas quais dei preferência a uma tradução do século XIX feita por Benjamin Jowett.
As transcrições da tradução de Jowett são de Symposium and Phaedrus (Nova York: Dover, 1993). Tomei essa decisão com base não na fidelidade da tradução (não domino grego antigo), mas no significado em inglês e na relação dele com o assunto abordado. A não ser quando cito Jowett explicitamente, todas as citações de Fedro se referem à versão de Nehamas e Woodruff.
A palavra “pergaminho” não aparece em nenhuma das traduções utilizadas, mas me valho dela pelas razões explicadas a seguir.
1. De acordo com algumas fontes, Fedro estaria próximo da meia-idade no tempo em que a conversa real aconteceu. Como Sócrates o chama de “menino”, deduzo que ele era, na verdade, jovem.
2. John M. Cooper (ed.) “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Puclishing, 1997), p. 507.
3. Ibid.
4. Ibid., p. 510.
5. Ibid.
6. John M. Cooper, introdução a Ibid., p. 506.
7. E. H. Gombrich, A Little History of the World (New Haven, Conn.: Yale University Press, 2005), p. 7. [Ed. bras.: Breve história do mundo (São Paulo: Martins Fontes, 2001).]
8. Ibid., p. 5.
9. John M. Cooper (ed.), “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997), p. xix.
10. Embora tanto a tradução de Alexander Nehamas e Paul Woodruff quanto a de Benjamin Jowett tragam “livro”, outros tradutores preferiram “pergaminho”. Também prefiro “pergaminho”, pois a palavra “livro” traz à mente o códex familiar do nosso tempo, que levaria centenas de anos para ser inventado.
11. John M. Cooper (ed.), “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997), p. 525.
12. Ibid., p. 524.
13. Ibid., p. 526.
14. Ibid., p. 525.
15. Ibid., p. 526.
16. Ibid., p. 517.
17. Ibid., pp. 551-52.
18. Ibid., p. 552.
19. Platão, Symposium and Phaedrus, tradução de Benjamin Jowett (Nova York: Dover, 1993), p. 88.
20. John M. Cooper (ed.), “Phaedrus”, in Plato: Complete Works (Indianapolis: Hackett Publishing, 1997), p. 552.
21. Ibid.
22. Ibid., p. 509.
23. Ibid., p. 528.
24. Platão, Symposium and Phaedrus, tradução de Benjamin Jowett (Nova York: Dover, 1993), p. 92.
Se “no princípio era o verbo”, esse verbo primordial foi poético |